30 de dezembro de 2012

Corporal


Poesia corporal é música de palavra nua. Suas vestes recaem aos pés de semitons ornados em crepúsculo, alçando o levante dos ensurdecidos gritos de silêncio. São campos vastos onde a vermelhidão do sol colora o inalcançável dos olhos, onde os ouvidos registram apenas sussurros de cantos impronunciáveis.
De quem é a voz que toma o poeta na urgência do seu corpo? Quem corre nos arvoredos ensandecidos mediante os sazonais de auspícios canoros? Que pele pede o canto do verbo durante o interlúdio do suor?
A boca está nua... os dentes desenham o desejo no corpo que tocam, compondo uma tez de sorrisos largos e perdidos. O gosto está no corpo todo, gestualizando o inefável de uma palavra. O corpo é todo nu, todo pele, vento, furor e abismo. O corpo não teme, o corpo não sabe. O corpo erra... reluz a sinfonia de cores mudas, de ondas profundas num mar que é todo fundo e raso.

2 de novembro de 2012

Corpo e suas contradições: poesia


Poesia que me recobre, me descobre corpo fértil para o nada, para o imprevisto de ser a acontecência do real. Realidade improvável, incerta na composição da terra onde se plantam os pés e se colhem arvoredos de imagens e sons. Uma antiga floresta cultivada no interior do que não se vê no olhar, presente no gesto único e inefável da pele, e esta não se diz apenas limite físico, mas horizonte em que se perde o que nunca se ganhou.
Perder não é deixar de ter. Perder é ingerir a inconstância do real ao se dar contrária à nossa vontade. Perder é perder-se no inominável sentido de ser o que não somos. Ser o que não somos diz vida se dando naturalmente, e o natural é isto que não sei dizer.
Falo, volteio, indago o próprio existir. Lanço-me nu em seus braços: poesia que se diz no calado dos passos surdos, na clemência por um algoz sem voz que me afaste da tentativa de acertar o ritmo; que me destitua do razoável senso prático em ser apenas o que está ao alcance do meu olhar.
Mas como ser o que não sou? Como dar o que não tenho? Como impedir que a noite recubra o que vejo nos lampejos de lua?
Às vezes a lua se oculta nos braços da noite, fazendo amor com as estrelas e gozando em pleno sol. Aparece redonda e brilhante, pronta para a escassez de sua forma, preparando seu corpo para outro momento de plenificação: gestação. Sua forma é seu corpo, e forma é o modo como o corpo se dá, aparecendo no limite do que se revela. O corpo é a diferença de ser o que não é quando se lança na figuração do olhar do outro, ou seja, o corpo é o abismo onde se perdem todas as lógicas racionais, todas as certezas pautadas no desenho impreciso da visão. Enganam-se aqueles que conferem ao visto a inteireza do que aparece, pois o que se dá a ver é inteiro não porque é completo, mas porque traz consigo o que não se pode nunca alcançar: o não visto. Dessa forma, o inteiro não está circunscrito no limite da aparição; ao contrário, está disposto naquilo que no limite transborda o visível, que se doa enquanto corpo na aparição ambígua do que é e não é.
Drummond já toca nessa questão em seu poema “As contradições do corpo”. Então, ouviremos o que se diz na primeira estrofe do mesmo:

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.

O corpo encena sua própria contradição de ser, uma vez que na aparência em que se apresenta rascunha a sutileza do imprevisto. Sua insustentável leveza é sua morada, sua incompletude é a marca com a qual se tange de – e no – tempo, de incomensurabilidade. O que do corpo é meu se perde naquilo que não tenho, pois tudo que tenho só assim posso considerar por já estar pronto, acabado, definido em seu modo de ser e aparecer. Exemplificando: conforme disse o pensador brasileiro Emmanuel Carneiro Leão em uma conferência dada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,[1] posso dar um objeto que tenho em minha casa, pois o mesmo está definido em seu formato, em sua objetualidade palpável. Mas não posso dar o que sou, já que isso não tenho. Se o que sou é uma doação do Ser que se dá a ver na constituição do meu corpo, então sou a vigência do vir-a-ser de mim enquanto o sendo, portanto, o próprio do que sou. E o que sou nem a mim cabe dizer, pura e simplesmente porque não me sei.
Outra questão importante que vemos no poema de Drummond é que somos o outro de nós mesmos. Se por um lado podemos pensar numa descompassada cisão entre corpo e alma, Id e Ego, ou qualquer dessas oposições que encontramos no percurso do pensamento moderno;[2] por outro, percebemos que não há oposição na realização do corpo, e que a corporeidade do real é em si o próprio paradoxo de ser o que não é. Em outras palavras, “o que a mim de mim ele [o corpo] oculta” é aquilo que inevitavelmente já é meu, porém que ainda não se deu a ver. Na assunção do meu próprio (do que inegavelmente sou) é que isto que não sei, que está oculto, se revela ao mesmo tempo em que se resguarda na essência do Ser. Portanto, sou – e cada um é – simultaneamente salto e vertigem, luz e sombra reunidas na clareira misteriosa do nada: o nada criativo: o tò mé ón[3] de Platão, ou seja, o vazio necessário para que algo se dê, o vir-a-ser do que é e não é. Na conferência à qual nos referimos, o professor Emmanuel Carneiro Leão nos lembrou de que só há música quando há pausa, e essa pausa é o silêncio para onde vão e de onde vêm as notas musicais.
O poema faz referência à “ilusão de outro ser”, e disso podemos cogitar o modo como a interpretação viva e originária de mim se dá no olhar do outro. O que o outro vê de mim é uma imagem criativa, da mesma forma que o que vejo de mim é uma interpretação doada daquilo que não sei e que a todo instante se dá a ver tanto em pele quanto em poesia. Isto é, o poético é a inaugurabilidade do real, manifestando-se em realidade. E isto quer dizer que o que sinto é uma tinta que se soma ao incontável luzente da paleta de um pintor e, nesse caso, o “pintor” é o real. Não por ser um agente, mas por resguardar e ser a essência do que se realiza. E isto que se realiza, assim o faz como nota musical, como verso de um poema, como corpo que se lança no improvável de si mesmo. Portanto, somos o outro de nós mesmos tanto quanto percebemos o outro que se difere de nós por este se realizar como nossa diferença. O que quero dizer é que ao tocarmos em algo nos consumamos ao mesmo tempo em que nos consumimos. Contudo devemos nos atentar ao fato de que se o consumar nos leva à plenificação (cum-summare: chegar ao sumo, realizar-se essencialmente), o consumir nos leva à ruína (cum-sumere: chegar ao que esgota). Entretanto, um e outro estão muito próximos e, por que não, ligados; já que se dão mutuamente em tensão. Isto é, realizam-se como limite, como precipício para o phármakon.[4]
Metabolizo aquilo que é diferente de mim – o alimento, por exemplo –, mas só posso fazer disso meu corpo porque já sou a realização de tal paradoxo. Isto é, se posso metabolizar o que é diferente – portanto, daquilo que do alimento ainda não é meu corpo –; ao mesmo tempo, para que tal metabolização ocorra, é necessário uma pré-disposição do alimento em mim. Nesse caso, sou do alimento aquilo que é diferente, mas conforma corpo. Isto nos leva a pensar que sou – somos – radicalmente o vigor da diferença enquanto existência. Somos a contradição viva, mas desvista. Ou seja, contradição não como mera oposição, e sim como movimento incerto, impreciso, errante: agir essencial do poético ao nos tomar e se realizar em nós.
A contradição do corpo não está na divergência antagônica de si em relação à alma ou a ele mesmo. Ao desvermos a contradição que o corpo encena, tomamos posse de nossa própria errância enquanto humanos poeticamente habitantes de nós mesmos. Somos divergência e convergência, somos corpo para muito além de um constructo orgânico, até porque o sentido de corpo que aqui pensamos é o de mundificação. A errância que envia nossos passos ao desaviso de viver é a música que nos leva a cantar nosso próprio nome: poesia.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. “As contradições do corpo”. In: Corpo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
A INSUSTENTÁVEL leveza do ser. Direção: Philip Kaufman. Roteiro:  Milan Kundera (romance) / Jean-Claude Carrière / Philip Kaufman. 1988.



[1] Ocasião em que aconteceu o IV Seminário de Filosofia Antiga, na UERJ, em 2010.
[2] Pensamento moderno que já se dá por equivocado desde a afirmação que distingue os mundos sensível e inteligível, cuja autoria de tal proposição se atribui a Platão.
[3] Segundo a interpretação do prof. Emmanuel Carneiro Leão, podemos entender essa formulação de Platão como “o não ser”.
[4] Aquilo que tanto pode matar quanto curar, dependendo da proporção. Um remédio (fármaco), por exemplo.

Obs.: Este pequeno ensaio foi publicado originalmente na revista digital Labirinto Literário, na 29ª edição.


14 de outubro de 2012

Curso de extensão: "O sentido poético do corpo em Manoel de Barros e Drummond"


No dia 23 de outubro terá início o curso de extensão O sentido poético do corpo em Manoel de Barros e Drummond, que darei na Faculdade de Letras da UFRJ. Serão oito encontros nos quais nosso único compromisso será com o poético, ou seja, com a queda em nós mesmos! Quem se interessar e quiser maiores informações é só entrar em contato comigo. 

Ah, e para quem se apaixonou pela a ilustração do cartaz, inventada pela Juliana Gelmini, visitem seu blog Insólito Sólido e se encantem ainda mais!



Confiram também a ementa do curso:


Coordenador: Antonio José Jardim e Castro
Professor: Fábio Santana Pessanha
Ementa: A partir do livro Corpo, de Carlos Drummond de Andrade, e de poemas de Manoel de Barros (Poesia completa), pensaremos o sentido poético do corpo na tentativa de chegarmos a lugar algum. Brincaremos com a palavra e daremos as mãos ao absurdo da vida. Nosso único compromisso será com o poético e com a queda em nós mesmos que tal questão – o poético – provocará.

Dias: de 23/10 a 18/12 (terças-feiras) – 8 encontros
Horário: 15:50h às 17:30h
Vagas: 30

Cronograma:

23/10 – Iniciação à queda (possível diálogo com o poema “Matéria de poesia”, de Manoel de Barros).

30/10 – Rascunhando o corpo em notas a partir da leitura do ensaio “Notas sobre o corpo”, de Gilvan Fogel (parte I).

06/11 – Continuação de rascunho com “Notas sobre o corpo” (parte II).

13/11 – Entrando em contradição – leitura e interpretação do poema “As contradições do corpo”, de Drummond.

27/11 – Mergulho no abraço – leitura e interpretação do poema “A metafísica do corpo”, de Drummond.

04/12 – Atrás do vento... – leitura e interpretação do poema “O vento”, de Manoel de Barros.

11/12 – Atravessando o corpo: infância – leitura e interpretação do poema “Infantil”, de Manoel de Barros.

18/12 – Coisas que a gente ainda vai inventar...  


6 de outubro de 2012

Labirinto Literário, 29ª edição!


Saiu a 29ª edição do Labirinto Literário, e nela participo com o ensaio “Corpo e suas contradições: poesia”. Então, convido-os a dividir sua leitura comigo e, quem sabe, de tal convite não surja a possibilidade de um rico diálogo.
Para quem se interessar, é possível receber as edições do LL por e-mail, inclusive o presente número. Para isso, basta se inscrever no site do Labirinto Literário.


30 de setembro de 2012

Passagem

Era um dia de passagem em que a rua atravessava meu caminho. Passos em linha reta figuravam um percurso de transiência, desenhavam o átimo de sua errância.

Não sei o que digo nem o que faço. Não sei o norte da minha andança, o ritmo da minha dança. Qualquer coisa acontecida se irradia em minha vida como fonte descrida ou gorjeio de flor entardecida.

Ser poeta... Morar na morte dos meus dias, na vida dos meus erros. Ser poeta... Um conflito sem porto seguro, um festejo de meio-dia, um rascunho constante no gesto do meu corpo.


14 de setembro de 2012

Amar o vento


Este poema foi publicado originalmente no livro Arte: o humano e o destino, de Manuel Antônio de Castro.

Amar o vento
Para Bianka Barbosa, que me ensina a amar o vento, que me mostra a poesia em seu berço de amor.

Tentar pegar o vento
é agarrar o próprio abraço:
ter-se em pele e pelos
o amor que transborda,
o corpo que incorpora
cada passo em sua dança,
cada palavra em sua voz,
cada gesto em sua música.

Amar o vento
é estar em liberdade,
e liberdade diz crescer:
amadurecer com a silhueta do imprevisto,
dançar com pés no chão,
remexendo a terra com os dedos,
entranhando-se no suor da árvore,
fazendo ciranda com as palavras.

Uma poética do vento
é salto que recolhe a queda no pulo,
que atravessa um corpo
não quando o transpassa,
mas quando se venta com ele.
Um corpo que é margem em desalinho,
que é inconsequência de horas marcadas,
de tempo determinado.

Afinal, como se determinar o tempo?
Como pegar o salto no pulo?
Como dizer a música que ecoa
no silêncio de olhos entreabertos?
Como amarrar o vento?

Ainda que uma tentativa seja
subir numa árvore e pegar sua bunda,
o vento é faceiro, travesso,
corre com a própria velocidade.
Quando pensamos tê-lo alcançado,
ele nos dá uma volta
e, com um sorriso largo,
diz que nos ama.

Amar o vento é estar nesse aberto:
é dar as mãos ao vazio,
deitar de barriga pra cima e olhar o céu,
azul ou com desenho de nuvens,
percebendo o divino nesse emaranhado de nada.

Com jeito de travessuras,
o vento vem e nos rouba beijos.
Tentamos dizer que os beijos são nossos,
mas quando olhamos ao redor,
o vento já ocupou todos os lugares,
já se desfez em nova brisa –
nova e antiga:
concreta:
permanente em sua fluidez.

O vento venta e ama,
cria uma poética de fecundações:
o riso é sua procura;
o inefável, sua voz.

Abraçar o vento é nos perdermos em mar aberto,
pois não podemos deter seu caminho em nossas intenções.
Não podemos restringir sua queda em nosso colo,
não podemos dizer que vente para um lado ou outro,
não podemos fazer nada que não seja abrir os braços num abraço
e deixar que o vento nos vente com ele.

Amar o vento é amar a si mesmo,
ouvindo as diferenças que fundam nossos dias,
abrindo-nos àquilo que poderemos ser
e que já somos sendo:
amor.


31 de agosto de 2012

Poema para Manoel de Barros


Um nome
Para Manoel de Barros

Uma vez eu quis um nome,
mas de nome nada não sabia.
Chamei um equívoco.

Um chamamento de crepúsculo,
um dia de pôr do sol
com nuvens e caracol.

Não sei o que me deu.
Só sei que nada recebi
e nem um nome ganhei.

Mas uma palavra me arvorou
e frutifiquei.


31 de julho de 2012

Oferenda ao infinito


Meus amigos, disponibilizo meu ensaio, que foi originalmente publicado na 28ª edição da revista eletrônica Labirinto Literário, a fim de provocar o diálogo com quem se interessar. Como dito na postagem anterior, caso queiram receber as edições do LL por e-mail, basta se cadastrar em seu site. Fiquemos, então, com meu ensaio. Boa leitura!

Oferenda ao infinito

Lanço minha voz ao infinito... Retornam vento e poesia de mar... O clamor de ondas se enrijece na fala de uma palavra que se diz em todas as cores. A palavra está em todas as coisas, inclusive em seu silêncio. O silêncio da palavra é gestação de aurora, rompendo como voz ou escrita o rubor em face adolescente.
Lanço minha voz ao mar... Retornam amores entalhados em sal, esculturas sobre e com o Nada, nascidas do primeiro choro de uma criança. Choro de vida, da dor de estar vivo, esculpido ao som de cânticos ancestrais. Eis a oferenda doada ao imprevisto, o andor que eleva a sacralidade do humano diante de si, de sua incompletude, de sua existência ornamentada em dúvida, queda, errância e amor. O que se percebe além disso são decalques de uma vontade inventada, mas não a invenção no sentido poético, e sim no de verborragia desnecessária.
O sentido poético de inventar diz respeito ao que descobrimos daquilo que já nos foi doado pelo real. Assim, quando nos depararmos intimamente conosco – em transiência de ser –, descobrimos, inventamos aquilo que já temos e, só por isso, podemos (nos) realizar. Realizamo-nos junto com nossa invenção, pois somos a obra de arte resguardada no silêncio misterioso do não-ser. Não podemos inventar o que não nos pertence, e sim desvelamos o que originariamente nos compõe como humanos: somos solo fértil para o plantio do real. Tal questão se desdobra corriqueiramente, e não percebemos. Dessa forma, apontando para um caráter supostamente externo, mas que, na verdade, retoma e reforça o cerne do que foi dito há pouco, ao olharmos uma pedra e nela vermos uma escultura, estamos transbordando o sentido inventivo do que nos é próprio. Des-formamos a pedra, pois a metabolizamos e fazemos dela nosso alimento; não exatamente dando um formato, mas sim deixando transparecer em forma o apelo que escutamos de sua matéria. O mesmo acontece com a palavra num poema, com um pedaço de madeira, com um traço no papel ou com o gesto que nos restitui à humanidade, seja lá com que matéria for.
Inventar é se abrir às vestes do sagrado, da ambiguidade entre criador e criatura, uma vez que um está no outro, sem que se imponha passividade ou atividade. Criar é ser o empenho do nada na doação do mundo; criar é ser homem e refestelo de poesia em noite de lua cheia, em dia de mar aberto, em poentes coloridos de orgasmos. Nos criamos nos sussurros ao pé do ouvido ou na fúria de braços entrelaçados... nos entalhamos no olhar do outro quando a verdade se inflama e se diz (quase) sem muralhas... no outro que é tanto o além quanto o aquém de nós... pois somos também (e principalmente) o outro de nós mesmos...
Lanço meu olhar ao horizonte... Retornam gestos, procissões de imagens inacabadas, porvir... O anseio de conceber minha imagem como desconhecido de mim eleva o gosto de meu suor ao auge de um querer-sem-saber. Uma ausência, prevalência, cores e tons do imprevisto que pinta a paisagem de um existir em acontecência: minha existência em oferenda ao desconhecido. Ofereço-me repleto do que não tenho ao ardor de ser, ofereço-me simplesmente como presente ao mar, como carinho em criança, afago em moribundos ou beijo em boca esquizofrênica; apenas ofereço-me... e o resultado disso é que não devo esperar por reciprocidade, por presente datado. Devo me submeter ao orvalho da palavra, ao entoar de vozes ensandecidas de poesia. Dou-me à poesia, sou todo poema a ser escrito sem data ou assinatura, sou todo palavra descabida, emergência de tudo que não sei.
Lanço minha pele à escrita, sou superfície a ser arada por versos e música, pré-cultivo de linguagem, inefável presença de imprevisibilidade... Sou qualquer coisa inaudita, incomensurável, um apelo ao oposto das oposições, quando a oposição é uma falácia inventada por divertimento da palavra. Sou qualquer poema escrito e a escuta atenta à sua voz. Sou um poema catado ao vento, que preenche meu corpo – e a quem se deixar envolver – de sentido e vida:

INSTANTE ANUNCIADO

Um chapéu velho!
Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei que não chorava
E nem tinha desejo de falar.
Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma coisa vinha chegando...
Eu não via seu rosto,
Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei como ele amou aquele instante
Mas sei com que prazer ele esperou
Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
A que havia de vir passar as mãos
Pelos joelhos feridos.[1]

O instante se anuncia no seu próprio movimento de aparição, seja lá este como for: visível, palatável, audível ou impronunciável. O instante, para se tentar alcançar um chamamento, é fuga constante em qualquer tentativa de apreensão, antecedência de nome e gesto de poesia quando a voz se inflama nos pulmões do poeta.
O instante se anuncia e fala junto com a palavra, e nela mesma; é a palavra em seu jogo eriçado de travessia. A ambiguidade é sua cor, pois se iridesce o sentido verbal de ser vários. Quem fala? O poema, a linguagem, o instante! E só consigo ouvir porque sou fruto da mesma imprecisão. Melhor, sou fruto e semente, antecedência e procedência imersos na mesma palheta antes de se auferirem antagonismos. Só ouço o poema porque sou também seu verbo, sou sua fala e voz; cantamos em uníssono a proclamação do instante que já e nunca passou, pois o instante, o tempo, não passa: vigora!
Sou a espera dos lábios úmidos a me dizer com boca o beijo de eterna inocência, a carícia perene, sempre presente, do amor que me ama com profundidade, dor, calor e abandono... Abandonar não é somente deixar alguém sozinho, mas é também o movimento de este alguém se deixar só consigo, apropriando-se de si. Só amamos quando nos deixamos amar pelo amor, e assim nos reconhecendo no amar, e nos amando, podemos transbordar a ponto de acolher o outro.
O amar é sempre um transbordamento, é palavra que diz o que não é possível ser captado em formato gramatical, pois palavra não é apenas forma, coerência, ocorrência de código linguístico. Palavra é o próprio amor se dando no que não é possível dizer, mas sentir com corpo pleno de existência. A definição de amor já chega atrasada em sua tentativa de se explicar, tal qual a de palavra. Nenhuma explicação dá conta da inaugurabilidade que é ser amor e palavra, ser um instante anunciado.
Depois de girar meu corpo em ciranda, lanço meu olhar à Lua e sou também o que vejo na quentura de sua luz, o brilho que guia os poetas no exercício de seus passos, quando erram no desencaminho de suas letras. O caminho é o presente aos pés de quem se entrega à procura da verdade, de seu apropriar-se. E verdade não significa razão premeditada da certeza, mas a assunção (dolorosa) do que se é. Sou e realizo aquilo que se dá a ver na retina de meu toque. Toco com o corpo e sou a pele do que me atravessa.
Danço com a inconstância do mar e me entrego em palavra à poesia de suas ondas, estas que são o berço alvo do poente. Ofereço-me à imensidão de suas águas, à palavra e ao amor, sem saber o contorno do meu corpo. Dou-me inteiro e sem nome, uma oferenda ao infinito...


[1] BARROS, Manoel de. “Instante anunciado”. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 43.

10 de julho de 2012

Labirinto Literário, 28ª edição

Saiu a edição nº 28 do Labirinto Literário, uma publicação trimestral na qual tive o prazer de participar com o ensaio "Oferenda ao infinito". Abaixo  segue um trecho do meu texto:

"Lanço minha pele à escrita, sou superfície a ser arada por versos e música, pré-cultivo de linguagem, inefável presença de imprevisibilidade... Sou qualquer coisa inaudita, incomensurável, um apelo ao oposto das oposições, quando a oposição é uma falácia inventada por divertimento da palavra. Sou qualquer poema escrito e a escuta atenta à sua voz. Sou um poema catado ao vento, que preenche meu corpo – e a quem se deixar envolver – de sentido e vida".

Para quem se interessar, é possível receber as edições do LL por e-mail, inclusive o presente número. Para isso, basta se inscrever no site do Labirinto Literário.

10 de junho de 2012

A voz da linguagem


Ambiguidade é meu nome e minha sina é ser inconstância, ser a saliva do vento ao encostar no corpo da menina correndo, o arrepio no pé da letra quando um poeta se palavra em versos; ser a linguagem: isso que é o que não se pode dizer por não haver gestual que concentre sua cara.
Um rosto de várias faces, uma deformidade que nenhuma coerência retém em seu apelo pela lógica. Uma aparência vestida de nuances, de cores iridescentes, tons e sopros de um mosaico sempre por nascer... sempre nascendo... e morrendo, mostrando-se pela primeira vez em todo instante.
Instante: esse fugidio estado das coisas. Nada é para sempre, porém tudo é sempre eterno na medida da realização do nada. Uma coisa de sabores imberbes, em estado de baque, de espanto contínuo... pois isso é saber (se) enxergar, ou seja, espantar com tudo que toca a tez da visão, pois tudo é sempre novo na medida de sua derrocada, de sua morte.
Enxergar-se é ser o que se é: sou a medida daquilo que não toco, sou o nada no berço de sua emergência, dando-se em todas as coisas. O nada: a condição para o que está por nascer, para o que nasce a todo tempo, e não deixa de morrer. Morre-se já na possibilidade de existência. A morte e o nascimento são o mesmo, mas com roupas diferentes. Dão-se as mãos ao mesmo tempo que estão na mesma pele. Compactuam do ritual de eternização da efemeridade do existir.
Sou tempo nevrálgico, a palavra pura em estado de sujeira, a poesia que dá impulso de redenção ao imprevisto. O som do silêncio mediante sua pausa na duração de uma letra. As palavras são assim formadas: um pouco do resquício de mundo no que ele tem de aparição: uma pausa na qual se proferem as filhas da linguagem, as musas da indiscernibilidade: a voz da linguagem: mãe e filhas na duração de um mesmo instante.

5 de maio de 2012

Invenção


Invento minha rua,
caminhando passos de caracol.
As pedrinhas vão colando em meus pés,
a areia se transforma em minha pele:
sou chão.

O tamanho do meu horizonte
cabe nas asas de um passarinho.
Sou largo como margens de rio,
profundo como oceanos desconhecidos:
sou folhas de árvores à espera do vento.

Invento minha sina,
desconheço minha face,
desformo as pegadas largadas na terra.
A criação é respaldo de poema:
sou poesia.