20 de novembro de 2015

XII Simpósio de Pós-Graduação em Ciência da Literatura na UFRJ

No dia 17 de novembro apresentei um rascunho de ideias para minha tese de doutorado, cujo tema é a palavra poética, inventada a partir dos poetas Manoel de Barros e Paulo Leminski. Dessa tensão, muitas curvas farão pouso em minha escrita e cataclismos frasais serão desinventados... Enquanto o trabalho é feito, deixo abaixo o pequeno texto que levei para conversar com os colegas da mesa no simpósio. 

A PALAVRA POÉTICA EM MANOEL DE BARROS E PAULO LEMINSKI
Fábio Santana Pessanha

Manoel de Barros e Paulo Leminski: duas poéticas entrelaçadas por absurdos. Dois universos sobre os quais o debruçamento crítico exige permanência e paciência. Isso porque são realidades que se criam pela brincadeira com e sobre as palavras, quando estas são as meninas que sapecam nuvens nos ensolarados dias das certezas normativas.
A partir da tensão poemática que vejo existir na produção dos dois poetas, pensei em fazer um tipo de biografia da palavra, considerando o que Leminski escreveu em seu ensaio “Arte inútil, arte livre?”, que diz o seguinte: “Cada palavra tem sua história, sua biografia, sua etimologia. Seu uso deflagra uma constelação de subsignificados e sentidos que, em cada idioma particular, tem certo desenho próprio e intransferível” (2012, p. 46). Já em Manoel de Barros podemos observar a atenção e a peculiaridade de seu olhar em relação às palavras numa entrevista que ele concedeu à sua filha Martha Barros para o Correio Brasiliense:

O senhor não fala em público. Por quê?
Porque eu gosto de ser recolhido pelas palavras. E a palavra falada não me recolhe. Antes até me deixa ao relento. O jeito que tenho de me ser não é falando; mas escrevendo. Palavra falada não é capaz de perfeito. E eu tenho orgulho de querer ser perfeito (1990, p. 317).

Como pudemos perceber, o enfoque se concentra na palavra escrita. Nessa que podemos usar formão para retirar excessos, retorcer, entortar até que uma realidade nova exerça sobre nós o domínio para encantamentos não palpáveis. É um processo tenso e difícil. Uma vez que haja empenho em se trabalhar a palavra, vamos só até onde nos é permitido, já que não conseguimos dominar seu voo, tampouco o sentido dela na leitura do outro, ainda que insistamos nesse feito.
Essa biografia da palavra à qual me referi quer dizer que ao concentrar meu foco na poética de Barros e Leminski, será feita uma fabricação de palavrares, tendo em vista o poema como experiência, e não apenas como objeto de análise. Diria que o processo é o inverso: não serei eu quem darei cara e endereço analítico aos poemas, destrinchando sua forma, contando suas peripécias, relegando-os a um dilema já inventando ou tido como insolúvel pela crítica; e sim que aprenderei com ele – poema – toda a dúvida que sua incomensurável história puder me conceder. Não se trata também de expressionismo ou subjetivismo arraigado, mas talvez de um processo de transposição, de atravessamento onde o excesso intelectual não tenha – espero! – a posição central. Desse modo, a expectativa é que poema, poeta e leitor convergirão para um lugar de mutualidade inequívoca e que por essa leitura a palavra poética seja quase surpreendida, e quase porque palavra não é coisa agarrável, tampouco elucidável num estame fixo. Sua ambiguidade nos permite pegá-la, torcê-la e até montá-la, mas isso que pegamos da palavra já é obsoleto no que dela se perdeu e se reinventou nos descaminhos da linguagem. Obviamente, a palavra dá as caras para as teorias, literárias e linguísticas, mas sempre encontra um jeito de escorrer pelos dedos de quem tenta encabrestá-la.
O que acabo de dizer quase entra em contradição com o já mencionado acima a respeito do uso do formão na escultura palavral, na retirada de seus excessos, e isso graças à ambiguidade existencial da palavra poética. Ainda que escrita e palpável por nossa visão, a palavra poética mora no seu declive para arranjos dos mais diversos. Então, objetivando a conversa para o teor da minha pesquisa, apesar do contraponto entre verso gráfico e verso sonoro apontado por Paulo Henriques Britto, ou seja, a distinção entre “a disposição de palavras impressas numa linha com começo e fim definidos” (2014, p. 33) e o “trecho contínuo de poesia que, lido em voz alta, tem um começo e um fim definidos” (idem), respectivamente – importantes para o enriquecimento interpretativo de um poema –, o meu enfoque recairá no sentido transversal da palavra que um poema suscita, no caso, referenciando-me aos poemas de Barros e Leminski. Assim, considerando essa referência, a pintura que o poema tatua em meu ver será corporalmente trazido para o desafio de uma tese que ora começa a dar seus primeiros passos, a qual pergunta por aquilo que se chama poema numa época em que a crise de versos se torna cada vez mais evidente, dada a produção poética contemporânea, quando o poema se excede na perda de expressividade ao tentar parecer um texto em prosa, ainda que essa questão já se mostre desde Baudelaire, com a publicação de seu Pequenos poemas em prosa e em Mallarmé com o texto “Crise de versos”.
Tanto em Manoel de Barros quanto em Paulo Leminski é possível encontrar características desse poema inexpressivo, mesmo que cada um tenha uma pegada bem singular. Assim, o mato-grossense-do-sul – com sua versificação justaposta e surrealizante pelo uso de incríveis imagens – e o curitibano – pela precisão do verso, contenção e concentração da forma em poemas curtos, além do abuso de haicais, sendo até assemelhado a um samurai pela leitura de Leyla-Perrone Moisés (Cf. Leminski, 2013) – apresentam uma interessante tensão ao trazer facetas múltiplas, onde o primeiro é extremamente expressivo na estruturação de seus versos enquanto o segundo alarga sua escrita por uma infinidade de técnicas, desde a densa expressividade até o uso não verbal de construção poética com a colagem de imagens e outras estruturas tipicamente concretistas. Então, arrisco em dizer que essa inexpressividade não é o aspecto central de suas poéticas, e sim características que podemos perceber tendo em vista as discussões atuais sobre o corte do verso e da intenção (ou falta dela) poemática contemporânea, tal qual é possível perceber em poetas como Marília Garcia, Marcos Siscar entre outros. Acredito que mesmo tendo no bojo de suas produções esses lampejos de cortes não tradicionais de versos, são poemas ainda bastante expressivos, principalmente os de Manoel de Barros, cuja vitalidade imagética sobressai e ganha o leitor no susto e, talvez, na vontade que esse leitor até inconscientemente tenha de se tornar seu próprio verso. E aí o verso deixa completamente o estatuto das discussões especificamente poemáticas para abranger um sentido mais verbal, poético-ontologicamente falando, considerando o caráter originariamente grego dado à poesia – poíesis – ou seja, de criação, como Waly Salomão costumava dizer em sua tentativa de resgate desse sentido primeiro de poesia (Cf. o documentário Pan-cinema Permanente, de Carlos Nader, 2007).
Insistindo com minha questão, esta que deu origem à ideia da tese, pergunto: o que diferencia uma frase usual de um verso? O que dá o estatuto poemático a uma construção verbal, desencadeando realidades, paisagens multiformes no universo das existências que povoam nossos olhares?
Penso que um poema nos desafia à leitura de nós mesmos. E não nos enganemos, não é só uma elaboração métrica, classificada na medida de palavras certas. Um poema é perdição e abismo, salto para o infinito entre nuvens e calabouços, pois instala mundo, sendo ação e meio do caminho para o existir.
Octavio Paz fala do ritmo como aquilo que determina a diferença entre uma frase prosaica – como ele chama o escrito comum – e uma frase poética com os seguintes dizeres: “a função predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal baseada no ritmo” (2012, p. 63). O poeta mexicano conduz o foco a uma concentração em que as palavras se erguem pela cadência de sua musicalidade ao se juntarem poematicamente. Nessa perspectiva, o ritmo dá sentido à palavra quando esta encena o devir para cujos rumos os caminhos ainda não foram delineados.
O desencadeamento musical de um texto dá margens à pluralidade de sentidos. Nesses empenhos, a natural degustação do paladar se reinventa para experimentações variadas, seja no âmbito visível da aparência, seja no da silenciosa recriação de nascividades. O poeta é um inventor de inutilidades palavrais, e nessa habitação se coloca inteiro. Daí, ao ter em mãos um conjunto de frases, estas são rearranjadas numa harmonia própria, cujo ritmo já lhes era existente, precisando apenas ser desvelado.
Eu trouxe a imagem do poeta, mas poderia ser qualquer um que fosse tocado pelo poético, já que, conforme Paulo Leminski sempre defendeu, o poeta não é só aquele que faz versos, e sim quem se deixa tocar por um poema e ser a existência de seu próprio verso (Cf. Leminski, 2012, pp. 132-3).
Acima, Octavio Paz foi citado por considerar o ritmo como o quesito determinante na diferenciação entre um texto prosaico e um poema. Contudo, o esvaziamento rítmico que toma a poesia contemporânea brasileira, e cujos traços podemos perceber nos dois poetas centralmente aludidos aqui, vem tensionar a discussão, ampliando muito o horizonte dos possíveis estudos a serem realizados no percurso da tese. Com isso, aflora-se em meu olhar o desregulamento rítmico que as poéticas de ambos apresentam. Ficam, então, as seguintes dúvidas: se um poema difere de um texto prosaico pela musicalidade que apresenta, o que acontece quando não demonstra tal feitio, mas, mesmo assim, conserva sua essência poemática? E o que é isso que estou chamando de essência poemática? O que me faz dizer que um poema é um poema quando não denota as características próprias desse tipo de construção?
Tais perguntas são amplas e não é de hoje que são feitas, isso é claro. No entanto, o que me interessa aqui é perceber o quanto desse questionamento em larga escala se personaliza nas poéticas barriana e leminskiana. Portanto, o que tento aqui nessa pesquisa é perceber o traço, o movimento próprio de cada um dentro do mundo que criam em suas escritas.
Há um risco de humanidade em cada escrito que erigimos. Também há uma excessividade latente em todo verso que se firma. O poema é um corpo inteiro, dotado de morte e transbordamento. Por esse excesso, chega aos leitores e cada um é tocado singularmente, dançando com as palavras num ritual que entremeia tanto a codificação de sentidos quanto a inefável invenção de destinos. 

Referências

BARROS, Manoel de. Manoel de Barros. Organização de Adalberto Müller e apresentação de Egberto Gismonti. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010a. (Encontros).
______. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010b.
______. “Conversas por escrito”. In: Gramática expositiva do chão – Poesia quase toda. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1990.
BRITTO, Paulo Henriques. “O natural e o artificial: algumas reflexões sobre o verso livre”. In: eLyra: Revista da Rede Internacional. Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, n. 3, 2014. Disponível em: <www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/40>.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Leminski, o samurai malandro”. In: LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.