31 de julho de 2011

Outono


Ah... poesia que chama o vento para seu enredo...
             vez fugaz que inflama o corpo, inteiro, nu.

Poesia que se veste de espasmos, de inexatidão, que traz para o colo o ímpeto de um afago, que traz no seu dedo as digitais de vários nomes.
                                       
                                                            Poesia que não reclama nada, que não pede nada, que se faz de nada... natural...

                          encanto de flores no outono, quando a pele é recoberta de brisas, de folhas secas, de vida e pré-vida...

1 de julho de 2011

O transfigurar-se do mar em corpo: a obliquidade do ver em Virgílio de Lemos

Obs.: Ensaio publicado originalmente na revista Mulemba.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”.

Dom Casmurro – Machado de Assis

Oblíquo alvorecer

Como uma onda que bate, um poema configura a diferença que se faz mar na unidade das águas. Trataremos, então, o mar como corpo, lendo nas entrelinhas do poema “Oblíquo o meu olhar” a obliquidade do ver que entremeia corpo e mar.
Quando um poeta escuta a pausa sonora da linguagem é quando está em livre abertura de criação, cria-se no seu criar-se, destituído do antagonismo afirmado pela posição retórica de se dicotomizar um sujeito-criador e um objeto-criatura. Virgílio de Lemos, poeta das águas, das ilhas, da música verbal de se versificar em estrofes dissonantes a experiência que o atravessa e o consuma, desenha com linhas tortas o olhar deflexivo de um ver, que não deixa de ser também um ver-se. Um aprofundamento que busca no interior de um olhar a imagem que está sempre um traço a mais das cores de uma paleta. No debruçamento sobre a inconstância das palavras, estas roubam a dureza gramatical do sentido engessado das normas, trançando-as em maleáveis espirais de música e cor. Sua dança semântica perambula sobre a coerência da língua e desendireita a correção de sintaxes.
Quase inevitavelmente, somos levados a pensar em Cecília Meireles, mais especificamente em seu poema “Canção excêntrica”, cujo desbordamento se evidencia ao desencaixar do equilíbrio o prumo de uma medida. Como assim? Ora, eis uma canção que enreda em sua melodia o descompasso de proporções exatas, exortando o despropósito de se aprisionar o viver no determinismo estipulado pelo refrear da razão. O trecho abaixo dimensiona isso que acabamos de dizer:

Ando à procura de espaço
Para o desenho da vida.
Em números me embaraço
E perco sempre a medida
(MEIRELES, 1972, p. 80).

A perda da medida é também a obliquidade do ver. E o ver é o que se estende num olhar, por isso não podemos confundir um com outro. O ver invoca a questão do espelho, tênue película costurada na fronteira entre realidades, ou seja, o que deságua no questionamento acerca do real e seus desdobramentos. Daí, podemos considerar que: “A visão não é um certo modo do pensamento ou de presença a si, é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, só no termo do qual eu me fecho sobre mim” (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 99).
A fissão do Ser, presente na ausência de um que é ao mesmo tempo outro, é cara às linhas poéticas virgilianas, tendo em vista que sua poesia navega neste “outrar-se”, que é, em si, o mesmo como riqueza ontológica de manifestação do poético, do ético, do histórico, do tempo, do sendo. Considerando as citações acima, aproximamo-nos brevemente do que o poema em questão nos leva a pensar, e dissemos que será uma experiência breve não por acaso, mas por termos em mente que por mais que nos empenhemos na caminhada de uma leitura hermenêutica, estamos sempre à deriva de nós, sendo outro e com outros, tentando chegar sempre ao lugar de onde nunca partimos: eis o círculo poético explicitado em nossa disposição de acolher as questões levantadas por uma obra de arte, no caso, esta costura de versos e vazio.

Imergindo no poema...

Sem mais demora, vejamos o que o poema “Oblíquo o meu olhar” elabora no seu entalhado silêncio:

Oblíquo o meu olhar, gesto e o jogo
que musical desmantela em volta o espaço
e retira à carne seu subjectivo desejo
cego, visão do inenarrável, seus perfumes.

Oblíquo o meu olho e o inquieto instante
a própria luz que aponta e beija com ardor
tuas ancas de canela na oblíqua esteira
oblíqua a tua lenda, invisíveis tuas barcas

no embalo lento da monção dos sentidos,
sobreimpressar inscrevendo-se no meu corpo
oblíquo o teu olhar, o híbrido veio insaciável

como o próprio eco das vagas contra a muralha
da fortaleza, abrindo-se a meus assaltos
mudos, minerais, fragmentando oblíquo poente[1]
(LEMOS, 2001, p. 16)

Um olhar desviado, que deriva de uma reflexão a deflexão da imagem que a nós se interpõe. O oblíquo é o que se vê transfigurando-se. Mudando sua perspectiva no declive de um ver. Assim se inicia este poema, cujo enfoque já é em si uma ruptura com qualquer posicionamento judicante enquanto estabelecimento de uma dada verdade.
Na medida em que a palavra “oblíquo” surge no poema, ela entorta o costumeiro de um olhar, dando a este a imprevisibilidade do poético, isto é, deflagra no canto o silêncio doador de sua melodia. No poema, portanto, delineia-se o entrever do que se mostra para que possamos “des-ver” ou rever com outros olhos tudo que a nós se apresenta. Logo, deter-se num olhar oblíquo é se entregar ao não visto do ver, uma ação de comprometimento com o que a poíesis re-clama. Este reclamar é o chamar (-clama > clamare) da própria coisa (re- > res)[2] na fundação da realidade.
Por outro lado, ficam as questões: um olhar oblíquo diz uma percepção enganadora da realidade? Ver obliquamente significa estarmos de mãos dadas com uma ilusão, com algo forjado?
Uma perspectiva torta da realidade exige o gesto do imprevisível e o jogo musical do porvir: “que musical desmantela em volta o espaço”. Porque estar num declive de ver é vigorar destinalmente, desmoronando o espaço que está à volta, em torno – excêntrico – daquilo que é visto. Neste sentido, a visão oblíqua descentraliza o entendimento reto, desracionaliza qualquer sentido representacional da realidade, pois transborda os contornos das imagens captadas sensorialmente pela visão.
Por destino entendemos aquilo que se realiza no ato de seu acontecimento e não algo previamente posto que acontecerá independente de qualquer intervenção do homem. O destino é uma questão, por isso não pode ser reduzido àquilo que já se previu sobre ele. Contudo, e o que é uma questão? Podemos dizer que questão é o que está sempre sendo e que permanece enquanto dele se derivam infindas perguntas. Por sua vez, perguntar é sempre uma tentativa de retornar à fonte do que não se sabe a partir do que já se sabe. E o não-saber não é ausência de conhecimento, mas vazio que reúne na escuridão a excessividade da luminância.
O oblíquo é o embaço, a lente pela qual é filtrado o que chega a nós não só pelos olhos, mas por toda movimentação de configuração de mundo, pois o mundo extrapola o sentido superficial de coletividade para fundar na retomada deste mesmo sentido coletivo o que nele se confirma e se refuta. Dessa forma, ao se tentar ordenar o caos, temos o estabelecimento da conjugação na qual se dá a existência do homem, haja vista que é no mundo que o homem é homem, restabelecendo-se mortalmente no devir que instala a procura por sua habitação corporal e mundanizadora. E assim lembramos do romance Sidarta, de Hermann Hesse, por trazer à baila a tessitura das diferenças vigentes na conformação de mundo, mediante a terra na qual nos enraizamos; o céu no qual nos alongamos; a mortalidade que nos limita e a imortalidade que nos atravessa: “Tudo era uma e a mesma coisa, tudo se entretecia, enredava-se, emaranhava-se mil vezes. E todo aquele conjunto era o mundo. Esse conjunto era o rio dos destinos, era a música da vida” (HESSE, 1970, p. 109).
Com a passagem acima, podemos reforçar o diálogo que vínhamos travando até então em referência aos dois primeiros versos do poema em questão:

Oblíquo o meu olhar, gesto e o jogo
que musical desmantela em volta o espaço

A música da vida, que conjunta o mundo em sua harmonia caótica e diferencia todas as coisas naquilo que cada uma é, forja o chão no qual o homem pisa tanto quanto o abraça em sua envergadura existencial.
No poema, o gesto musical de mundo desmantela o espaço que está ao redor, em proximidade com o que é dissimulado pelo olhar oblíquo. Estar em proximidade é resguardar a distância (Cf. HEIDEGGER, 2001, p. 155), sem nunca se chegar ao que se aproxima. Isto não é nenhuma tautologia ou jogo de palavras, mas a tentativa de fazer a experiência da proximidade como aquilo que está entre, vigorando sempre a um meio caminho de ser o que se é. Neste ínterim, a tensão do que é com o vir a ser configura um mostrar continuamente inaugural do que se apresenta, uma vez que se apresentar significa fazer-se presença, presentear-se na ordenação de um tornar-se, logo, a ambiguidade entre o que é e não-é enquanto ação ontológica de obliquar-se. Daí, quando nos atentamos ao que a primeira estrofe nos diz, percebemos que o desmantelamento do espaço que se acha “em volta”, portanto, do que está em proximidade, entre, indicia o resguardo cuidadoso da realidade que se apresenta sempre tortuosamente, já que não se reduz a uma representação ideal de algo, mas de sua vigência transitiva.
Notamos isso com mais intensidade quando avançamos na estrofe, lendo os outros dois versos:

e retira à carne seu subjectivo desejo
cego, visão do inenarrável, seus perfumes.

Retirar é re-mover, ou seja, mover-se em direção à coisa (re- > res) num percurso de procura pela essência, pelo vigorar.
O subjetivo enseja duas possibilidades de entendimento: a primeira é a ratificação de um fundamento, pois procura um sujeito no sentido de uma permanência: subjectum: tradução latina da palavra grega hypokeimenon, no entanto sem a correspondência de experienciação da palavra grega. A segunda insere o esquecimento do ser na medida em que se potencializa no homem um sujeito, um ente que se apodera do poder totalitário de moldar a realidade, de transformá-la ou mesmo de criá-la a partir de sua vontade, evidenciando a atitude moderna de concepção da realidade centrada no humanismo. As duas possibilidades mencionadas se entrelaçam quando percebemos que na ação de se retirar o desejo subjetivo da carne, mais no corpo se aprofunda o desejo de consumá-lo, indo ao sumo de sua excessividade. Logo, deflagra-se o retirar como retrair, já que quanto mais se intensifica a força de um afastamento mais se adentra na carne, no substancial.
E notemos: é um desejo cego, que não necessita dos olhos para poder ver. Ao contrário, interioriza-se ao mistério do não dito, do “inenarrável” para chegar à apropriação do corpo que, sendo o mesmo, transfigura-se no outro: “seus perfumes”. Mas, por ora, nos atentemos à “visão”.
A visão ultrapassa a imagem de uma paisagem ideal, a fim de configurar a travessia para o inalcançável. Porém, se é inalcançável, como se realizaria tal travessia? Ora, a travessia não diz a chegada em algum lugar, mas sim ação de ruptura que, em verdade, jamais rompe com nada, pois romper significa quebrar uma assinatura, ultrapassar um lugar, o tempo. No entanto, como ultrapassar o tempo quando se está vigendo nele, com ele? Assim, ultrapassar é a tentativa de antemão frustrada de tocar o intocável, de dizer o inenarrável, estando à procura da palavra jamais dita, e que foge de seu recanto silencioso quando pronunciada. É neste jogo de simultaneidades, do que se vela desvelando-se e vice-versa, que dizemos ser antecipadamente frustrada uma tentativa de ruptura, de saída. Afinal, como sair do tempo? Ou do espaço? Impossível!
Com tal depreensão, entendemos o aceno da visão do inenarrável, ou seja, da visão sempre em vigor de ultrapassagem, que ruma para a inalcançabilidade do vazio, tentando ainda agarrar no que é visto o rabisco escondido na trajetória do desenho. Lembramos que aquilo que se põe a ver se presencia, mas toda presença é um gesto de ausência, logo, um caminho na iminência de se desencaminhar a qualquer instante, mas que conduz em suas pegadas o recolhimento do que permanece e muda.
Quando lemos o verso “cego, visão do inenarrável, seus perfumes” com mais atenção, percebemos que nele temos palavras que nos apontam à sinestesia. Assim, todo o verso é um transbordamento de corpo, pois se desdobra no outrar-se exatamente pelo vocábulo “seus”. Nesse sentido corporal, manifesta-se o obliquar-se no entre, nas negações que trazem consigo afirmações, sem recair em dicotomias. A saber: em “cego” temos o velamento da visão; em “inenarrável” o dizer que se cala, silenciando-se na possibilidade da fala; e em “perfumes”, notamos a ocultação do cheiro na disposição de percebê-lo. Podemos ainda nos ater ao fato de que a “visão do inenarrável” e “seus perfumes” se equivalem no sentido de inalcançabilidade, isto é, o inenarrável é aquilo que não se pode pronunciar e “seus perfumes” é a imagem-questão de uma ausência presentificada. Na verdade, “seus perfumes” é mais um modo de dizer do que já fora radicalmente dito em “visão do inenarrável”, pois aqui se instaura a questão da luz, no sentido de que luz não significa claridade ou o que possibilita o ver, e sim o que se presenteia na própria presença, iluminando tal presença no seu aparecer. Isto é o aberto no qual se recolhem as sombras e a luminância da realidade na correnteza de seu vislumbre.
Na estrofe seguinte, lemos:

Oblíquo o meu olho e o inquieto instante
a própria luz que aponta e beija com ardor
tuas ancas de canela na oblíqua esteira
oblíqua a tua lenda, invisíveis tuas barcas

Como uma perspectiva que se afunila, aqui o foco vai se fechando num encaminhamento em que a estesia é posta como fronteira entre o sensório e o entranhamento corporal, portanto, o corpo como fenômeno, na ambiguidade de reunir em si a falácia de sua oposição à alma – uma vez que tal proposição reinstala o sentido batido, superficial e ralo da metafísica ao encará-lo como estrutura físico-química ou biofisiológica – e a transitoriedade do que é i-mediato. Assim mesmo: i-mediato com hífen para intensificar o sentido ao qual queremos chegar: sem (i-) mediação (-mediato), solene na experienciação de um apropriar-se sem a necessidade de um tradutor, de um intermediário que nos sufoque com conceitos reduzidos quase sempre a construções judicantes, ou metajudicantes. Assim entendemos o corpo: um meio do caminho, o que está sempre a se constituir e a se realizar na assunção de seu mistério corporal, tal qual o mar de Virgílio de Lemos, que está sempre a se fazer, a se tornar. Reforçando o diálogo:

O corpo (o sentir, a sensação), este sim, é a pura e simples (i.e., instantânea, imediata) percepção de algo ou de uma coisa. Corpo é percepção e não que ele tenha ou seja dotado de percepção, no sentido de que a percepção seria uma coisa, uma propriedade ou uma capacidade que se acrescentaria à substância, à base-corpo, o que, evidentemente, levaria a supor que corpo pré- ou subexistiria ao sentir, ao perceber. Portanto, “pura e simples (instantânea, i-mediata) percepção sensível” quer dizer ver e ver, por sua vez, quer dizer descobrir. Ou seja, mais uma vez, ver não é o ato do órgão da visão denominado vista (o sentido da vista ou da visão), mas, sendo perceber (o noein, o nous), é um dar-se conta de, um inteirar-se de – nisso está o descobrir, o mostrar-se disso ou daquilo como isso ou aquilo (FOGEL: 2009, pp. 48-9).

Ao reduzir o verbo “olhar” para o substantivo “olho”, fazemos a curva na rota de trazer ao corpo o enfoque sensorial, porém ambiguamente vigente, conforme expusemos acima. No todo do corpo, o olho (a visão) é a parte que recupera e ilude no que se apresenta e se vê a necessidade de uma adequação racional. Afinal, o que vemos é, de fato, o que se expõe ou apenas uma possibilidade de se presentar? Possivelmente, jamais saberemos.
A sinuosidade que desvia o caminho de uma possível reificação do corpo como entulho orgânico é feita logo na primeira palavra da segunda estrofe: “oblíquo”. Pois o obliquar-se virgiliano é a salvaguarda do trânsito cravado na linha fronteiriça entre o senso comum e sua transgressão. Desse modo, conseguimos perceber a ambivalência de seu duplo caminho, na qual as polarizações do racional e do poético se ambiguizam, saindo de um duplo (posição antagônica) para uma dobra (imbricação contínua e desfazimento dos opostos na instauração de cadências de realidades consumadas no real).
O torto percurso desta estrofe nos diz ainda que o instante é um lapso que atravessa nossa percepção na inquietude da realidade:

Oblíquo o meu olho e o inquieto instante

Ora, evidentemente aqui se intensifica o que levantamos como quebra de um sentido reto quando se expõe a realidade enquanto movimentação contínua, impossível de se reter numa estrutura calcificada. O instante é inquieto porque insta! Porque interroga o tempo, o real, numa dinâmica de ser e estar sendo ininterruptamente. Obviamente que quando dissemos interrogar não nos referimos à condição comum de um sujeito se dirigir ao outro e fazer uma perguntar. Não, aqui nos detemos nesse verbo como uma convocação (-rogar) que parte de dentro (inter-), que em verdade nunca partiu porque vigora incessantemente. Assim, questionar o tempo ou o real significa restituí-los em seu vigor como presença, como luz.
Não nos referimos casualmente à luz, pois esta é uma questão cara ao próximo verso, expondo-se como fertilidade de possibilidades, conforme veremos abaixo. Ou seja, a luz é o aberto que ilumina o aparecer do que se presencia. No poema, ela aponta, beija. Neste beijo, a superfície do que se ilumina desabrocha, então a luz e o beijo estão numa ligação íntima como aceno alquímico destituidor de antagonismos. Pois se a luz indica uma abertura, sendo o próprio acontecer do aberto, o beijo é o gesto que alinhava a pegada e o pé numa caminhada, o momento em que dois se fazem um. E notemos: não é qualquer beijo, mas um com “ardor”, inflamado por um intenso calor! Ora, o calor é agitação, fogo que queima sem chamas, provocando ebulição, auferindo a instabilidade contínua no limite entre a gula e a contenção de um corpo que ama.
É interessante perceber que o verso se alarga para os demais em função de sua posição de horizonte, isto é, ele costura em sua envergadura o transbordar que pinta o firmamento com rajadas de luz no limiar entre noite e dia. Durante esse momento, não sabemos se é o dia que anoitece ou se é a noite que amanhece, e assim, é com essa imagem de excessividade que o verso cavalga os outros, impondo um ritmo próprio que não se restringe ao final de uma estrofe, ao contrário, continua no compasso musical de sua fluência:

[...]
a própria luz que aponta e beija com ardor
tuas ancas de canela na oblíqua esteira
oblíqua a tua lenda, invisíveis tuas barcas

Nessa cavalgadura, a canção perfura, corrompe, rasga a nomenclatura do versejar claustrofóbico para tentar chegar o mais perto possível do silêncio manifestado nas palavras, da fonte irradiadora do ardor com o qual o erotizar do corpo se obliqua. Neste sentido, o gosto de “canela” lambuzado nos lábios que beija o sexo tece e entretece a ânsia do orgasmo (la petit mort). Seria este o momento mais próximo de sentir, digamos, fisicamente, a morte ainda em vida, um instante cuja penetração transcende a euforia dos órgãos genitais para uma travessia na qual o abraço do corpo também enlaça o porvir do que no abraço se abraça. Assim, o espaço entre a mão que se lança para agarrar a morte e a morte como dádiva suprema da vida é o entre, o gesto da ausência naquilo que se presencia. Esta fuga tão presente no que se tenta pegar, a falta no que comparece é o obliquar virgiliano, que deriva a expressividade em dissimulação. Ressaltando que encaminhamos o dissimular como um modo de outrar-se, a presença sempre ausente na doação do real em realidades.
Ainda na segunda estrofe, percebemos que a palavra “oblíquo” aparece três vezes. O que isso poderia significar? Decerto, não podemos afirmar uma verdade que resolva tal situação, então a leitura que fazemos é de entrever nessa insistência o sentido de dissolvição do que está firmado em bases irredutíveis. Desse modo, e conforme já dissemos mais acima, esta movimentação corrompe poeticamente a estabilidade de exatidões ao se propor o contínuo obliquar, portanto, eis a dissimulação das coisas imediatas no exercício de seu aproriar-se ressignificativo. Assim, o sentido i-mediato (Cf. FOGEL, 2007) de algo é a constante reestreia de sua aparição, tal qual nos diz o poema de Alberto Caeiro:

Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar
(PESSOA, 1974, p. 232).

A dedicação com a qual nos empenhamos neste trabalho está em sempre ver originariamente, em que cada verso inaugure o que nunca fora visto ou dito, como aquela velha música, mas que por ser significativa, sempre a ouvimos pela primeira vez. E é nesta mesma dinâmica que entendemos a poética virgiliana, na medida em que passagens como “oblíqua esteira/ oblíqua a tua lenda, invisíveis tuas barcas” são entoadas num ritmo marcado, instaurando uma cadência melódica que deságua na terceira estrofe sem perder o andamento. É música saída da rebentação, cuja sonoridade encharca nossa audição e nos conduz ao embalar feroz de sua monção.
Um corpo chama pelo outro, aprofunda-se em outro, conformando uma unidade. Fato que nos enseja a percepção de que não se trata apenas de aglomerados orgânicos, mas de corpo em êxtase, sendo ele mesmo a exaltação do amor, na qual o profano e o sagrado se comprazem em vertigens: dois se fazendo um.
A obliquidade imbrica penetrações, desvios nos quais o comum se desencaminha nas entrelinhas do poético. Tanto que “esteira”, além de ser um tipo de tecido (ou tapete) feito de matéria vegetal, palha, também significa o vestígio da passagem de embarcações pelas águas. Assim, tal palavra é caminho e descaminho, rasgo e a quentura de acolhimento, pois é tanto o esconderijo do desejo carnal quanto a tessitura do que faz mundo. E mundo podemos pensar ser o acontecimento da realidade na feitura que enlaça o que foi, é e será, portanto, memória.
A “tua lenda” retoma um passado, desenrola o histórico num sentido de marcas presentes na pele, dada a travessia de uma vivência. É a narração contida num intervalo de morte, uma vez que entendemos ser o viver o desabrochar da vida a partir do e em conjunto com o húmus da morte, onde na flor nascida há o cheiro que navega um no outro. Nesse viés, a morte não é um fim, mas plenificação. A palavra “lenda” indicia a contação de filigranas entretecidas, dando luz ao mosaico de tempo e história, vida e morte na paisagem do real. O pronome “tua” encena o paradoxo de perspectivas: um eu que fala e um tu que escuta, assim como um eu que escuta e um tu que fala: é a questão do outrar-se já proposta desde a primeira estrofe e que permanecerá nas próximas.
Dando um pouco mais de atenção a essa estrofe, ela explicita um eu e um tu de maneira mais incisiva que as demais. Afinal, que pessoas são essas? Certamente, não se trata de uma enunciação gramatical de enfoques discursivos, tendo em vista que um poema está além das delimitações normativas da linguagem como ciência. Por isso, preferimos evocar a narradora de A paixão segundo G.H., romance de Clarice Lispector, para nos ajudar a desfigurar a sisudez de um conceito acabado e nos conduzir à ambiência do “entre”, da ambiguidade onde o eu conforma o tu tanto quanto o tu está engravidado do eu: “O que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu” (LISPECTOR, 2009, p. 27). A atmosfera é essa opacidade, o nublado espaço de indeterminações no qual eu-tu-eu são um. Esse esfumar-se de exatidão brinda o despropósito de um tamanho resultante da tentativa de se medir onde termina o eu para iniciar o tu. O eu que conhecemos retoricamente está na decisão de uma escolha que afasta de si o outro, quando o primeiro se enclausura na retidão de uma subjetividade.
Ao pensarmos no diálogo entre o trecho acima e o final da segunda estrofe do poema em estudo, notamos um amálgama de diferenças que aparentam uma evasão subjetiva, mas que se consagram facetas de um mesmo. Assim, o eu é tu tanto quanto o tu é eu mediante a riqueza do ser que é e não-é. Por isso, no poema temos o pirilampejar do que se diz e se cala na fala poética. Mais ainda, por isso podemos entender por que, aquilo que, a princípio, possa parecer uma ruptura semântica, na verdade, está se engalfinhando no cerne mais profundo de um sentido, exatamente por fazer aparecer no que se estranha o que se entranha na linguagem.
É nessa dinâmica que lemos o final da segunda estrofe – “invisíveis tuas barcas” –, logo após ter lançado ao nada a palavra “lenda”. Ou seja, tendo sempre como horizonte o movimento do obliquar enquanto entortar, desviar, errar, a evocação da memória em lenda oferece o que não se vê (“invisíveis”) como rasgadura que fere as águas num risco de presença, que logo será encoberto, portanto, retornando ao vazio. E o que podemos entender por vazio? O mar, já que o vazio não é sinônimo de ausência, mas de excessividade. Um vazio gestante de possibilidades, o nada como o “buraco que perdeu o fundo” (COUTO, 2007, p. 136), isto é, o ausentar-se no que se presentifica tal qual o mar que se desdobra nos rios, penetrando a terra e possibilitando vidas. Podemos dizer tudo isso de maneira ainda mais clara: o mar é o corpo masculino que, na braveza de ondas, aguarda o singrar das “barcas” – o corpo feminino – em seu desejo. E assim chegamos à terceira estrofe:

no embalo lento da monção dos sentidos,
sobreimpressar inscrevendo-se no meu corpo
oblíquo o teu olhar, o híbrido veio insaciável

Obviamente, a leitura dessa estrofe é feita com a retomada da anterior. Aliás, o ritmo de se retomar o que já fora dito é constante na poética virgiliana. Este poema é um exemplo disso, ritmando-se num bater de ondas: estas quanto mais batem mais retomam aquilo que são: mar. Nessa movimentação, aquilo que se vê está sempre um passo ao indizível. Não é à toa o choque de imagens, a falta de uma medida equilibrada no âmbito estético. Ousamos pensar que qualquer estética possível em sua voz está no intuito de se redizer constantemente, deformando as linhas que estruturam uma formalidade convicta.
Trazendo às palavras a tentativa de se perceber tais afirmações, a estrofe acima continua o andamento do improviso musical. Assim, na transfiguração das vagas toantes, na minúcia de seus ecos, as barcas são o contorno do calor de um corpo sobre o outro. Tal como uma embarcação navega na imprecisão das águas, o gestual do corpo se abunda contra os lascivos caminhos do outro: relevos. Um penetrar-se mútuo em movimentações convergentes: reentrâncias e saliência. As barcas são penetradas pelo mar assim como o mar recebe as investidas de corpo. Daí, o ritmo do poema é o ritmo da possessão: pequena morte em espasmos: arrebentação. Sem nomes ou rostos, são duas diferenças que se colidem e se retraem, fluindo-se harmonicamente no que têm por singularidades.
A “monção de sentidos”, um mergulho no não-saber que é o outro. Um mistério sempre mais enigmático à medida das incursões. Saber o outro não é conhecê-lo no que explicita, mas sê-lo no segredo guardado em seu silêncio, habitá-lo. E quanto mais se aprofunda, mais se perde. Uma tempestade sinestésica, em cujos corpos se imprime o desejo pelo desbravamento.
Cava o corpo o olhar que fere a pele, incrustando-se nela a inscrição do desejo: a obliquidade de um corpo, de um outro olhar, do olhar impresso do outro que é também o mesmo: “inscrevendo-se no meu corpo/ oblíquo o teu olhar”. Isto é, o gracejo de rotas sinuosas por onde passam segredos, enigmas, tudo que ainda não é e vem a ser no toque inflamado de transbordamentos: um-e-outro. Pois se faz unificado o que parece vir de fora, mas que é na verdade um desdobramento do que já existe e é interno. O derredor que transita na travessia própria da constituição de ser um mesmo com o outro, eis a obliquidade que transpassa os limites de mera sensibilidade, que explode os poros arrebentando-os em clareiras. Nelas, o claro e o escuro se perdem e se encontram na conformação de uma unidade.
E ainda: “o híbrido veio insaciável” pede mais poema, interfere no cansaço de uma declamação, roga por fôlego para continuar sua cavalgadura. O corpo não quer descanso, quer mais corpo, quer ser com o outro, quer ser. Assim, o “híbrido” é reunião de cor, do que era ausente e se retrai no que se apresenta: gemido no pé do ouvido ao implorar ser explorado. A híbrida essência da fome quer mais penetração, mais adentramento na diferença de ser o que está sendo, principiando-se a todo instante. Cada gota de suor é onda que volta a ser mar e, iniciando com uma palavra que pinta a imagem da transfiguração, da quentura do sexo, temos o mesmo calor contra as muralhas de exaltação das vagas. Eis a última estrofe:

como o próprio eco das vagas contra a muralha
da fortaleza, abrindo-se a meus assaltos
mudos, minerais, fragmentando oblíquo poente.

Não dá para pedir arrego, o poema convoca a exaltação do verbo: transeunte loquaz sempre em lascivos movimentos com a língua. Permite o “como”: conjunção que muda a atmosfera da estrofe em relação à anterior, enriquecendo o poema de sentido ao nos convidar para a intermitência entre corpo sonoro de pulsão sexual e corpo feroz de explosão em marés. Da mesma forma que o “eco das vagas [estoura][3] contra a muralha/ da fortaleza”, a ferocidade do desejo se encarna no vigor de querência. Não há voz que embale tais sussurros: gritos de prazer na plenitude da mudez: ouvir é calar, entranhar na cova onde habita o silêncio.
Etimologicamente, mistério e mudez partilham da mesma raiz: mu, do grego , cuja origem onomatopaica recupera a expressão de gemidos, grunhidos emitidos pelo fechamento dos lábios. Assim, mistério e mudez se engalfinham enquanto recôndito de bocas. Pulsões no embate surdo de pele: “assaltos mudos”. Assaltar é se repentinar no espanto da criação, aprofundar-se no outro em busca de si mesmo, por isso o som que não se fala, que se cala porque escuta: fome que reclama essência: “minerais”. Nesse embrenhar-se mútuo, os espaços se derrocam na obliquidade do obscurecimento. Noutras palavras, o descanso que espera o cansaço dos corpos pinta de poente o horizonte: orgasmo: la petit mort. Pequena morte engrandecedora dos murmúrios que restam no fenecimento de um instante. O corpo se renova: morre. No alvorecer de outro instante, os olhos que regiam as imagens circundantes se abrem para acolher tudo novamente pela primeira vez: “fragmentando oblíquo poente”. Uma inclinação, o obliquar-se na imagem que se forma na retina de olhos em ressaca: vagas que arrebentam, retomam o início, principiando-se constantemente em mar, em corpo.
Embora os sons de finalmente já estejam batendo à porta desta interpretação, impossível não lembrar de Machado de Assis e os olhos de sua Capitu. Diálogo pertinente que merece por enquanto um até logo:

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? (ASSIS, 1982, p. 219).

REFERÊNCIAS


ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FOGEL, Gilvan. “Notas sobre o corpo”. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
______. “O desaprendizado do símbolo (a poética do ver imediato)”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, nº 171, pp. 39-51, 2007. Trimestral.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001.
HESSE, Hermann. Sidarta. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
LEMOS, Virgílio de. Para fazer um mar. Maputo: Instituto Camões, 2001.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
MEIRELES, Cecília. “Canção excêntrica”. In: Flor de poemas. Rio de Janeiro: Aguilar, INL, 1972.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de Janeiro: Grifo, 1969.
PESSOA, Fernando. Obra Poética em um Volume. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.


[1] Originalmente, o 13º verso é grafado assim em Para fazer um mar: “da fortaleza, abrindo-se os meus assaltos”. Porém, por estranhar a regência, entrei em contado com o Virgílio de Lemos e ele gentilmente recebeu meu pedido, confirmando a versão utilizada neste trabalho, em que se configura a preposição “a”. Desse modo, fica assim o verso: “da fortaleza, abrindo-se a meus assaltos”, segundo o e-mail a mim enviado pelo poeta no dia 24 de junho de 2010.
[2] Discutir a questão da coisa agora seria desviar o foco de nosso diálogo, porém também não podemos passar levianamente por ela. Coisa é uma das possíveis traduções da palavra grega ón, cujo significado é impossível de se ter por um conceito, tendo em vista a ambiguidade pertinente a tal palavra. Assim, depreendemos que ón é uma dobra que resgata o particípio presente do verbo einai, trazendo o princípio do limite e não-limite, do “sendo” como uma restituição ao ser no vigorar do que é enquanto está sendo. No que diz respeito à palavra coisa, o ón teve como traduções ou derivações: res (causa, coisa); ens, entis (ente); ergon (obra); essentia (ens > esse > essência); ousia (propriedade, o que é). Portanto, ao tratarmos a coisa como aceno à essência, eis o sentido que queremos enfatizar, na medida em que retoma o originário, embora esse mesmo sentido tenha se perdido na tradução latina de ón por res (coisa). Para um aprofundamento nesta questão, podemos conferir o ensaio “A arte, o originário e a verdade”, de Manuel Antônio de Castro, texto de apresentação da tradução de A origem da obra de arte, de Martin Heidegger. Também recomendamos o ensaio “A coisa”, deste último.
[3] Inserção nossa.