17 de junho de 2015

O desencontro dos contrários em Paulo Leminski: quando o poeta se restitui à palavra que é

Texto originalmente publicado no site Obvious Magazine, em: http://lounge.obviousmag.org/verbo_inverso/2015/01/uma-cisao-se-abre-nas.html

Uma cisão se abre nas mãos de um colecionador de regras gramaticais para fazer jus ao nascimento do poema. O estratagema das rupturas infesta preceitos, rasga normas, fecunda absurdos, dá margens ao homem voltar a ser palavra.
O poema é tirano: cria reviravoltas no interior do céu e conclama o poeta aos rabiscos na pele da semântica. Seja rascunho, mar, folha, papel ou terra, o poema nasce na velocidade do inefável. O sol é risco luminoso no parapeito da frase encantada por escórias, o poema é glória. O contrário de sua trama funda “desencontrários” na escrita arredia que foge ao ritmo, ao empenho de ser forma fria de métricas e lúcidos porvires.
Paulo Leminski, poeta dos encantos tonais, mora nesse lastro. Sua palavra é cura, cuidado no nascedouro do verbo. No encontro com sua dicção, deixa-se ser linguagem e se confunde nos idos dos poemas. Sua casa é voz, sua cama é foz por onde espumam elocuções desencontradas de acertos linguísticos. O poeta reclama sua fala no vislumbre do verso encostado em absurdos. E confessa:

desencontrários

     Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
     Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
     Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

     Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
     Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
     para conquistar um império extinto.
(Leminski, 2013, p. 190)

A palavra não obedece. Quanto mais recebe ordens, mas urge parafernálias sintáticas. Seus escombros habitam fundos, sua rima exige cores. Mandar a palavra rimar é o mesmo que pescar no avesso do mar, quando peixes lançam anzóis para o fundo do infinito à procura do sentido humano da queda. O humano não tem reza, é fúria e correnteza. E disso a palavra sabe, disso o poeta desconfia, mas insiste! Manda a palavra rimar, e ela desobedece!
Fala-se de tudo: “em mar, em céu, em rosa,/ em grego, em silêncio, em prosa.” O poeta hesita ao se enfiar nesse labirinto de sentidos. Leminski tenta, imerge-se poemático... e insiste! Persegue a sílaba, e ela mostra seus trejeitos: “parecia fora de si”! No silêncio de sua presença, a palavra se desconstrói, reinaugura-se em sua estrutura, inventa o lugar de suas tramas por onde o poeta persiste em errar, e erra por desmando de coerências.
Poetas são serem imprecisos, dormem nos interlúdios das canções, abraçam o pôr do sol a cada entardecer verbal. O verbo é um insulto aos cabrestos normativos porque repercutem ocasos em suas entranhas. E apesar de tantos entretantos, os poetas obstinam-se! Existem no meio do caminho de cada pedra drummondiana, habitam os interstícios vegetais quando prendem o homem na prática do limo barriano, voam Galáxias em Campos de palavras, a fim de monumentar o voo linguístico do poema.
Leminski, tomado pela linguagem, sendo outrado por silêncios e desvãos, insiste! Atravessado pela voz do verbo, não desiste: “Mandei a frase sonhar/ e ela se foi num labirinto.” A frase não sonha o sonho ordenado... Pura ilusão essa intenção de pôr rédeas no ritmo solene da palavra quando ela se deriva em encantamentos! A frase sonha o sonho desencontrado, reinventa o caminho por onde passam os risos dos lábios que ainda não nasceram. Torna o tempo o andor das sagradas mãos, estas que se desenham espalmadas no infinito e por cujos dedos resvalam labirínticos versos. Veios por onde deságuam o prelúdio de uma nova imaginação.
A frase ida num labirinto reconduz a terra à fertilidade. Cada pé enterrado rediz o passo rumo ao seu desencontro, e este é errância palavral, escombros litúrgicos onde joelhos se corrompem sãos. Mas o “pauloleminski/ é um cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau a pedra/ a fogo a pique” (Leminski, 2013, p. 102), por isso não cansa, não desanima e insiste: “Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.” Seu destino é ser estância, sua margem o predestina para correnteza, e vai galgando palavra por palavra até limiar o sumo, até descascar o sentido turvo de uma ideia. Sentir, apenas isso, é ser o que se inventa por imagens e imaginações, e disso o Pessoa – outro poeta de desencontros vários – muito bem sabe, conforme vemos no poema “Isto”:

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(Pessoa, 1980, p. 104)

Tal qual o terraço alçado por cima daquilo sobre o qual não se empreende certeza, Leminski se ergue frontalmente palavral, marginal (de margem, no sentido mais guimarãesrosiano possível), e sua crise semântica vai desobedecendo ao que se chama imposição da ordem natural das coisas.
“Sinta quem lê!”, o comando foi dado pelo mestre do outrar-se – Fernando Pessoa – quando este se desdobrava identitariamente ao ser guiado pelo silencioso abismo da linguagem. Também desencontrado de identidades, Leminski colabora com o desafio de ser turbilhão constante, invencionando letras no emaranhado sintático da língua.
O desencontro dos contrários – “desencontrários” – redesenha a imagem do rigor. Aquilo que se evoca e ordena diverge do chão nos chamamentos rotineiros. É preciso ser torto para cair direito, é necessário perder-se nas próprias ordens para encontrar-se poeta, e sentir... Ser o sentido incoerente das coisas na ambiguidade de horizontes, pois nascer poeta não é fácil... Ser o destino para o que se nasce é mais difícil ainda, mas Leminski insiste!
Tomado pela poesia, esta lhe sopra aos ouvidos: “Dar ordens a um exército,/ para conquistar um império extinto.” A ordenança é um imperativo atado às suas vestes, é um ato que reitera o mandar e desmandar; requer a prestação de contas com seu interlocutor, ainda que este seja uma invenção mal formulada. No entanto, tudo que se extingue é poesia, e se extingue porque morre, porque é vivo. Mas não morre para acabar, e sim para continuar na transitoriedade do que amanhece e se põe ao longe. O longe não é o que está lá, distante dos olhos, mas isso que bate aqui, no peito da palavra; ser onda no mar que quebra inconstante nos olhos de quem sente e vê. Ver é ser mais que aparência, é habitar a imagem que se funda no interior do olhar, no corpo que se irradia a cada gesto, e gesto se remete a gestar: fecundar existências.
Podemos ousar e pensar que a conquista de um “império extinto” seja isso que fomente a imagem da inutilidade poética. Afinal, poesia serve para quê? E que bom que não seja útil para nada, pois se extinguiria (no solene sentido conceitual de não voltar a dar as caras) após findar sua necessidade prática. E o Leminski, fazendo as vezes de ensaísta, ratifica essa ideia:

Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico (2012, pp. 86-7).

Lucrar com o poético seria o mesmo que promover o alistamento para exércitos bastardos de seus próprios colhões. Não há o que dizer da palavra feita para acabar: a poesia é restolho de fim, um fim fértil para nascimentos; e os poetas disso sabem muito bem. Vivem na contínua nascedura de suas falas, na intermitência de horas raras para o nada.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. “No meio do caminho”. In: Antologia Poética. 16ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
BARROS, Manoel de. “Protocolo vegetal”. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. 2ª ed. revista. São Paulo: Ed. 34, 2004.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
______. “Inutensílio”. In: Ensaios e anseios crípticos. 2ª ed. ampliada. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
PESSOA, Fernando. O Eu profundo e outros eus: seleção poética. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.