8 de agosto de 2008

Permanência e atualidade da Poética - Revista Tempo Brasileiro (Nº 171)


Acabou de sair o novo número da "Revista Tempo Brasileiro". Nesta edição, temos ensaios de renomados professores, além de pesquisadores que se propõem a pensar as questões pertinentes ao homem em sua constituição humana, mais especificamente, as questões relativas à atualidade da Poética e sua permanência. Neste sentido, o leque de assuntos tratados se mostra bastante abrangente e provocador por viabilizar o pensar sobre aquilo que já se fazia estático em sua formalidade.

Um dos ensaios que compõem este número foi escrito por mim, o intitulado "Poética do teatro - reunião de corpo, terra e mundo". Então, com o intuito de promover o questionamento e dialogar com quem se dispuser a demorar-se neste blog, postarei aqui meu ensaio na íntegra.

Abaixo, então, deixo meu ensaio!

POÉTICA DO TEATRO: REUNIÃO DE TERRA, CORPO E MUNDO

Neste breve ensaio, propomo-nos a pensar o teatro. Isto significa que mais do que se posicionar sobre a dramaturgia, mais do que estabelecer uma conduta epistemológica em que depreenderíamos uma relação entre sujeito e objeto; pensar o teatro é deixá-lo viger no que é enquanto manifestação do atuar. Este atuar é o diálogo do ator com a obra teatral e com o seu lugar de atuação, ou seja, com o palco. Mas o que é este ator? O que é este palco? Diferente do esperado, este texto não compactuará com os jargões do ambiente dramático, tampouco se dará como mais um manual em cujos “corretos procedimentos da representação” se fariam presentes. Não. Este texto é um ensaio que se envereda numa escuta poético-ontológica, portanto, que procura o inaugural do pensamento no que se refere ao teatro. Então, aqui se desenvolverá o caminho do pensar, cujo único compromisso é o percurso que se revelará enquanto nos movermos imersos no questionamento.
Acima, perguntamos o que é o ator e o que é o palco. Contudo, este não é um perguntar que se satisfaz com uma adequada resposta, é um querer saber mais. Em outras palavras, é uma transgressão à acomodação proporcionada pela lógica dos conceitos. Pensaremos, aqui, o ator enquanto corpo, o palco enquanto terra e o teatro enquanto reunião na vigência de um mundo. Dito isto, iniciaremos nosso percurso com o que é mais recorrente na imagem conceitual do teatro: a representação.
Qual é a percepção mais comum que se tem do teatro? Qual a primeira referência que observamos ser corrente no senso comum ao se imaginar a atuação?
Sem esforço algum, a maioria das pessoas concebe: teatro é representação. Ou ainda num afastamento maior, o teatro é o lugar onde a representação ocorre pelas mãos do artista que presenteia o público com o esquecimento do seu ser através de um personagem. Esta última asserção não é de todo desprezível, pois carrega uma ambigüidade que merece a demora do pensamento.
A primeira coisa a ser pensada é a representação. Então, o que é a representação para além do que se pergunta?
Ao atentarmos no que a palavra “representar” é em si, podemos pensar em tal verbo como um trazer consigo, como o caminho que se revela numa referência a uma coisa. Portanto, o representar é um movimento inaugural na medida em que algo é representado no principiar de cada instante. A origem é referenciada no percurso do mostrar-se, uma vez que re-ferência nos diz aquilo que conduz à fonte das fontes; logo, encaminha-nos ao originário. Então, se representar é um movimento que não se extingue em sua inércia, qual é a questão da representação? Como podemos articular a representação como o esquecimento do ser?
Pensar a questão da representação e do esquecimento do ser é, praticamente, se ater à mesma discussão, haja vista uma imbricação evidente em que a razão e o pensamento ocidental elevam a dicotomia como principal ou única via de ação. Portanto, se há dicotomia, há um posicionamento mediante um contexto binário, onde só um dos lados é tido como correto. Neste sentido, se representar é uma tentativa de trazer uma ausência à presença, o problema se dá quando a dimensão d’o que é não é extrapolada. Ou seja, aquilo que é se representa no tamanho do seu mostrar-se. Assim, quando o ser é, deixa o abrigo silencioso do recolhimento a fim de se manifestar naquilo em que se apresentar. Por isso, a representação se reduz à aparência do como é quando medida pela limitação de um mensurar racional ou epistemológico. O ser enquanto possibilidade originária de um mostrar incessante e inaugural é esquecido em detrimento da necessidade de uma configuração estática. Representa-se apenas um símbolo, cujo sentido já se mostra obliterado do seu dizer originário. Se etimologicamente a palavra símbolo vem do grego symbállein, em que sym- se origina do prefixo grego syn (junto, que reúne) e –bolo, do verbo grego bállein, significando: pôr, jogar, lançar; símbolo é aquilo que se lança junto na diversidade do que é único: ente-ser como reunião. Esta reunião se atenua num posicionamento que não dá conta do sentido pleno de reunir, uma vez que o símbolo passa a ser uma presença abstrata. Ou seja, o diálogo entre a origem e o originário é cortado, impossibilitando o acontecimento do reunir.
Com o que foi dito acima, fica-nos claro que o teatro – não como espaço destinado a espetáculos, mas como reunião originária do homem – é visto normalmente em sua superficialidade. O importante, neste sentido, seria uma representação que almeja o entretenimento. Por isso tocamos na questão do esquecimento do ser, uma vez que, em uma representação com fins de entretenimento, o ser não é pensado. Ou seja, apenas se pergunta pelo como é. E o como é figura na dimensão da entidade, na funcionalização de um personagem vazio que se propõe a falar num intervalo temporal que não conduz ao pensamento, ao questionamento.
Se o teatro é reunião, significa que há partes a serem reunidas. Então, que partes são estas? Pensar em “partes” é sinônimo de pensar num retalhamento de um todo em pedaços a serem re-encaixados?
Quanto a estas últimas perguntas, a primeira nos remete ao homem que se move poeticamente na terra que o acolhe como filho. A terra doa o homem e o resguarda na pro-cura originária de sua vida/morte. É neste ciclo que da terra surge o homem como o corpo moldado por Cura, tendo em vista o mito de origem egípcia narrado por Higino que trata da criação do homem. Assim, não nos aprofundando muito, o mito em poucas palavras nos diz que: fingido do barro, Cura lhe moldou o corpo; Júpiter (Zeus) lhe deu o espírito e, ficando como árbitro, Saturno (Cronos) deliberou sobre a controvérsia do nome que tal figura telúrica teria. Já que Cura, Júpiter e Terra (Tellus) queriam se encarregar de tal ação, ficou decidido que teria o nome de Homem, por parecer ter sido feito do “húmus”.
É nesta constituição tríplice (terra/corpo, espírito e nome), porém não tri-partida, que o homem se dá como corpo pleno. Sua plenitude vige na não separação dos três elementos citados. Entretanto, embora tenhamos chamado de “elementos”, estes não são objetificáveis. Entendemos como sentido de união o que se funda na relação da identidade das diferenças do todo de cada parte na conformação da unidade.
Retomando a segunda pergunta acima feita, questionamos sobre o todo como somatório das partes. O homem é o todo também em cada parte, não é uma complementaridade de características ímpares que só se fundam em sua realocação lógica. A diversidade e a diferença habitam o homem enquanto unidade estabelecida na multiplicidade. Por isso, a totalidade de cada parte é em si um universo que desdenha do estabelecimento do pensamento moderno que prevê o homem geometricamente conformado. Isto é, tomando por base a dimensão mais exterior do pensamento matemático-científico, o homem seria racionalmente constituído como configuração orgânica adequado à funcionalização do raciocínio. É geometricamente proporcionado como produto ou somatório do meio a que pertence, daí que se Geometria nos diz, corriqueiramente, a medida da terra, duas coisas deveriam ser investigadas: saber que medida seria esta e saber o que é terra para além de um estabelecimento físico. Pois, certamente, o homem geometricamente conformado não se reduziria à contenção do metro como referencial de uma medida estabelecida pela abstração de espaços reunidos no que se arbitra ser uma escala. Aqui já teríamos, no mínimo, dois problemas: A) Posto que seja segmentado num intervalo contido no espaço arbitrado entre quilômetro e milímetro, qual é o princípio do metro quando extrapolada a escala na qual se insere? B) O que é o medir quando este é decomposto da abstração métrica do somatório e pensado junto com sua origem etimológica: métron? Portanto, o que é isto - métron?
A Geometria é uma via de pensamento que põe o homem em diálogo com o mundo. Logo, é mais uma realização do real manifestada na multiplicidade e ambigüidade do viver, já que nos conduz a pensar qual é a medida (-metria = métron) do habitar do homem na terra (geo- = terra). Não cabe à Geometria meramente a afirmação de uma função enquanto ferramenta que serve ao homem na compreensão das coisas. Ela é em si um mundo que se dá no agir humano enquanto pro-cura originária, isto é, é mais um caminho que afirma o homem na tensão do questionamento, é mais uma possibilidade dentre a infinitude de caminhos que abarca o homem no seu viver. E viver é a radicalização de todos os fins, é a eclosão múltipla de caminhos não-lineares, é a desierarquização do homem como personagem historiográfico que tem por meta apenas a obediência à cronologia metafisicamente estabelecida pela sociedade. Portanto, o homem não é um conjunto retalhado em partes que se totaliza no re-encaixamento das mesmas, mas é a totalidade do todo abrigada em qualquer parte do homem-humano.
A questão da Geometria é pertinente à nossa discussão quando escutamos sua proveniência etimológica: Geo-metria. Geo- nos diz Gaia: mãe-terra, surgimento incessante de vida. Mas que vida? A bio-lógica? Sim, também. Entretanto, bíos enquanto vida de proveniência genética se funda em dzoé: a vida originária. Dzoé vem do verbo grego dzén e significa o próprio surgir e abrir-se para o aberto (CASTRO, 2004: 62). Temos, então, a nascividade, o mostrar-se constante e excessivo que se abre na abertura do aberto, inaugurando a vida (bíos) enquanto novidade sempre a acontecer (dzoé). Dessa maneira, Gaia é doadora do homem, é a terra que o afaga em seu habitar, antecedendo-o para, enfim, reconfortá-lo na culminância de seu tempo metafísico, de sua idade expirada em morte para o assombro da vida como acontecimento poético. Este desdobramento zoogônico do homem nos faz pensar em sua atuação telúrica, portanto, o homem como corpo que atua na terra, uma vez que esta é palco.
O homem é um corpo que se apresenta e, nesta apresentação, atua no palco enquanto terra. A partir do momento em que se propõe a dar vida a uma obra dramática, dá-se por inteiro quando, em vez de fazer uma escolha subjetiva, atende à convocação da arte e se entrega ao operacionalizar de determinada obra: é o atuar na vigência do atendimento ao sincero chamado do desconhecido, do que está por se revelar. O homem/ator não é uma entidade que perambula um texto, que torna em falácias os diálogos de determinada obra ou que gesticula sem se dar conta do “fazer vir” habitante do gesto, quando experienciado em sua radical densidade. Uma obra dramática re-vivida é o renascimento do corpo no canto, na dança, no gesto. Renascido e acolhido no diálogo com a linguagem, o corpo dialogará consigo e com o outro a um só tempo, sem qualquer permissão cronológica, ou seja, acontecerá o sagrado, o ritual do corpo que nasce e renasce a cada instante grávido de instantes. O pacto poético terá vigência na possessão do homem pelo espanto. Admirado, poeticamente inaugurado, o homem age e este agir é o atuar, é a escuta do ser.
Transbordante de luminosidade, o homem atuará. Este atuar é a eclosão do excessivo no homem, é a humanidade aflorando violentamente na dinâmica de recolhimento tensionada no gesto, posto que:
Ao pensarmos o gesto como o recolhimento do trazer, somos instigados a olhar o corpo que tece e que é tecido, fazendo desta leitura a escrita que desenha no movimento o atravessar de caminhos, que reúne em si a força, na unidade que se funde no espaço e no tempo. A ação de tecer surge como presença, é o fazer da experiência o lugar do acontecimento originário, da fala, do ser; logo, da linguagem como produção de sentido. (CALFA, 2006: 71)
Pensando o trecho acima, o corpo é a fusão do tempo e do espaço no acontecimento do recolher, ou seja, é a cisão do comum, o desprendimento da retórica cotidiana de uma vida surda; de uma vida que não vive, que não habita a travessia do estar vivendo, posto que apenas se repete no paradigma de uma vivência alheia. Uma vida surda é aquela que emudece seus ouvidos à escuta do apropriar-se. Portanto, uma vida que não busca seu próprio não vive, reprisa-se.
Ao tecer, o corpo se presentifica. Este presentificar reúne no atuar a ambivalência entre fala e escuta e constrói um tecido poético do qual retira sua vestimenta. Em outras palavras, o ator sensível trabalha a dinâmica do entre-atuar quando se abre ao céu num gestual de preenchimento dado na escuta à fala do ser, enfim, à linguagem. Ao mesmo tempo, permite-se ao abraçar telúrico que o resguardará no silêncio da terra, uma vez que o ator só poderá falar se antes estiver entregue ao silêncio. Este é o movimento circular-poético que permite o teatro acontecer originariamente, ou seja, é na sinceridade e na sensibilidade do homem enquanto humano que o atuar se propõe a elevar da ausência a sua aparição.
O corpo-ator tece e é tecido a cada movimento que transcende a rotina da mecanicidade do corpo-estrutura. Este, por sua vez, é trancafiado no molde da representação enquanto entretenimento, calando-se num infinito escuro, na cegueira guiada pela luz racional. O racional apenas dá voltas, isto é, no seu conduzir não há a abertura para o salto que transformará o círculo vicioso do representar moderno no círculo poético que rompe qualquer tipo de enquadramento estilístico. Assim, o corpo se mostra como um organismo carente da manutenção alheia que fixará a rota a ser percorrida. De outro modo, este organismo-estrutura apenas cumprirá o traçado que lhe foi determinado, num percurso insosso, por estar desprovido do sabor da experiência poética do viver.
Se no início deste ensaio falamos no esquecimento do ser quando, na atuação, se prima o representar como personificação do “como é” calado do diálogo com “o que é”, podemos agora pensar em outra dimensão: a lembrança do ser enquanto memória. Ao pensarmos em memória, as primeiras referências que nos vêm são: recordação, reminiscência, enfim, lembrar de algo que já passou. Certamente, a memória não exclui tais ocorrências. Entretanto, esta é uma faceta bem comum e superficial que não dá conta da complexidade da memória quando dialogamos com a concretude dos mitos gregos. Assim sendo, memória é Mnemósine, filha de Céu (Uranos) e Terra (Gaia) e, de sua união com Zeus, nasceram as Musas. Neste sentido, temos na memória o sentido de unidade quando ela se principia na relação entre céu e terra, retrospectivamente, e é doadora da correspondência entre homem e linguagem no horizonte do ser, prospectivamente (Cf. JARDIM, 2005: 126).
A unidade se configurando realidade é a atuação se dando mais do que uma representação metafísica, é toda a complexidade da articulação homem-entre-ente-ser. Isto é, se complexidade é aquilo que se dobra ou flexiona com, então é um desdobramento do ser em cada ente, da obra em cada operacionalizar. Deste modo, da tensão entre céu e terra, o homem-ator cumpre o apropriar-se de seu destino ao ser ungido e iluminado pelo ser, dando-se completamente ao atuar na liberdade da clareira que tanto se ilumina quanto se obscurece, posto que iluminar é conduzir algo para o livre, é conceder vigência (HEIDEGGER, 2006a: 244). Neste sentido, temos um ator sensível, isto é, aquele que se abre às experienciações de possessões divinas; aquele que escuta a obra, dialogando com sua complexidade e se deixando habitar na clareira. Mas, afinal, que clareira é esta? Um espaço aberto na multidão dos espaços? Uma fenda que se alarga na escuridão do “já sabido” enquanto símbolo do raciocínio moderno ocidental?
A cada passo dado, o breu do desconhecido se abre ao caminhar poético do ator. Com isso, vemos que não é um mero somatório de passos transcorridos, mas uma andança vislumbrada no horizonte do ser. Ou seja, se o andar é um mover do poético, então é, antes de mais nada, a “poiesis” se dando enquanto agir do ser do homem no percurso da inaugurabilidade humana. E isto quer dizer que, encharcado pela luz do ser, o homem-humano-corpo entre-vive tanto quanto entre-morre. Viver é um morrer contínuo que se alarga na dimensão do agir e o agir é o morrer deixando a vida acontecer na existência do homem. Daí que, se existir é o ser se doando no que é enquanto homem, temos a manifestação presencial do homem que é posto em cena. Entretanto, o movimento de “pôr em cena” só acontece mediante a disponibilidade de um viver. De outro modo, retomando a andança do homem-ator, à medida que este avança, o avançar eclode um aparecer do que está à sua frente, um iluminar momentâneo que tem a duração do espanto possibilitador do andar (eis a disputa entre terra e mundo, contudo, suspenderemos esta discussão por enquanto). Ao mesmo tempo, o avançar recolhe a escuridão do que se mostra e a devolve ao silêncio do que está prestes a eclodir. Portanto, o avançar é o caminhar entre o que se mostra e o que se obscurece a um só tempo. Só nesta dinâmica experienciada no entre do desvelar e do retrair é que o ator se põe em cena.
O pôr-em-cena é o habitar da clareira no atuar do ator, haja vista ser a clareira não o lugar onde se dá a sucessão da luz e da sombra, mas é o próprio iluminar da luz enquanto recolhimento ao silêncio-escuridão do nada, explodindo no empenho de viver-atuar. Desta forma: “Viver é deixar-se libertar para e na poiesis, no agir que dá sentido a toda ação de viver, pois viver é sempre um empenho de ser” (CASTRO, 2006: 10). O empenho de ser dá ao homem a dimensão do entre quando o mesmo se vislumbra na clareira. Tal vislumbramento é o espanto que retira e dá a luminosidade do atuar, ou seja, a clareira é o que disponibiliza tanto o atuar quanto a cena. Pois é nela que há a convergência de todas as divergências, posto que não seja um estabelecimento racional.
Espantado, o homem-ator dialoga consigo, com a obra e com a linguagem: canta e dança. O canto e a dança não são modalidades artísticas representativas de alguém que faz da arte fonte de renda para sobrevivência, até porque a arte, neste contexto, nada tem a ver com a manifestação da verdade no entre do velamento e desvelamento, mas com a instituição de fonte empregatícia. Logo, a arte, ainda neste contexto referente ao senso comum, seria a generalização das atividades manufaturadas ou industrializadas que têm por fim o lucro financeiro necessário ao sustento de qualquer trabalhador. Por esta via, o canto e a dança seriam apenas duas das diversas modalidades que congregam o mercado de trabalho. Contudo, este não é o foco de nossa discussão. Deixaremos a representação da arte, do canto e da dança como algo circunstancial ou conjuntural e procuraremos, então, nos encaminhar à essência da arte ao dialogarmos com o cantar e o dançar enquanto o agir do homem.
Se a essência do agir é o ser, o homem é uma doação do ser, por isso, por mais que nunca o saiba completamente, o terá sempre consigo. É nesta dinâmica de manifestação ambígua que experienciamos a arte. Esta é o que se dá na medida em que se retrai e neste dar-se-retraindo-se a verdade nos é presentificada. Logo, podemos pensar a arte como o caminho essencial do encontro entre o homem e o humano. O homem é, então, uma doação da arte, dando-se como obra máxima. Nesta perspectiva, o cantar e o dançar habitam o bojo do agir e conjuntam a ruptura de um representar metafísico, ou seja, a representação que apresenta só o que já se mostrou no homem enquanto corpo-ator.
O homem-ator só fala porque já é o próprio cantar; assim como só se movimenta por ter vigência na dança. Então:
(...) falar é romper, é revirar, é ocupar o seu lugar, e não somente comunicar e se exprimir; é principalmente habitar-se. Se a Dança é uma manifestação de um falar poético, tecendo o tempo e o espaço, é o aparecimento de um lugar que liberta (CALFA, 2006: 72).
O lugar que liberta aparece na dança como corpo que fala e atravessa poeticamente a conjuntura tempo/espaço. Portanto, toda travessia nos diz um entre, uma tensão entre o aberto que se desvela e o esconderijo do que se vela manifestando o espaço do palco enquanto terra. Aqui retomamos a clareira como proveniência originária do lugar da atuação.
O palco é terra. Mais ainda, é a clareira onde se dá a atuação. Tendo em vista que não nos referimos à atuação como execução de uma função dramática de entretenimento, o atuar é a respiração poética do homem. Ou seja, é no entre-inspirar-expirar que o homem-ator se lança na questão que desde sempre já o tomara. Esse lançar-se é, então, o apropriar-se do seu próprio, é dar vigência à plenificação do destino.
Referimo-nos à fala, à travessia e à respiração poéticas. Neste caso, podemos considerar este poético como mero adjetivo? Sem dúvida que não! O poético não é só uma forma de caracterizar atitudes ou nomes, mas é o que possibilita o homem se manifestar em ações intimamente ligadas a terra, já que “Se o palco é terra, nele nos abrigamos e dele nos originamos” (PESSANHA, 2007). Dito isto, observamos que a partir do verbo grego poie/w - que diz “o agir” – temos as palavras “poema”, “poesia” ou “poético”. Logo, essencialmente, todas têm em sua raiz a manifestação do agir, isto é, conduzem-nos à vida como um acontecer inesgotável. Inauguramos e somos incessantemente inaugurados no e pelo tempo e este é a abrangência mais radical do que somos enquanto entre-ser. O tempo é também memória, pois é tudo que foi, é e será; além de se manifestar enquanto clareira na medida em que recolhe a dinâmica de tudo aquilo que se dá ao se retrair.
Falar, atravessar e respirar poeticamente é já um habitar na habitação do palco-terra quando o poeticamente reúne estas três formas de manifestação do entre. Logo, a palavra poeticamente nos conduz à dimensão de um modo de agir poético enquanto doadora de realidades. Neste contexto, o filósofo alemão Martin Heidegger nos esclarece e soma à discussão a articulação entre poesia e terra: A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar (HEIDEGGER, 2006a: 169).
Certamente, o habitar mencionado não se refere à moradia enquanto domicílio, mas suscita o resguardar. Tal verbo significa devolver uma coisa à sua essência. Assim sendo, o homem-ator habita a terra enquanto palco na radicalidade da poiesis. Então, o atuar é a cena que se dá no recolhimento do habitar quando o teatro é, poeticamente, a eclosão da clareira. Em outras palavras, podemos pensar que a clareira doa o palco enquanto terra e resguarda o homem enquanto corpo. Este atua e o faz também num jargão metafísico e, com isso, temos o ator. Na medida em que habita o palco, o homem-ator é essencialmente poético; e isso quer dizer que está aberto ao livre da poesia e todo seu gestual é um recolhimento de dança e canto. O tempo é o tecido que encobre o corpo manifesto enquanto se dá ambiguamente na correspondência ao ser. Da linguagem provém sua fala e esta é o registro do que se perde e aparece no que é dito, quando este o que é dito se vela no silêncio a que tende todo dizer.
É pela ambigüidade do aberto que doa o palco como terra e se abre ao aberto do céu que podemos ter a clareira. A clareira vige na dinâmica de mundo, ou seja, é na inter-relação entre o palco-terra e o homem-corpo-ator que compreendemos o sentido de mundo. Mais ainda, temos nesta indissociação do que seja o teatro, o mundo como doador de realidades. Portanto, está radicado na physis, uma vez que esta é (...) o vigor imperante que produz todos os fenômenos, é o real das realidades (CASTRO, 1982: 109).
Quando, habitualmente, se pensa em mundo, a idéia que surge é a de totalidade, universalidade das coisas. O mundo como um aglomerado de dogmas religiosos (mundo religioso), como convergência do modo de pensar do ocidente (mundo ocidental), como generalização de pessoas (por exemplo, “todo mundo fez tal coisa”) ou mesmo como significação do completo espaço planetário ou como sinônimo de universo (o mundo em que fisicamente vivemos). Entretanto, o mundo ao qual nos dirigimos, tomamos e somos tomados a um só tempo não é este descrito pela metafísica, mas uma experienciação poético-ontológica no pleno vigor da tensão do acontecer. É um mundo no qual se dá o humano do homem e onde o atuar é a disputa terra-mundo que dinamiza a manifestação do palco como lugar da arte vigorando na interpretação e no diálogo do homem com a linguagem. Portanto, o palco-terra é o lugar do sustento misterioso do atuar, ou seja, é sustento no sentido de resguardo por devolver o artístico ao abrigo de sua essência no mesmo instante em que vela o fazer arte. Por isso é misterioso, por não demonstrar completamente este fazer, haja vista que não é um fazer como algo já completado, mas um fazer que se faz fazendo, logo, o fazendo é o não cessar de algo que acontece inesgotavelmente.
O mundo, na dimensão da physis, abarca toda ação e não-ação, todo operar de uma obra que não se exaure em encenações. Cada espetáculo é um novo mundo que se instala como realidade e instaura outras realidades. Então, não há uma perspectiva única do que seja mundo, mas este se dará tantas quantas leituras se realizarem acerca da cena, ou melhor, acerca do diálogo vigente no acontecimento do atuar enquanto relação entre o palco-terra e o homem-corpo-ator.
Se teatro é a reunião do corpo-homem com o palco-terra numa encenação que vigora no aberto da clareira, podemos fazer uma leitura deste acontecimento como mundo. A própria palavra teatro já nos diz uma reunião, ou seja, do grego théatron temos o significado de lugar de reunião (PEREIRA, 1969: 263). Assim sendo, o mundo é a vigência do teatro enquanto reunião essencial do homem com sua origem. É enquanto terra se doando que temos o homem como obra de arte proveniente da disputa entre terra e mundo. Esta disputa não significa discórdia, mas nos indica uma elevação para além de si. Na disputa, cada um se apropria do seu próprio ao se encaminhar para o originário. Este encaminhar é o entre-caminho que aponta para o velar-se no ser enquanto doador de todo ente. É uma relação indissociável em que terra e mundo se dão diferentemente, porém não separadamente. O mundo é a abertura para que a terra apareça e este aparecer é a eclosão do mundo, ou seja,
A Terra não pode passar sem o aberto do Mundo, para ela própria como Terra aparecer na livre afluência do seu fechar-se em si. O Mundo, por seu lado, não pode desfazer-se da Terra, para ele, como amplitude vigente e via de todo destino essencial se fundar em algo decisivo (HEIDEGGER, 2006b: 24).
Portanto, o teatro é a irrupção do mundo tanto como mundo teatral quanto como a abertura para que a terra se manifeste enquanto palco que abriga o repouso do teatral.
Uma outra possibilidade de leitura se dá na percepção do que a palavra théatron traz em si mesma, ou seja, théa significa a oferta de um mostrar-se, o delineamento daquilo que se apresenta num presentear (Cf. HEIDEGGER, 2006a: 45). Dito isto, podemos meditar com o que, em paralelo com reunião, o teatro seja enquanto doador de uma fisionomia. Em outras palavras, é o que viabiliza a conjunção do que se propõe a reunir no vigor do que se diferencia por traços singulares.
A fisionomia nos informa o nomear da physis no incessante presentear da atuação, posto que a excessividade poética do real em realidades desdobradas no aparecer do ator vislumbra o não-visto na visibilidade presencial do estar em cena. Mas, o que nos é ofertado neste aparecer? O que é que na presença se oculta para se recolher no mistério do não-encenado?
Possivelmente, este movimento do que se oculta na presença configura a geratriz do que no gestual do ator se desdobra o diálogo com o sagrado, o ritual de consagração do corpo físico em poético, uma vez que acontece o agir profundo e originário da physis. Este é o instante sublime de decomposição da materialidade metafísica no movimento inaugural da atuação. O homem se manifesta na fronteira genético-poética, isto é, insurge no limiar do físico para uma viagem catabática à sua essência. Neste instante inefável, há a demora do princípio como constituição de um principiar que, em seu percurso, conduz o homem à sua humanidade. Eis a dinâmica da escuta ao silêncio da terra: o palco se abre no vazio para a iluminação do atuar, na medida em que este atuar se dá na encruzilhada entre a experiência primeira de um nascimento e o atravessamento da morte enquanto consumação poético-apropriante.
Uma peça de teatro enquanto realização de um operar nada tem a ver com a propaganda disseminada pelas vias midiáticas, mas sim com a sacralização do homem-humano em correspondência com o ser da obra. No percurso em que tal homem pergunta por sua essência e se lança na pro-cura de sua cura, acontece a consumação. Então, regido pela poesia enquanto agir originário (poiesis), o ator se movimenta e age poeticamente, isto é, avulta a ressonância das vozes que o tomam numa ruptura com toda a logicidade racional. Dá-se o homem-ator destinalmente na alegria do vir-a-ser incessante, na possessão pelo entusiasmo: o taumadzein.
A Poética do teatro retira do teatral a simploriedade da seqüência mecânica de ações para se lançar na profundidade do incomensurável. Assim sendo, dá ao teatro o seu próprio na proporção poética do não-agir, do não-visível, do não-ser. Meditar a Poética do teatro é repousar no desassossego do que nunca se estagna, pois Poética diz respeito às questões que antecedem e atravessam o homem da mesma maneira que ela mesma enquanto questão é originariamente uma tomada de postura não realizada pelo homem, mas em correspondência com ele. Assim, não é mais uma configuração conceitual em que se estabelece um paradigma de pensamento, mas a ruptura da marcha do caracterizável, do definível circunscrito numa área delimitada por sua fronteira. Demorar-se na Poética em diálogo com o teatro é deixar vir o acontecimento do paradoxo, na medida em que, na permanência do convívio com as diversas áreas artísticas, o teatro se funda original e originariamente.
O teatro pensado poeticamente se manifesta no deixar-se tomar pelo vigor da poiesis, dando-se como experienciação única do acontecer do teatral e da via intersticial de consumação do humano do homem. Dissemos intersticial exatamente porque a Poética do teatro é a vigência do paradoxo no habitar do questionamento que desvanece a estaticidade da atribuição conceitual enquanto paradigma estabelecido. Assim, é somente com esta atenção que poderemos auscultar o teatro na dinâmica de seu operar como o que reúne e faz ver com o corpo em plenitude de sentido.
O palco enquanto terra é o resguardo do corpo e da própria disputa terra-mundo que pede o silêncio. Um silêncio diferente de um calar-se, de um emudecimento criativo. Pelo contrário, pede-se o silêncio grávido de todas as vozes, de todo cantar. Um silêncio que indica o repouso não como movimento que cessa, mas como auge de todo um movimentar que, por sua excessividade, tende à quietude originária. O silêncio do corpo que dança e, por isso, mundifica-se. Afinal, o humano é mundo e eclode no abrir-se à luz da verdade. O homem é dança e por isso se movimenta, podendo atuar. O teatro é o humano, é o mundo mundificando enquanto arte. Daí questionamos: o que é isto, a arte? Eis um questionamento que nos lança no horizonte de nossa questão maior: o que somos enquanto entre-ser no indizível da arte?

Referências bibliográficas

CALFA, Maria Ignez de Souza. Interdisciplinaridade e Dança. In: Revista Tempo Brasileiro. Nº 164. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. [p. 65-79]
CASTRO, Manuel Antônio de. O Acontecer Poético – A História Literária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994
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___________. A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. Mimeo. 2006b.
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STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

4 de agosto de 2008

Um pouco de música brasileira em nosso blog!

A emocionante história da música brasileira, nossa arte maior, via sons e imagens raríssimas de ninguém menos que Pixinguinha, Cartola, Noel, Gil, Edu, Nara, Macau...

É só clicar no link abaixo e assistir ao curta "Álbum de Música"!

ÁLBUM DE MÚSICA