10 de fevereiro de 2017

MicroEnsaioPoético: Leminski

De dentro do quase, morando no que é ainda, há o poema. Nasce a palavra fazendo curva, tramando contra os lugares-comuns do sentido. Nessa envergadura, a poética de Paulo Leminski tem espaço. E depois de eu ser, várias vezes, tomado pelas vertigens leminskianas, aqui vai um trecho dessa queda.
Esse MicroEnsaioPoético ganhou vida originalmente no meu Instagram: www.instagram.com/fabiospessanha a partir do poema abaixo:

incenso fosse música

      isso de querer
ser exatamente aquilo
      que a gente é
ainda vai
      nos levar além


MicroEnsaioPoético: Leminski

Incenso fosse música. Incêndio fosse quase. Branco fosse isso que na chama inflama, que na cama abocanha o algo além de um alguém. Quer-se um querer. Há uma vontade que atropela, que faz dos passos luzes poentes no destino dos pés. Querer quer querendo-se. Faz circular o que na vontade é só sujeito. Encardido.
Isso de ser exatamente é dissonância. Um nome dito tão distante quanto a pronúncia que destrava bordas; tanto quanto a saliva, que molha os dentes, que vibra no ato de fazer palavra se tornar voz. Isso de “querer ser exatamente” é um entroncamento, uma corrupção temporal que traz o depois para o agora, que faz do hoje o dia de todos os sempres… um além… um crescente agoral num querer que é ser, num instante que é possibilidade: ainda.
Desvia para o lado sonoro do espanto, quando ainda vai, ainda nos levará além, ainda brindará o pulso engastado em ressalvas, ainda, quem sabe, será o centro entre bemol e sustenido, entre a sustentação da lágrima e o apogeu do murro; entre o peso dourado do esporro e o firme nó do loro.
Isto que nos levará além é ainda, é querer, é se ter na distância entre o abutre e a borboleta, entre o afago e a fama; a cama desfeita, a preguiça pós-domingo, o elo entre a lama e o zelo. Palavra dita quando pronúncia desmedida.
Querer ser no que se está. Viver o agoral. O desarranjo. O tempo. O ato. Isso que nos derrama, que nos consagra firmamento no limiar do instante, eleva ao ventre do inconstante o que se quer, que é levante. Isso nos levará além, isso nos levará ao amém das preces oferecidas ante escombros, ante ruas encruzilhadas. O destino é agora e nada mais. Não há depois, o antes já se foi. Nem houve.
Ainda iremos além. Esse negócio de querer ser, exatamente, o que se é, no que se está, só pode dar confins, caso, música fosse incenso. Mas. Incenso fosse música.

Referência do poema:


LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 228.