3 de dezembro de 2006

Interpretação do poema “Canção excêntrica”, de Cecília Meireles

Canção excêntrica


Ando à procura de espaço
Para o desenho da vida.
Em números me embaraço
E perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
Em vez de abrir um compasso,
Projeto-me num abraço
E gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
É já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
Começa a achar um cansaço
Esta procura de espaço
Para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
Não me animo a um breve traço;
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.


Movimentos do poema:
  • 1º: v. 1-10
  • 2º: v. 11-14
  • 3º: v. 15-18
Sobre o título: Canção excêntrica

É uma canção por sermos música. É a invocação dos poetas às Musas, quando entusiasmados cantam, uma vez que a fala é o canto na medida em que este só o é na música.

Excêntrico é o que foge do centro, ou seja, é a procura inevitável que cada um de nós faz na vida. Assim, considerando o círculo, o centro pode ser entendido como um ponto de partida para o qual caminhamos perenemente ansiando o seu reencontro. Nesse sentido, centro não é só o local para o qual algo converge, mas o princípio de onde um questionamento começa.
Então, podemos pensar que "canção excêntrica" é o canto inaugural que realizamos na procura do que nos é próprio.

1º movimento

O primeiro movimento está centrado no “eu”, isto é, em mim. Em você, mas não sendo o outro, e sim sendo o próprio. Noutras palavras, o foco está sobre quem lê no ato da leitura sem ser observado por um suposto agente. Já que é este agente instituído que serve como referência para a determinação das pessoas verbais no discurso, ou seja, “ele” só é terceira pessoa porque existe um “eu” (primeira pessoa) que determina tal hierarquização ao observar o outro. Logo, retomando o início, o centro do primeiro movimento está em mim, em você ou nele sendo único no momento da leitura.

Tendo como ponto de partida os verbos, “andar” indica o procurar, o caminhar responsável pelo desenho da vida (v. 2). E este desenho é o que nos diferencia como pessoas ao mesmo tempo em que nos identifica como seres inquietos e incompletos enquanto viventes (sendo vida). Então, à proporção que ando (v. 1), lanço-me na vida à procura do que me é próprio.

Observando os verbos, notamos que todos se referem gramaticalmente à primeira pessoa do discurso. Exceto um que não manifesta o suposto sujeito gramatical eu: o é (ser). Se fôssemos traçar um viés gramatical, seria dito que o verbo “ser”, conjugado na terceira pessoa do singular, funciona como verbo de ligação entre o substantivo distância (v. 10) e o adjetivo perdida (v. 10). Contudo, como não queremos incorrer na superficialidade gramatical que prima exclusivamente pela funcionalidade, o tal verbo de ligação É (v. 10) deixa essa perspectiva de palavra vazia de significado e figura poeticamente como o que viabiliza, por seu vigor, a possibilidade de a distância (como o caminho a ser percorrido no “andar”) se plenificar mediante a tensão entre o que se tem e o que não se tem (perdida – v. 10), ou melhor, entre ser e não-ser, quando jogados no tempo ( – v. 10). Mas, por enquanto, deixemos essa discussão em suspenso.

Retomando o verbo “andar”, temos que, à medida que andamos, perdemo-nos da mesma forma que nos encontramos constantemente. Então, é na tensão entre “embaraçar” ([...] embaraço [...], v. 3) e [...] encontrar [...] (v. 5) que o andar/perder se manifesta quando somos lançados no tempo – [...] sempre [...], v. 4. E a ideia do tempo se mostra também na tensão entre o medir – [...] medida, v. 4 – e o sair – [...] saída, v. 5 – uma vez que a impossibilidade de uma medida para a vida se expurgaria numa saída ou solução. Porém, novamente, a resposta não se dá por encerrada quando, na incerteza demonstrada pela conjunção alternativa Se [...] (v. 5), projetamo-nos adiante de algum lugar, inviabilizando o fim do caminhar. Perder a medida é ir contra a razão, já que medir é uma instituição racional de tentar conter uma totalidade num conceito, quando este limita a ambiguidade daquilo que acontece como questão. Assim, perdemos sempre a medida, pois a vida nos joga ao embate contínuo do estar vivendo.

No verso 6, [...] abrir um compasso nos diz uma tentativa, ainda, de solucionar o inesperado através de uma resposta que já se teria pronta (um conceito). Todavia, podemos cogitar que abrir significa nos mostrar o novo, irromper com o que está fechado, definido, conceituado. Noutras palavras, é uma tentativa de se quebrar o que já está determinado, uma vez que o compasso (v. 6), embora relacionado com o círculo, a ele não se poderia atribuir essa referência ao que se chama círculo poético, por consideramos que, neste, o círculo não se fecha no início, mas, tendo em vista o contexto aqui inserido, principia-se no fim quando se proporciona a soltura do eixo a que a outra ponta do compasso se prende. Daí que na abertura ocorre uma projeção – projeto-me (v. 7) – e neste movimento de ir além é que nos geramos continuamente. Gerar – [...] gero [...] (v. 8) – é, então, dar origem, desvelar o que se vela, indo ao originário. Por isso, quando o verso 8 diz: E gero uma despedida, tal despedida é o acontecimento do porvir, pois despedir-se de algo é deixá-lo para trás quando nos lançamos na tensão entre o que está acontecendo e o que irá acontecer. Enfim, é o experienciar da e na história.

No final do 1º movimento nos vem que:


Se volto sobre o meu passo,

É já distância perdida.


Aqui, retomamos o que fora dito sobre o verbo “ser” quando ele extrapola a condição gramatical de se constituir apenas como verbo de ligação para imprimir o vigor que se depreende da conjuntura do homem enquanto manifestação do Ser.

Na medida em que volto (v. 9), não é possível refazer ou reviver um percurso. Este se completa à proporção que passa e se constitui em passado imutável. Dessa maneira, traz a ideia temporal que é reforçada pelo advérbio de tempo (v. 10), quando este nos diz “o agora”. Ou seja, manifesta o tempo no qual imergimos e desponta no que está por acontecer, sabendo que o agora só se dá enquanto vigor do entre, pois é sempre uma tensão do presente em disputa com o futuro sendo passado.

2º movimento

Neste movimento, o coração (v. 11) também se relaciona diretamente com o título, isto é, com a ideia de “fuga do centro” quando sinaliza o centro do homem ou da vida ainda numa perspectiva superficialmente orgânica. Mas, se considerarmos a amplitude do pensamento oriental, ao coração se atribui a tensão do entre. De outro modo, seu movimento de sístole e diástole é a percepção da ação e retração do corpo quando inserido no tempo, ou seja, tanto se expande quanto se retrai num ciclo temporal, tendo em vista que o ciclo é infinito e circular. Em Meu coração, coisa de aço (v. 11), aço é vigor. É o que traduz a dicotomia do coração, revelando a disputa que se harmoniza no equilíbrio.

À medida que a vida avança, transbordamo-nos de procura, de achar o que é nosso, nosso princípio. Daí, caminhar incessantemente causa dor, aflição, cansaço (v. 12). Já que viver é estar lançado na liminaridade, portanto, é uma constante tensão que nos movimenta, retirando-nos da letargia. Assim, perder o centro, aquilo que racionalmente confortaria a vida, quando vista sob uma ótica linear, é traumático e causa mudança.

“Procurar um espaço para que a vida se desenhe” é o mesmo que ficar atrelado ao compasso, quando este não rompe com o que cristaliza o movimento de repetição: o centro no qual sua outra haste se fixa. Este centro deve ser rompido ao nos abrirmos e nos projetarmos na vida. Então, temos que o segundo movimento se focaliza no coração, mas não como órgão físico, e sim como centro, vitalidade oriunda da dicotomia entre ação e retração do tempo, ou melhor, entre vida e morte.

3º movimento

Quase uma continuação do segundo movimento, o terceiro muda o foco quando o verbo animar – me animo (v. 16) – retoma o eu, o nós, enfim, aquele que lê (conforme já discutido anteriormente).

Animar é principiar, voltar-se à origem num ímpeto vigoroso de dar vida. Entendendo a vida por energia, a alma é o centro dessa energia, dessa força e vigor. Entretanto, não numa separação metafísica entre corpo e alma, e sim pensando nos dois como um só, já que um e outro se completam à medida que se compreendem, quando compreender é se entender ao se perceberem mutuamente .

Habitando temporalmente o limiar entre o desgaste e a descrença, onde a conjunção e manifesta tal acontecimento, como vemos no trecho Já por exausta e descrida (v. 15), inserimo-nos e nos realizamos como morada desta tensão na medida em que desejamos a realização de um ideal ao mesmo tempo em que este perde seu brilho e se descaracteriza como procura ao ser realizado quando é alcançado: - saudosa do que não faço, / - do que faço, arrependida (v. 17-18).

Então, ao relacionarmos os verbos “animar” e “fazer”, tanto um quanto o outro trazem a ideia de movimentação. Um – “animar” – dá a possibilidade e é em si o movimento enquanto o outro – “fazer” – é o movimento em sua realização. Todavia, eles vêm acompanhados de uma partícula negativa: o advérbio de negação “não”, ou seja, Não me animo [...] (v. 16) e [...] não faço (v. 17). Essa negação ainda é reforçada mais adiante pelo adjetivo arrependida (v. 18). Daí vem que tais negações demonstram a condição liminar do homem, quando negando ele se afirma. Logo, no trecho [...] um breve traço (v. 16) vemos a figura do seu caminhar em diálogo com o sentido do compasso (v. 6), reavendo a discussão entre a liberdade do viver e o aprisionamento do centralizar, considerando este uma moldura racional que não dá conta da plenitude humana.

Enfim, o centro deste terceiro movimento está, exatamente, na conjunção e (v. 15) por manifestar a tensão inerente ao homem, sendo este o ser do limiar concretizado na procura do que lhe é próprio.