12 de novembro de 2010

A Poética de Virgílio de Lemos na pós-modernidade*


De maneira geral, cremos ser a pós-modernidade o nome do movimento que deságua a tradição da modernidade na atualidade das relações interpessoais (cf. LEÃO, 2002), ou seja, esta fase de delimitação incerta acontece no esvanecimento do tangível por sua representação virtual. Uma de suas facetas são os tentáculos da globalização que cercam o homem, cuja necessidade de acumular indiscriminadamente o que tem se faz gritante. Informações rápidas e simultâneas, diminuição dos espaços físicos, intensa comunicabilidade entre distantes extremos, enfim, uma rede configurada no enlace do que se parecia inalcançável.

Embora haja quem defenda o discurso marxista de modernidade (cf. BERMAN, 1986), devemos ressaltar que não importam as definições conclusivas acerca de dado período historiográfico quando tratamos de poesia, mas como se desenvolve o homem mediante o fato de se encontrar lançado na incomensurabilidade do tempo, na linguagem e na travessia de uma existência singular. De fato, não há delimitações, ainda que optemos neste texto pela denominação de “pós-modernidade” quando encaramos a realidade que nos assalta em sua manifestação transbordante de nascividade.

Modernidade e pós-modernidade são rótulos que seguem os apontamentos de estudos histórico-epocais e que se alternarão segundo os pressupostos teóricos adotados por uma ótica específica. Deste modo, cremos que nãorupturas temporais, mas continuidades tensionais. Fatos como a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, marcam períodos de importância histórica como a suposta estreia da pós-modernidade. Neste sentido, devemos ter cuidado com as afirmações categóricas quando nos ativermos à manifestação do real na configuração das sociedades. Pois, do contrário, estaremos pregando uma farsa subjetiva que leva em conta somente a rixa pela melhor teoria em vigor.

A sensação de iminente desatualização sofrida pelo indivíduo da pós-modernidade é uma outra perspectiva que se dá ao percebermos o afastamento ocorrido entre um objeto e sua imagem, melhor, entre a essência e a aparência de uma coisa. Deste modo, a aparência é a representação imediatista das vontades humanas vigentes na superfície do querer, da insaciável busca pelo mais atual. Como se uma linha de produção se remetesse aos dias vividos por estes sujeitos pós-modernos. Entretanto, devemos ressaltar que esta imagem também está ultrapassada, embora ainda seja muito presente no discurso da teoria moderna. A linha de produção se figura comumente na concepção de modernidade enquanto período demarcado pela era fortemente industrial, isto é, na linearidade explicitada pela produção em massa ou para uma massa cultural. Esta, formada mediante o consumismo, o que incorre na acepção da arte como produto utilitário.

Na pós-modernidade, o caráter linear é deixado de lado em nome da simultaneidade. Nãomais o forte apelo industrial, mas sim virtualidades. Os objetos alçaram voos rumo à desfiguração do palpável, cujas curvas senoidais foram rispidamente trocadas pela austeridade reta dos bits.

A pós-modernidade, neste sentido, impõe a dicotomização do homem em virtude da técnica, da necessidade de realização de funções em nome da totalidade constitutiva da sociedade em que vive (cf. LYOTARD, 1993). Em outras palavras, podemos considerar que a oposição entresim” e “não”, “certo” e “errado” é avultada pela concretização dos bitszero” e “um”. Assim, ao considerarmos esta perspectiva, vemos que há duas possibilidades do real se manifestar: negativa ou positivamente, de maneira que uma exclua a outra.

A ambiguidade se dilacera na impossibilidade de nos apropriarmos do estatuto da liminaridade. Contudo, se o homem é naturalmente liminar, isto é, se vigora como tensão errática na manifestação mútua de vida e morte, como se ausentar desta unidade complexa em que o duplo é a constituição mínima do uno? Como morar na fronteira entre noite e dia se, antes, o homem é um desdobramento deste recíproco acontecer?

Com este estudo pensaremos a arte (porém, de maneira ainda sucinta) num momento em que a troca de uma coisa por sua representação simbólica ganha espaço mediante o esquecimento do ser; mais ainda, mediante o esvaziamento do humano na acontecência de um sujeito oco que irrompe na necessidade da escolha pelo melhor bem. Por conseguinte, pensaremos o operar do moçambicano Virgílio de Lemos que figura no contexto de todas essas mudanças. Assim sendo, devemos direcionar para uma dimensão dialógica os questionamentos gerais que concentrem a tensão tanto das disparidades teóricas quanto da imanência ontológica da escrita.

Tensões epocais em Virgílio de Lemos

Para que situemos a obra do poeta com o qual iremos dialogar, recorreremos mais à escuta de seu operar do que ao aporte historiográfico de comparações e repercussões do momento específico de sua escrita. Será evidente que, a partir de uma leitura cuidadosa, a própria obra nos dará indicações dos acontecimentos históricos por quais a travessia da poeticidade virgiliana se insere. Então, sem negar a história de seu percurso, proporemos a fala da poesia criadora de mundos originários, propiciada pela leitura de seus versos.

A poética de Virgílio de Lemos brada as peripécias do humano, trazendo a lume os questionamentos que tomam cada um de nós. Assim, percorrer sua obra é entrar em contato com o que temos de mais íntimo e com o que ele, o poeta, carrega como experienciação das várias facetas da realidade. Errante, desdobra-se ainda em heterônimos que fazem emergir seu universo mundano-poético ao tratar de questões como pátria (terra), língua, corpo, música, a partir da perspectiva heteronímica de Duarte Galvão, Lee Li Yang e Bruno dos Reis.

O autor de Para fazer um mar (2001) transitou por várias partes do mundo (cf. LISBOA, 2000), o que contribuiu para a multividência de experiências, levando-o à procura de sua originariedade. Isto é, suas terras, suas ilhas poetizadas não são meros escapismos versejantes, não figuram a ausência de algo perdido. São a procura de si na inconstância do caminhar humano, são a apropriação do que nunca se perdeu e sempre esteve gritando no transbordamento de sua poética. Seu peito é o arcabouço da vivência complexa da transitoriedade; seu coração, o sentido aórgico de tempo e espaço num corpo vivo. Dizemos isto não por contrapor matéria e espírito, mas por densificar a inseparabilidade de ambos enquanto orgia configurante de mundo, um mundo poético, próprio de Virgílio de Lemos.

Tendo em vista que direcionamos nossa perspectiva à averiguação entre o poeta citado e a pós-modernidade, é necessário que encaminhemos a seguinte pergunta: poderíamos pensar que a cisão heteronímica na qual Virgílio se apresenta se enquadraria aos moldes do pensamento pós-moderno?

Tal inquirição se insere no contexto de uma das relevantes características deste período: a fragmentação, ao considerarmos que “a fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco do pensamento pós-moderno” (HARVEY, 1996, p. 19). Embora a adequação da questão heteronímica seja muito propícia ao modelo fragmentário da pós-modernidade, cremos que ao agirmos desta forma, estaríamos tratando sua obra como objeto mudo, formatado num padrão típico de um dado momento histórico. Retiraríamos a vivacidade do poetar virgiliano e calaríamos seus versos nos porões da conformação teórica.

Não estamos impondo uma perspectiva meramente fenomenológica, mas, ao contrário, estamos abertos à escuta poética. A proposta deste texto se dá no ensejo de uma postura atenta à fala de seus poemas, o diálogo configurado na relação entre a obra poética, o leitor e a poíesis. Então, em relação aos heterônimos, podemos pensá-los como horizontes entre o poético e a realidade, uma vez que os fatos são elevados para além de suas configurações estáticas. Duarte Galvão, Lee Li Yang e Bruno dos Reis extrapolam o limite comum da invenção para insurgirem com propriedade de voz, por existirem na disputa entre o silêncio e o canto, posto queexistir que dizer exsurgir do não-ser para o ser” (SOUZA, 2001, p. 24). Observamos, então, o pensamento acerca da errância poética e visceralidade de ser corpo, assim como, simultaneamente, estar para além dele.

Devemos cuidadosamente nos despir dos pré-conceitos existentes, a fim de captarmos a essência de sua poeticidade. Cremos que a errância não se atenha somente ao sentido dicionarizado de vaguear, e sim à amplitude de vislumbre e espanto com a novidade do que nasce a cada gesto, brisa ou pôr do sol; uma nascividade ininterrupta, simultânea e congregante das experiências históricas, sociais e temporais num único ponto. Eis o crivo de sua poeticidade, a instância fulcral do vir a ser virgiliano que diz o silêncio nas dobras do pensamento, do corpo e da terra. A pátria enquanto terra-mãe é cantada na fulgurância da respiração poética, na travessia da fala do sagrado; na medida em que o poeta está intimamente ligado às questões de seu tempo, às suas ilhas e à sua cosmogonia.

Se atentarmos ao grau de imbricação entre os fatos historiográficos ocorridos em meados do século XX, em Moçambique, e a criação poética virgiliana, veremos que tanto os conflitos pela valorização da literatura genuinamente moçambicana quanto as lutas pela libertação do poderio colonialista de Salazar foram marcantes à feitura própria de dizer sua terra (cf. ANGIUS, 2000). Ao mesmo tempo, qualquer formalidade exclusivamente política se transbordava e se desfazia em versos libertos de estilos epocais, como vemos neste trecho do poemaTu és fábula”:

Tu és reflexão
artífice
de suspensos
concêntricos
enigmas de medo
masturbados
sublimados       
gemidos de guerra
nos teus olhos
suicidas
(LEMOS, 1999a, p. 116).

 No ano de 1952, ocorreu a publicação de uma revista que instaurou a modernidade da literatura em Moçambique. Esta se propunha a abrir margens à absorção cultural e a romper com o colonialismo português vigente em tal país. Então, ao lado de Augusto Santos Abranches e Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos figurou como fundador da revista Msaho e, como ele próprio designa:

Msaho pretendia uma visão aberta, liberta de preconceitos e militâncias estigmatizadas. [...] Msaho, embora tenha tido um único número, foi precursora da modernidade na poesia moçambicana. Foi ela quem apontou para a urgência da ruptura com as prácticas literárias existentes, até então, em Moçambique. (LEMOS, 1999a, p. 153).

Os conceitos de modernidade ou pós-modernidade não atendem a um dizer absoluto, ou seja, ao mesmo tempo em que são dinâmicos e se configuram à particularidade de cada nação e época histórica, não correspondem ao fundamental: a obra. Resvalam por teorias que tentam dominar a realidade que ensejam. Então, como todo o homem é o próprio acontecimento da história, que tanto a faz quanto por ela é feito (cf. LYOTARD, 1967), acreditamos que o enfoque em tais momentos epocais acaba por opacificar a obra de arte em sua plena desenvoltura. Então, como dissemos, o historicismo não determina uma poética.

Para esclarecer o que entendemos por história, citamos: “a História liberta o homem de uma historiografia claudicante e empobrecedora. E provoca o homem para o encontro de sua Essência, plenificada no acontecimento” (CASTRO, 1982, p. 60).

Portanto, muito além de uma narrativa sócio-descritiva, vemos em Virgílio de Lemos a história no berço da inaugurabilidade, sendo cantada e vivida nas estâncias de seu poetar.

O sentido do que se entende por modernidade ou pós-modernidade fica, então, em segundo plano no aspecto descritivo do termo quando, em vez de nos limitarmos à narrativa historiográfica, dispomo-nos a interpretar suas obras poéticas.

Podemos atribuir aos conceitos de modernidade e pós-modernidade um sentido de disputa, haja vista que tal atitude seria ratificar a harmonia caótico-temporal de uma sociedade viger. A disputa instaura um movimento complexo e simultâneo de mudança e perenidade, como nos diz o pensador Heráclito de Éfeso: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres (ANAXIMANDRO et al, 2005, p. 73). Se guerra aqui nos incita o sentido de luta, esta não necessariamente enseja confronto ou briga, mas a dinâmica vital do carrossel dos contrários interpenetrantes. luta ou disputa ondemudança, e esta recolhe no “sendo” do ser o histórico em acontecimento (cf. HEIDEGGER, 2007), resguarda a poesia na rutilância inovadora de dizer o mesmo sempre inauguralmente.

A pós-modernidade enquanto momento que nos atravessa e propicia o questionamento da época atual não surgiu de repente, mas configurou-se no percurso da historicidade da modernidade, uma vez que as bases desta foram desfiguradas pela velocidade progressiva da técnica, do rápido desenvolvimento científico, entre outros fatos que delinearam a “instalação” da era dominada pela virtualidade em rede.

Em Virgílio de Lemos, percebemos as nuances históricas enquanto essência da vertigem espácio-temporal, manifestação do sagrado e do constante retorno a Moçambique (cf. MELO, 2003). Percebemos ainda as vozes de uma nação pela multiperspectividade de um olhar que resvala por entre cultos, cânticos e filosofias ao desfronteirizar os limites entre ocidente e oriente.

A visceralidade do corpo

Ao pensarmos a inseparabilidade entre poeta-poesia-história-e-obra, vislumbramos o delírio antropofágico em Virgílio de Lemos. De outro modo, temos a presentificação de uma promiscuidade corpóreo-poética ao passo que testemunhamos a consumação musal-telúrica em seu acontecer (cf. PESSANHA, 2008). Isto ocorre porque na fala de seu canto há a reunião dos elementos que o constituem enquanto homem e o transbordam na originariedade poética de ser. Neste sentido, trazemos o caráter antropofágico presente na visceralidade do poeta em questão ao nos empenharmos em escutar o que a primeira estrofe de “Antropofagia delirantenos diz. Eis também um exemplo da mundividência virgiliana ao delinear a questão da relação entre linguagem, poeta e poesia:

Mas qual o poeta que não tem,
incestuosa,
uma relação com a língua
qual a língua que não devora
o poeta?
(LEMOS, 1999b, p. 49).

Esta relação incestuosa evoca o atravessamento pelo qual o poeta passa ao cantar sua terra, entregando-se ao apelo da memória. Certamente, memória aqui não se trata apenas de reminiscências, mas fundamentalmente da constituição de tempo e espaço únicos. A memória traz em seu vigor a tensão entre lembranças e esquecimento, que

[...] esquecer não significa, pois, deixar de ser, mas ser a memória no âmbito do lembrar, isto é, do ente, do desvelado, da luz da clareira do desvelado. Ficamos tão empolgados pela luz de Apolo que esquecemos a clareira e o que nela se ausenta: o velado, o ser (CASTRO, 2008).

Por este viés, temos não somente o que se apresenta visualmente nas palavras manifestas como também o mergulho na excessividade para a qual somos convocados pelo poema. Este, em articulação com a citação acima, nos leva a depreender o sentido poético-ontológico de sermos a plenificação do operar da arte enquanto diálogos incessantes. Somos possibilidades correspondentes à fala da linguagem na obra de arte, damos vigência ao corpo que se constitui na comunhão com o fazer artístico. Ou seja, o poema fala em nós e nos conduz ao indizível, ao silêncio da poesia.

Do livro Para fazer um mar (2001) de Virgílio de Lemos, ao dialogarmos com alguns versos de “Ao viajante”, notamos o aprofundamento no mistério do real:

E é a meio da noite
e a meio do mar
onde balouça a barca
de suspenso berço
que me perguntas
se é forte em mim
o desejo de ser e
o segredo das coisas?
(LEMOS, 2001, p. 27).

Nestas imagens, vemos o quanto o poeta moçambicano singra pelas ondas da inconstância, pela música das marés. Estas são atravessadas pela sensibilidade do pensamento a partir do silêncio e da escuridão da noite em seu apogeu. Logo, é “a meio do mar”, na profundidade da solidão que se vislumbra a feição de eterno viajante. Eis o sentido errático que o atravessa e o insta na liminaridade do entre-ser. Isto é, o poema oferta a multiperspectividade do olhar de um navegante que, por transitar entre terra e mar, recolhe em si a ambiguidade velante e desvelante do mistério do real.

Na última estrofe, o mesmo poema termina com uma questão:

[...] me perguntas
se sou mais o absurdo
que o fulgor da luz
no que desejo e
sonho?

Assim, o poema demonstra o movimento que o poetar oferece ao desfazer qualquer objetividade, no momento em que eleva o mistério do desconhecido em detrimento da luz da razão. Pois, se o homem pós-moderno perambula na dicotomia imposta pelos bits zero e um, esta linearidade opositiva se esvai na configuração do não-saber quando tal homem se pergunta pelo lugar da obscuridade do absurdo e da claridade da luz. Posto que a partir do não-saber que se constituem todos os saberes; do silêncio nasce a música para a ele retornar (cf. JARDIM, 2005); da calmaria oceânica surgem as ondas que lambem a vida em sua dança alvacenta e morrem no quebrantamento das sinuosas águas.

Debruçar-se pela poética virgiliana é também percorrer um pouco das ruas de Lourenço Marques (atual Maputo, capital de Moçambique):

A velha rua dos casinos ri-se
velha cigana, tempo
que vai à rua para dar
um ar da sua graça
(LEMOS, 1999b, p. 12).

Ou ainda sentir a intimidade das sensações corporificadas em uma cidade-mulher:

[...] é vida, nos murmúrios do silêncio,
o coito invisível e secreto
entre o meu olhar
e o teu
(LEMOS, 1999b, p. 11).

Portanto, eis um poeta que transita entre corpos, ilhas, mares (cf. SECCO, 2001); que imerge na incessante procura por descaminhos no acontecimento histórico-poético de sua transitoriedade.

Últimas palavras... que não encerram pensamentos

Pela leitura que fizemos, notamos que o poeta aqui em evidência não fala somente do social, ele se alimenta dos acontecimentos para que os devolva como criação de um outro mundo. O social perde seu caráter de viger sobre algo quando, na poesia, é dito tudo pela primeira vez. É dado um outro sentido para o histórico, uma vez que este se torna um acontecimento. Daí que acontecer é transcender ao continuísmo corriqueiro para instaurar seu próprio tempo, seu próprio mundo.

O sentido do prefixopósem pós-modernidade nos leva a questionar sumariamente por aquilo que vem depois. Mas, depois de quê? Se assim considerarmos, visualizaremos um percurso retilíneo em que a história se figura como corrente de causa e efeito a partir dos acontecimentos sociais. Toda esta metafísica apenas desdiz a poeticidade da palavra que encerra o deslimite do pensamento. A poesia enquanto ação originária (poíesis) não é retida nos meandros da teoria logicizante, mas inebria a postura rígida do raciocínio adequado, relativo aos pensares póstumos.

Tentamos neste texto ensaiar o pensamento em diálogo com a própria obra de arte, com a história, com a literatura, com a poesia. Neste sentido, quisemos, ainda que brevemente, discutir o fazer poético de um poeta que desassombra Moçambique e ganha as esquinas de ilhas, avenidas, línguas, praças e marés.

Por fim, Virgílio de Lemos é a criança que brinca de ser vários, que irrompe numa poética de imagens, sons e cheiros próprios no amanhecer de uma dança. Filosofias são criadas e desfeitas no intervalo de um verso ou na pausa de um acorde. Assim, a poesia é gerada no momento ímpar de nascimento e morte das palavras que ainda estão por acontecer.

Referências

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. 4ª ed. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: São Francisco, 2005.
ANGIUS, Fernanda. A actual literatura em Moçambique - A propósito de uma literatura em construção. Latitudes, Paris, nº 7, p. 19-22, dez. 1999/ jan. 2000.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CASTRO, Manuel Antônio de. O Acontecer Poético - A História Literária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
______. O mito de Midas e o ser feliz. Disponível em: http://travessiapoetica.blogspot.com/2008/05/o-mito-de-midas-e-o-ser-feliz-manuel.html. Acesso em 28 out. 2009.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis: Vozes, 2007.
JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. 2002. A pós-modernidade. Rio de Janeiro, Fotocópia.
LEMOS, Virgílio de. Eroticus moçambicanus: breve antologia da poesia escrita em Moçambique (1944/1963). SECCO, Carmen L. T. R. (org.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Faculdade de Letras, UFRJ, 1999a.
______. Negra Azul: retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco, 1944-1963. Maputo: Instituto Camões – Centro Cultural Português, 1999b.
______. Para fazer um mar. Maputo: Instituto Camões - Centro Cultural Português, 2001
LISBOA, Eugénio. Dois livros de Virgílio de Lemos. Latitudes, Paris, nº 7, p. 80-81, dez. 1999/ jan. 2000.
LYOTARD, Jean-François. A fenomenologia. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
______. O pós-moderno. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
MELO, Rosicler Ferraz de. O Erotismo da Poesia de Virgílio de Lemos (1944 a 1963): O Eu que Recorda. 2003. 116p. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
PESSANHA, Fábio Santana. O percurso antropofágico-delirante de uma interpretação em Virgílio de Lemos. Anais do V CLUERJ-SG. Rio de Janeiro: Botelho Editora, 2008.
SECCO, Carmen L. T. R. O mar, a ilha, a língua: A vertigem da criação na poesia de Virgílio de Lemos. Congresso da Associação Internacional dos Lusitanistas (AIL). Rio de Janeiro, 2001.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A criatividade da memória. In: SANTOS, Francisco Venceslau dos (org.). Historicidade da memória. Rio de Janeiro, Caetés, 2001/ 2002.

*Publicado originalmente na REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários

29 de outubro de 2010

IV Feira Poética


Acontecerá nos dias 4 e 5 de novembro, no Fórum de Ciência e Cultura (campus da UFRJ na Praia Vermelha, Urca – Rio de Janeiro), a IV Feira Poética.

Sob coordenação da profª. Maria Ignez de Souza Calfa, tal evento fará a reunião do Departamento de Arte Corporal e o Laboratório de Arte-Educação da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ com o grupo de pesquisa do NIEP – Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Poética, vinculado à Faculdade de Letras da UFRJ, num diálogo em que a poética do cotidiano será encenada pela dança realizada entre corpo e palavra.

Para quem estiver pelo Rio de Janeiro, é uma excelente oportunidade de tanto apreciar o diálogo entre a Dança e a Poética, como também de refletir, de pensar o sentido de corpo, de palavra, de poesia, de dança, de ser, neste ensurdecedor apelo à técnica por qual estamos passando em todas as esferas das artes e da humanidade.



Programação:


10 de outubro de 2010

Notícias de publicações


Caros amigos, foi ao ar o sexto número da Revista Eletrônica de Estudos Literários – REEL, uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Nesta edição, participo com o ensaio “A poética de Virgílio de Lemos na pós-modernidade”. Este texto é parte da minha pesquisa acerca da obra do poeta moçambicano citado. Quem quiser conferir, é só acessar o link acima, além de, claro, visitar a revista!
Tratando de outra publicação, também estão disponíveis para download os textos das comunicações que compõem o “VI Painel/ I encontro Regional do Insólito Ficcional: o insólito e seu duplo”. Participei do evento com o ensaio “Homem: corpo insólito”, este que disponibilizo abaixo. Mais tarde, postarei também o ensaio mencionado primeiro. Boa leitura para todos!

Homem: corpo insólito

... o corpo é uma encruzilhada na qual teorias e experiências se concentram na ambiguização de seu trânsito. Alvo de toda sorte de inflexões e reflexões, sacraliza-se nos mais diversos discursos litúrgicos tal qual se profana pela concupiscência da carne dos homens de realidade mediada.
A via crucis do corpo é o martírio da separação biológica e espiritual. Nesta trajetória, fazem-se vigentes manifestações acaloradas, pautadas em certezas científicas ou filosóficas (ainda que na perspectiva retórica da metafísica). Neste ínterim, o corpo se reduz a objeto de estudos, tornando-se mero corpus sem a devida atenção etimológica, ou melhor, elevando o sentido de coletividade material que sua etimologia permite.
Na tradição sofístico-literária, o corpo está desincorporado de si, afastado do apelo ao sagrado, da fundamentação no mistério de ser. Assim, para que nos aproximemos destes sentidos, é necessário galgarmos pelo poético. É preciso darmos ao corpo a atenção da escuta. Desta maneira, incorporar-nos para que sejamos corpo, isto é, para que sejamos aquilo que vivemos e somos.
Com dúvidas e imprecisões, traçaremos um caminho no qual evocaremos o corpo e seus desdobramentos. Portanto, um encaminhamento de duplicidade ensejante da cisão corporal em constructo biofisiológico e abismo misterioso do humano.
A fluidez é o movimento da linguagem que permite a dança pelos significados das palavras. O mais estranho é que embora tentemos introduzir um texto, esta introdução se parece com uma tentativa de adivinhar os rumos que a linguagem traçará em sua incursão e como o corpo será experimentado por sua espontaneidade. O melhor é matar esta introdução, finalizando nela o que há de tentativa adivinhatória acerca das linhas que se seguirão daqui em diante. Afinal, a linguagem é corpo. A assunção da ruptura do gesto em alinhavar cores, movimentos e vazio dá infinitudes tanto à “corporização” da linguagem quanto à “linguagização” do corpo. Então, o que importa não são os extremos impostos em uma coisa e em outra, mas o horizonte no qual a linha que costura corpo e linguagem se instaura.
O corpo fala aos moldes de vazio, no entanto o mais interessante é que o vazio não tem molde algum. Dar forma ao vazio é esgotá-lo de sentido, enchendo-o de falácias e estruturações plausíveis de conforto. Aquele típico de uma resposta bem dada que encerra uma pergunta. O fato é que se houve tal sensação confortável, a resposta não foi de fato uma res-posta, mas um algo responsivo de cunho aniquilatório, pois empreende a calcificação do pensamento na paragem adequativa entre uma dúvida e sua resolução. Ora, se responder é um movimento de recolocar continuamente uma questão, não podemos conceber o confortável senso responsivo, e sim, a angustiante empreitada de ser e estar em vivência.
A angústia é o desconforto do corpo em se entranhar mortalmente na vida. Uma ciência de desequilíbrio, cuja feição corresponde ao enaltecimento de uma falta, de uma ausência que fere, de uma necessidade de voltar a se ter o que jamais se teve. Temos a estranheza de algo que nos é muito próximo, porém que se ausenta nesta proximidade. E isto nos oprime porque aprendemos a estender as mãos e voltar com elas cheias, seja do objeto de desejo ou do afago de quem nos ama. Mas e quando as mãos voltam vazias? O que fazer quando nos encontramos sós e estendemos nossos desejos ao estéril? Angustiamo-nos.
A carne do corpo se fere e transfere sua dor à construção de uma forja lúdica. Aqui, troca-se o metal pela substância do nada, ou melhor, pela tentativa de consubstanciar o nada em equívoco material. É como se déssemos nomes com a tentativa de agarrar na nomenclatura a totalidade de uma coisa, pois se chamamos pelo martelo queremos agarrá-lo completamente em seu nome, queremos sua materialidade acoplada da funcionalidade a um só golpe de chamamento. Queremos sua imagem preenchida de corporalidade tátil a ponto de nos fundirmos no ato de quebrantamento.
A necessidade de possessão é maior quando no nome queremos um alguém ou a nós mesmos por completo: “[...] eu havia me transformado na pessoa que tem meu nome. Eu acabei sendo o meu nome” (LISPECTOR: 2009, p. 24). A vontade do corpo físico clama a ignorância da possessividade, queremos a completude do gesto em cada aceno em vez de deixá-lo livre à novidade de se ganhar o vazio. Este sim, fértil, doa ao gesto o silêncio, a dança, o afago livre de imposição. Um corpo que ama, um pássaro pousado no dedo: livre para voar ou sempre retornar, conforme nos narra Rubem Alves em seu livro O Retorno e Terno (1994). Entendemos que retorno não significa volta a um contexto anterior, mas viagem rumo à interioridade que o homem faz ao se escutar: pro-cura.
A evocação da certeza impele uma estrutura óssea na qual podemos nos encostar. Quando assim fazemos, deslocamos nossa força ao anteparo esquelético, criamos uma bengala macabra. Ficamos tão encostados e necessitados desta sinistra estrutura que pensamos não poder andar sem sua ajuda. Deste modo, todo nosso planejamento futuro leva em conta a coluna vertebral de nossa deficiência em sentir dor, em ser incerto. Incorporamos a ossatura da dor na medida em que damos a esta o estatuto da dificuldade física e sensorial. No entanto, a dor não está restrita à superficialidade dos sentidos, pois é por ela que se levantam os membros e se põem a rodopiar no eixo do não-compreendido. Heidegger ainda nos aponta uma possibilidade de se pensar a dor, ou seja, enquanto corte reunidor que, à medida que irrompe, traz para si o lugar e momento do rasgo. Portanto, a dor “traça e articula o que no corte se separa” (2003, p. 21), dando ao corpo a musicalidade de um improviso, ao repentino modo de acolher na desfeitura do correto um pouco das inúmeras possibilidades de se abismar e se desfazer de plangente ossatura. O salto neste abismo se torna mortal, excessivo de vida genuína: cria um corpo autêntico, ou seja, repleto de mortalidade, defeitos, imprecisões. É cáustico e sonoro, doce e efervescente, entalhado a partir do que não se pode ver do horizonte entre vida e morte.
O corpo se impõe em meio à desorganização da vida. Esta é inclausurável, não se atendo ao contorno de uma forma. A displicência do formato conjuga em suas linhas a certeza desapropriada do viver. A vida é transitada na morte como um trançado poético em que a circularidade entre ambas não espera a vez de quem se apresenta primeiro. Ao contrário, imergem simultaneamente no instante próprio de seu acontecimento. O real simplesmente se manifesta: um instante inequívoco com a duração de um lampejo inexequível pela razão. Neste clarão, rasga-se a ordem cronológica, trazendo para a fenda instaurada a simultaneidade entre início e fim como unidade. Nesta, o desdobrar de vida e morte se faz presente e perene naquilo que foi, é e será.
A realidade é um desajustamento do real, mas que se conjunta na harmonia complexa das oposições complementares, ou seja, vigora na entrância do que se desdiz e, nesta negação, afirma aquilo que se apresenta sem os moldes de adequação dos enunciados, sem a suposta verdade equivalente ao que seja verdadeiro atributivamente.
A fim de não nos perdemos na eloquência de uma língua encharcada de linguagem, observamos nossas colocações acerca da incomensurabilidade do real, compartilhando com a aflição da narradora de A paixão segundo G.H.:

Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que foi sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização? (LISPECTOR: 2009, p. 11).

A insólita condição da vida se manifesta nos pequenos gracejos do viver, pulsa desorganizadamente como envios de um real que não mira um alvo, apenas se lança na sua própria trajetória. Só temos que ter cuidado em não pensar no trajeto como percurso dado ou incrustado no chão após sua passagem. Eis um caminho que rasga o não-visível com sua força de acontecimento, deixando um rastro já desgastado em seu trânsito. É como um navio que corta o oceano, sendo o desenho de sua passagem tomado pelas águas.
O real se realiza no sendo do ser, na vivência da vida. Tal fato amedronta por não trazer consigo um manual de ações possíveis de convivência com o não-saber. Viver o que se vive é diferente de se viver o que se pensa que se vive, pois a vigência do sendo rapta a notoriedade do já estabelecido. A margem do inabitual instaura quedas em curva, posto o desaprender contínuo do sendo enquanto está sendo.
Cair, por si só, nos conduz ao mistério do obscuro. Porém, quando esta queda encurva, até mesmo a certeza do cair é desfeita. Logo, viver o que se pensa que se vive é uma incursão à ilusão protetora da realidade mediada por saberes, aquela na qual teimamos em permanecer velados do tempo sem medida, do destino imprevisível – uma vez que destino é o que está sendo na singularidade de cada momento. Já, viver o que se vive é radicar a vida na imediatez da realidade, do sendo-vida sem intercâmbios de ações controladas.
Ver aquilo que se mostra sem a claridade de um anteparo lógico encrava o homem na sua farsa de se projetar em todas as coisas. A intolerância de não se ver no seu redor o oprime por lhe retirar o poder de criação e de seu desdobramento na criatura resultante. A vida é sempre outra além do que se pensa ser, pois aquilo que se pensa da vida costumeiramente é um artifício próprio do descontentamento com a desmedida do real. De uma certa maneira, o que nos é facultado ver da vida é comparável à porção de água que retemos em nossas mãos quando as mergulhamos num rio, portanto, uma parcela delimitada da realidade.
O rio flui constante, repentina e inauguralmente em cada lugar de seu curso; logo, ele é a permanência tensional entre a fonte e a foz não só nos lugares onde nasce e deságua, mas em todo seu corpo fluvial. Ao desaguar no mar, o rio se plenifica, pois é tanto mais rio quanto o mar o possibilita ser.
“Por que é que ver é uma tal desorganização?”, indaga a narradora, inserindo-nos na proximidade de seu questionamento. A desorganização do ver conjuga naquilo que se vê a coisa mostrada e nossa relação com tal aparição. Então, o ver é a ambiguidade que traz para a presença do que se mostra a desorganização do real em se dar prontamente como improviso de si mesmo. Tal improvisação carrega o inabitual de uma apresentação originária simultaneamente àquilo que nos é peculiar de reconhecimento pelo nome, forma ou ideia. Na tensão desta ambiguidade mora nossa dificuldade de recolhimento com o que nos é exterior, com o que foge de nosso colo e resvala por nossos dedos quando tentamos agarrá-lo pelo conceito do visível.
Por vivermos em constante divergência com o que somos, vingamos pela impossibilidade de se responder ao questionamento inerente ao homem. Assim, vivemos na tentativa constante de nos sabermos, sempre perguntando o que é o homem, o que é isto – ser homem? Atropelamo-nos nas perguntas que fazemos e na ausência responsiva das mesmas, por isso nos angustiamos. A mesma angústia colocada pela narradora acima é também a nossa. Depositamos na visibilidade das coisas o conforto tão necessário à manutenção de nossa dor diária de estarmos vivos em morte. Queremos uma organização que suplante a intermitência do real, que nos responda: por que é que ver é uma tal desorganização?! Por que é que não damos conta do que a nós se improvisa, carregando-nos para o âmago de seu dilaceramento? Por que sentimos dor e nos angustiamos por não reter no dizível o não-dizível? Afinal, somos homens e possibilitamos existência às coisas, ou melhor, no que o real se possibilita enquanto realidade no âmbito do humano, existimos nas coisas desdobrando-nos nelas, portanto, concedendo-lhes existência.
Somos homens, por isso não temos a menor ideia do que isso signifique, exatamente porque estamos em vigência de ser. O humano é uma tentativa de procura ao essencial do homem, lá onde reside a ficção de uma célula-matriz. O corpo é uma reorganização da desorganização do humano em ser homem, uma questão que se prolonga além do alcance de seus (nossos) braços e concepções de mundo(s). O trecho do poema abaixo nos diz isso muito bem:

Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?

um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?

Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?

Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?

E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta

nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?

[...]
(ANDRADE: 1983, pp. 205-6)

“Mas que coisa é homem” que fala, normatiza, pensa, raciocina e se coloca abaixo do nome? Que homem é seu nome? Que nome dá ao homem o estatuto de sua humanidade?
O nome é um corpo no qual o homem se alinhava com a palavra. A palavra é corpo. A geografia da escrita do nome incorpora no homem a rasgadura de ser e não-ser.  A cadência de seus passos costura no chão que pisa a lágrima sentida no calo de seu calcanhar. Assim, o corpo da palavra ganha gesto, voz e nome: um chamamento lançado no escuro de uma sala sem janelas, sem ar que respire as dúvidas de saber o que se é: corpo?
Não há geografia que meça a linha por onde a humanidade se conforme. Pois a humanidade não tem linha, só abstração. Nem o homem tem linha por não caber em uma sujeição: sujeito é coisa inventada para ter quem dê nome ao inominável. Mas a geografia esconde a terra por onde o homem pensa em nascer e se nomear, encorpar-se mediante a disputa das nominações: quem será a primeira cadeira, árvore, uva, maçaneta, peça de xadrez?
Sendo metafísico ou fábula, a questão que se coloca é a da transitoriedade. O homem é sempre outro junto e além de si mesmo, é o próprio limite de si com aquilo que ainda não conhece de seu avesso. A linha que tange seu corpo é regida pela surpresa de uma ruptura iminente. O traçado livre de mãos ausentes, de disciplina enrijecedora deixa aparecer a simplicidade de um corpo nu que fala com sua pele, que sente com seu acaso. Uma fabulação de silêncios que ultrapassam a fronteira dos signos, das cascas de palavras encucadas de trejeitos normativos. O corpo é uma tal pergunta que sempre se renova no desconhecido de suas curvas, entrâncias e mistérios de gozo.
O homem sem mundo é corpo sem asco, é pele sem vazio, poro que descama sílabas no balbuciar da infância. O corpo irrompe em mundo ao lançar-se mundanamente no antes de todo instante. Não se dá conta do que seus olhos não alcançam, mas recolhe no lançamento de seu olhar o mundo que se ilumina à sua vista. Sente o que lhe é oferecido e encorpa em si tanto o mundo captado pelo que sente quanto a impossibilidade do que não sente. Então, a diferença não é resultado de estatísticas divergentes, mas o que concede na intimidade de cada coisa aquilo que lhes seja próprio.
Sumindo o mundo, some o corpo, o homem. Não porque temos uma relação de criação unilateral na qual vigora uma patriarcalidade dominante, mas porque no mundo temos uma mútua doação em que cada um se preserva como é. Tal conservação concentra na diferenciação dos entes o ser que lhes concede vigência. É um mesmo vazio que se dá, porém que se singulariza no enlace com a diferença própria de cada um. Diferença então é o limiar de reunião do que se difere e iguala enquanto entrelaçamento do que seja essencial em cada coisa. Em vista disso, podemos pensar que “[...] sentir é apenas um dos estilos de ser” (LISPECTOR: 2009, p. 99).
Por outro lado, o calabouço das sensações limita o sentir na delimitação dos sentidos, e isso é o que dá certeza à vivência: a instituição do presente como tátil. Só existe o que se dá ao toque, o que cabe no conhecimento do gosto, do cheiro... A prisão do corpo carnal agarra o mundo no exagero do sensório. Nele, o prazer do orgasmo é do tamanho do mundo que cabe no seu arrebatamento físico, e isso não parece suficiente. Daí a evocação do poema em prol do corpo, do homem, do nome.
Como não perder o nome em meio a tantos nomes? Como não ser homem depois de tantos homens? Como é ser e saber que (ou o que) somos enquanto estamos sendo? Como não tentar responder a pergunta que interrompe nosso sono, que ardilmente acalenta nossa fome, que atrapalha nosso sexo? Como não ser o que se é quando já somos o que não-somos na vigência do sendo? Como não cair em redundâncias? Como não fazer um parágrafo ou um texto inteiro só com indagações a respeito da impossibilidade de se responder a cada coisa interpelada?
“Como se faz um homem?”
Fazer um homem é criá-lo, e “criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (LISPECTOR: 2009, p. 19). Logo, o homem é uma incerteza, um ocaso de possibilidade do real. Nesta instabilidade, é construção contínua e modo de retenção do que se lhe apresenta. É um entre que conjuga em seu corpo a vida e a morte: um espaço de transição entre o ordinário e o extraordinário. Não tem a realidade a seu dispor, ela que o tem. Contudo, não é uma relação de confecção escultural e sim um engalfinhar-se de momentos, de matéria e (im)probabilidades.
O risco de se ter a realidade aponta o lampejo do ser, a fagulha que rasga o vazio, atravessando a tênue percepção do factível. A realidade é mais do que nossos sentidos alcançam, portanto, mais do que a medida de nossa visão ou densidade de nossa audição. A realidade é trânsito que se desapega do estático para se fundar no extático, ainda que confundida com a solidez do cotidiano mal interpretado; é a impossibilidade de ser abrangida numa definição. Neste caso, qualquer tentativa de fazê-lo é já uma investida passada, radicada na derrota de um ensaio conceitual, antes mesmo de sobressaltar a voz e ganhar a fala.
O fazer do homem homem é uma propulsão desejosa de paradas e nomeações. Não depende de um sujeito que abocanhe a autoridade sobre tal. Não é um deus repleto de atributos e nem tampouco as conjecturas cósmicas que alcunham sua autoria e responsabilidade. O homem é uma constante na qual fincar seu início é perdê-lo em meio às diversas tentativas de figurá-lo maquinalmente. Como se a busca pelo seu protótipo respondesse definitivamente à questão “como se faz um homem?”. Deste modo, cremos que:

Não há, não pode haver o primeiro homem, porque a natureza súbita ou i-mediata da vida, o acontecimento inaugural, quer dizer, sua estrutura de salto e, então, de círculo ou de circularidade, impõe que homem seja sempre já contaminado, sempre já poluído, isto é, sempre já constituído, determinado ou singularizado. Portanto, sempre já contaminado ou poluído de vida, do ou no viver que é o sempre já concreto, realizado, exposto (FOGEL: 2009, p. 44).

O homem é um corpo insólito. O corpo é sempre um risco de se ter o homem. É neste jogo que ocorre a permanência do humano, pois sem saber sua origem e possível fim, o homem se estabelece contínuo pela sua inconstância. Expõe-se na vicissitude de quedas irrompidas como improvisos de sua vivência, ou seja, é a própria teatralização da realidade em ser várias num só instante.
O corpo é completo em cada parte, não há constituição sistêmica ou partições residuais de funcionalidades que o situe especificamente: “eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede – sou cada pedaço infernal de mim” (LISPECTOR: 2009, p. 64). O corpo se arrisca em ter o homem em sua corporeidade, uma vez que este é já um rabisco de realidade, um traçado contínuo do ser no seu desdobramento de permanência. Uma morte constante que plenifica a vida em sua perseverança: a não-paragem de morrer é um viver incessante. Morre-se vivendo para que se viva morrendo. A redução deste alumbramento do real decorre da importância dada ao visível, coisa que já vimos se basear na limitação orgânica dos olhos. Um corpo que apodrece sua carne é tido como limitado em seu prazo de validade física, no entanto, sua vida é continuada nos vermes que devorarão sua carne:

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
(ANJOS: 1994, p. 209)

O corpo não é carne amolecida, apodrecida nos escombros de sua desvivência. Enterrar um corpo morto é possibilitar a efervescência de vida, é dar a este mesmo corpo a possibilidade vivificadora dos vermes e radicalizá-lo no terreno de sua nascividade. Pois, a terra é o berço da morte, a mãe que nos traz à vida, o útero no qual a experiência de todo um universo reside. Portanto, enterrar um corpo é crivá-lo e cravá-lo de nascividade.
O homem é um corpo irregular desde sua gênese, a simetria de sua errância é a incondicional permanência do incoerente. Ressignifica-se a todo momento, tentando comportar a realidade no seu real inventado, isto é, sua ilusão subjetiva o coroa como senhor de si mesmo, assenhoreando-se como detentor do inalcançável. Sem tautologia alguma, o mundo é o seu mundo e deste se pensa ou, pelo menos, tenta-se o total domínio: “Pare o mundo/ Que eu quero descer” (SEIXAS: 1976, faixa 6). O domínio do mundo é a retenção da realidade à sua (nossa) vontade, um enclausuramento às avessas, pois quando se pensa o gozo da liberdade a portas abertas, na verdade, nos trancamos na cela de nós mesmos: um corpo carcerário com grades de ossos e cama de adiposidade. A latrina... São nossos ouvidos e boca.
O corpo é sensação, percepção, captação do que nos atravessa os poros. Mas não só. É também o acúmulo do nada, um vazio gestante sempre prestes a acontecer. Assim, é algo ainda não nascido em sua própria caminhada de mortal-avivamento. A possibilidade de ser outro em si mesmo assinala sua liminaridade. Às vezes não sabemos se é corpo ou homem, se é morte ou vida, vazio ou inteiro. Entretanto, embora não saibamos, podemos nos deixar possuir por este não-saber e trilhar a passagem do não-visível ao visível. Assim, sabemos não-sabendo o que seja corpo, mais ainda, o que seja homem.
O corpo é uma questão. Eis uma afirmação que traz em sua positividade a negação de seu próprio enunciado. Pois, questão é o que sempre se redimensiona, que galga a perene travessia de ser, é um sendo. Portanto, se um sendo é sempre algo a ser e que está sendo, logo, a questão é a constância de um porvir. Um desdito afirmado em seu dizer, um não-dizer que se diz ao se encobrir no chão recoberto pelo pé durante uma caminhada. O corpo é então a certeza de uma incerteza que se incorpora na assunção do que não-é. Percorrer o corpo ao tentar pensá-lo é aceitar sua radicalidade enquanto questão. É não saber o homem, apenas conhecer um pouco da parcela do que nos chega pelos sentidos ou por nossa disponibilidade de abertura ao acolhimento do que se é.
Homem e corpo se fundem na praticidade de uma nomenclatura, porém sua proximidade os distancia no abismo de se perguntar pela essência de cada um. Cada pergunta nos conduz a uma queda sem fim, daí o temor em adentrar a questão, mais ainda, de nos deixarmos tomar por ela. Mesmo assim, como somos insistentes, sempre perguntaremos: como se faz um homem?

Referências

ALVES, Rubem. O Retorno e Terno. Campinas: Papirus, 1994.
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Especulações em torno da palavra homem”. In: Antologia poética. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
ANJOS, Augusto dos. “O deus-verme”. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
FOGEL, Gilvan. “Notas sobre o corpo”. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
HEIDEGGER, Martin. “A linguagem”. In: A caminho da linguagem. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. “Eu também vou reclamar”. In: SEIXAS, Raul. Há Dez Mil Anos Atrás. São Paulo: Universal, 1976.