26 de março de 2017

MicroEnsaioPoético: Platão



MicroEnsaioPoético: Platão

Tudo que se apruma em declive, pondo-se à deriva de ponderados leitos, cai. Imerge na bravura escura de uma queda; vai ao encontro do profundo estranhamento epitelial, quando a carnadura do toque reveste o espaço ambíguo do que existe e é corpo.
Tudo que enverga uma sapiência, que habita a morada fronteiriça entre o vivido e o postulado; isso que não tem sangue, mas pulsa na história não linear do gesto, tem profundidade e é corpo.
Corpo não é carne, apenas. Não apodrece, não deixa resto por onde passa. Mas é rastro quando sempre recomeça porque é princípio infindo em morte eterna. Corpo, quem sabe, é uma integração. Uma unidade dual – não opositiva, e sim ambígua –, poliunívoca na querência do que antecede o afeto, porque é antes e depois do afago. Contudo, é no durante que reverdece, que abre fundos à profecia de asas em voo.
Deita. Seu peso é sua existência. Atravessa margens, e atravessar quer dizer rasgar, trazer consigo, no rasgo, a experiência do que lhe tangeu, iridesceu e compôs passagem. Atravessar não é só ir de um lado ao outro, mas também trazer no lado a que se chega todo o futuro guardado em seu passado caminhante. O corpo é tempo. Presente constante nas possibilidades do que foi e será. Memória.
Tudo que é da espécie do corpo tem profundidade e é memória. Para além das mnemônicas imagens, memória é isso que abre; que excede e se consagra no circuito poético do verbo, quando poético diz o que se cria, alarga e se exerce, mas sem ponto de partida, tampouco de chegada. Sem um alguém que destrave seu ritmo porque qualquer alguém é, previamente, um ato criativo nascido antes de seu parto.
Um alguém é um lugar. Um imprevisto espaço donde se chega e para onde se vai isso que não tem nome, mas tem profundidade e é corpo.

Fábio Santana Pessanha

Referência da citação (imagem)


PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução e notas de Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011, p. 140.

2 comentários:

Daniele Negreiros disse...

Isso que se estende para além de todos é o corpo uno em uníssono sono.

:)

Fábio Santana Pessanha disse...

Para antes e depois do sono, durante as alamedas dos sonhos, Dani, o corpo é, quem sabe, um rasgo concreto na infinitude abstrata das mãos.