8 de janeiro de 2011

Resenhando Eduardo White


Quase ia me esquecendo de divulgar aos leitores deste blog que a resenha que escrevi sobre o livro Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001), de Eduardo White, foi ao ar na revista O Marrare recentemente.
Deixarei minha resenha disponível aqui também, mas quem preferir baixar o texto em pdf, é só clicar no link da revista e baixar o arquivo de lá. Boa leitura a todos!

Entre insônia e Deus: interlúdios de linguagem

Publicado em 2001, o livro Dormir com Deus e um Navio na Língua, de Eduardo White, é um arremesso de instantes nos quais a insônia se conflita com o sono. Deste embate, ruas se tornarão visíveis e nos levarão a improváveis destinos, pois a cada leitura um novo rumo se dará a conhecer. O livro nos traz ainda uma agonia latente da qual nos tornamos cúmplices, pois nos fazemos parte de uma poética de assombros, de uma escrita que nos retém e nos envolve numa dança irresistível.
As páginas ou o ano de edição são pretextos de infinitudes, não importando se o livro seja o mais recente do autor. E isto torna esta resenha autêntica no sentido de ser atual, não se detendo num novo que é conceituado como “o mais recente”. Afinal, uma obra tem a idade da experiência evocada naquele que é atravessado por ela, traçando nesta relação um surto de ambiguidades e imbricações, deixando a poesia existir ao seu tempo próprio.
Entrar no livro é acatar a ordem que de súbito se enuncia: “Quero dizer” (p. 9). Logo, devemos escutar e embarcar num navio, este que fere superfícies, marcando na imensidão do mar (linguagem) o caminho que é presente na sua ausência, quando as ondas engolem o rabisco de seu casco. Embarcar na língua rumo à linguagem significa sermos segurados pelo leme que nos conduz ao interior de uma navegação íntima, aprofundada no mistério de um mar que nos navega. Com preces não detidas em orações verborrágicas, os poemas – que se alargam como uma malha de escrita, onde parecem parágrafos e na qual todas as questões presentes se fazem ecoantes – nos faz singrar pelo rasgo aberto de uma poesia que deturpa momentos, não porque seja um intencional agente ácido, corruptor de cronologias, mas porque já é inevitavelmente a própria corrupção do que se pretenderia inatingível.
Este livro é elaborado a partir da tensão entre a insônia excessiva e o sono almejado. E é exatamente esta tensão que dinamiza o ritmo das palavras, pois aquilo que se busca é tanto mais intensificado na véspera de sua eclosão do que no instante de sua realização, tendo em vista que o aparecer é um lampejo que não se detém em limites, mas se conserva na totalidade do seu brilho. Tal tensão se desdobra em promiscuidade, ensejando que a insônia também se realize durante o sono, uma vez que no diálogo com Deus as questões efervescem de seu descanso, da mesma forma que o sono se dê nas salpicadas memórias do cotidiano, quando a lucidez é pano de fundo para a imersão num ser que é “sendo”, num viver que é “vivendo”.
Como uma sala que se expande a um olhar visitante, uma poética do cotidiano vai se criando, amarrando a língua exercida ao pensamento e à fala, um quadro pintado com as cores de uma realidade que derrama e cria, funde e perpetua a linguagem. Assim, a insônia que acolhe profundidades de vivência traz aos leitores um punhado infinito de verdades, as quais são retiradas de banalizações pedestres. Então, imagens e lembranças são decalcadas de moradas insossas para a iridescência de realidades fundadas como instantes inapreensíveis, em que a única maneira de tê-las ainda com a permanência de seus aromas é vivê-las poeticamente, realizando-as com a língua: “A minha língua é um acontecimento nestas lembranças todas que me chegam. Resulta num presente que é um facto analítico na minha alma, um impulso para o seu conhecimento, um arremedo de vida sobre a sua razão, uma música evocativa para as minhas sensações” (p. 27).
Junto com a linguagem e com a língua, e sem riscos de tautologia, o navio é o caminho com que se caminha no caminho, singrando vestígios de língua no mar inesgotável da linguagem: “Um navio nunca é só uma língua, lembremo-nos, e, definitivamente, uma língua pode ter um navio. [...]. Um navio é uma existência com essa rota. Uma língua estende-se, um navio parte. Uma anterior ao sentido exterior do outro” (p. 10).
Com pinceladas que misturam na tela poemática sensações e erupções de instantes, um bar, um restaurante chinês, uma amiga que parte, a sensibilidade de ser pai com os filhos, uma casa e suas aranhas, estes são universos que se desprendem de estáticas molduras, ressignificando-se na trilha fendida pelo casco de uma língua, esta que é tão própria e enérgica, uma cartografia sem mapas ou geografia, que desmede qualquer mensurável tentativa de dizer um acontecimento.
A casa e a aranha ganham intimidade de linguagem, ganham uma à outra numa tessitura de habitações não ensimesmadas, isto é, a teia da aranha faz aparecer o vazio dos cantos da casa, faz a casa ser casa no silêncio de suas quinas, na escuridão dos detalhes que nos passam despercebidos. O sentido existente entre fio e nada não mede o silêncio de seus vazios, mas faz aparecer o antes de cada lembrança, a véspera espraiada no instante inatingível e sempre permanente da memória. As coisas de uma casa fundam os lugares dispersos na incomensurabilidade do espaço, pois o lugar só existe a partir de sua ocupação: “A casa é um interminável território de coisas, lugar para que as memórias a ela afluam e vivam, por vezes, e morram, por outras. [...]. Nunca nada mereceu tanto uma casa como a aranha, porque ela dá sentido à vida quando está perdida a vida desse sentido e a testemunha com formas tão intensas” (p. 20).
Como Dormir com Deus... se desenvolve por um fluxo tensional, se tentássemos dividir o livro em duas partes, incorreríamos em grave erro, dissipando a unidade de um corpo instável, a fim de tentarmos perceber a estabilidade de demarcações concebíveis. A linguagem é invocada e realizada como língua nos caminhos que se cruzam, sendo o mesmo mar na invocação de outra questão: Deus. Deus, linguagem e língua são questões intercambiadas na conexão com uma poética de arredores. O juízo é pretexto para se trazer à conversa a inefabilidade das questões mencionadas, mostrando a dificuldade – para não dizer impossibilidade – de afigurar uma onda como movimento previsível de mar.
A insônia não precede o sono, realiza-se com ele, sendo artimanha que coaduna e elabora na prece a dimensão humana de um corpo que assim será junto com a cama, coberto e acariciado pela mão negra da noite. Cerrar-se numa dormência nítida de altercações, eis o desejo do cansaço. Cobrir-se pelo manto perenemente enegrecido, eis a condição de tocar os pés de Deus: dormir com Deus é penetrar-se, ser uma visão que desintegra as barreiras impostas pelo ver dos olhos carnais, por isso temos a sensação de uma despedida, ou melhor, uma frivolidade de penitência ao se redimir consigo e deixar-se entregar ao sonho, este que é ambiente de interlúdios: “Para o cimo da sua cruz ao pé do velho sino, lanço as minhas amarras. O destino dos sonhos na paisagem da cama. Hoje vou dormir com Deus. E deito-me” (p. 30).
Deus é o átimo que escapa ao toque, a fuga que se presenteia na procura do que foge, uma incessante véspera que se desalinha na envergadura de um enigma: vertigem que apreende na queda não uma resolução, mas a rota do perder-se: condição máxima para um estado de procura, de mergulho que é salto mortal no desconhecido.
Aquilo que seria uma atmosfera onírica – na qual se desvelariam as imagens trancadas pela suposta realidade palpável – é um caminho de imbricações em cujas dimensões o homem se questiona a partir da busca pelo que é. Portanto, não há separação entre o sonho e o dia ensolarado, a realidade não é aquilo que se enquadra ao tamanho de nossa compreensão, a noite não é uma oposição ao vespertino estado de coma.
O diálogo com Deus é uma teia de incursões onde o homem se debate ao tentar se compreender, ao tentar chegar àquilo que sempre foi, mas se encontra obliterado pela subjugação ao visível. Temos então movimentos de pensamento, deixando claro que poesia é um modo de estar no mundo, de se inquirir e de compreender a realidade que nos rodeia. Pensar é questionar, poetizar: “Penso: A Deus eu servira respondendo? E Deus faria sentido perguntando-me? Deus próprio encarna tudo isso. Funde a pergunta que é na resposta que não me dá. O silêncio cá dentro assinala festivo a minha conclusão enferma” (p. 38).
O sono que poderia ser entendido como nebulosidade irracional, onde todo escapismo é justificável, onde tudo é possível, só seria entendido assim caso lêssemos com vistas à oposição entre real e irreal. O sono é, na verdade, o outeiro de uma planície que se eleva e continua sendo plana no cimo de sua altitude, assim como o pescoço que se enverga do alto da terra continua côncavo no espaldar do chão de imaginárias linhas retas. Podemos considerar que dormir com Deus é se exceder em ser, pois o biombo que separa o visível do invisível é estilhaçado, propiciando um avivamento sem demarcações: “No sono tudo é longe mas cresce tão perto, turvo e tão nítido, presente e tão passado, concreto e tão dissolúvel vivo e tão perecível” (p. 39).
O livro se inicia com uma ordem, esta que é metamorfoseada em apelo de autoescuta. Embarcar no navio é um outro modo de estar com Deus, uma vez que estar com Deus é se arremeter à circularidade de uma pergunta que em si já traz a resposta, ou da resposta que em si já instala um novo perguntar. Eis a movimentação da linguagem, que expõe o desenvolvimento das questões alinhavadas nos poemas: caminhos que emergem de efemeridades para o incontável do pensamento.
Ao nos entregarmos à leitura e às curvas de suas linhas, percebemos que não é possível apenas passear com os olhos pelas páginas. Debruçar-se sobre um livro de poesia não pode se tornar um afago ao cansaço. Ao contrário, exige devoção, impõe um ritmo de evoluções internas, adentramentos de imprecisões que corrompem e instauram um tempo próprio, uma realidade singular.
Sem ser possível determinar o limite entre a lucidez e o sonho, uma vez que estas são dimensões que se ambiguizam no curso da escrita de Dormir com Deus..., este livro nos convida ao salto, oferece-nos uma oportunidade de partirmos em busca de nosso próprio, já que invoca questões importantíssimas ao homem. Só podemos questionar depois de nos questionarmos, e se considerarmos que interpretar é interpretar-se, a leitura deste livro nos enseja uma possibilidade de sermos ondas no mar. Pois, da mesma forma que nenhuma onda é igual à outra, ainda que tenha como origem o mesmo mar, assim se apresenta a poesia: fluxo circular em cuja realização os extremos se convergem para a unidade complexa que são, onde dois fazem um.
Terminamos aqui, no entanto deixamos mais uma passagem que encena a ambiguidade visível no livro, na qual vida e escrita se penetram, pintando a paisagem de um sonho fixado no longe de um horizonte, onde os caminhos que levam a ele são os de imersão no que seja próprio de cada homem: “E o sonho é um volante brilhante, lento, alto, a conduzir-me para os caminhos de mim mesmo. Não é uma viagem, mas uma viragem onde ficará só por saber se, em síntese, a terei vivido ou, apenas, a terei escrito” (p. 49).


5 de janeiro de 2011

O tempo, a memória, a história: questões na poética de Virgílio de Lemos

Compondo o conjunto de comunicações que ocorreram no VII Simpósio de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, na Faculdade de Letras da UFRJ, em novembro de 2010, e publicados na Revista Garrafa, este ensaio é também parte da minha dissertação de mestrado, intitulada A hermenêutica do mar em Virgílio de Lemos.
No texto que segue abaixo, fiz uma interpretação do poema “O teu retrato”, que integra o livro Para fazer um mar, de Virgílio de Lemos, publicado em 2001. A interpretação se dá num diálogo com questões desencadeadas pelo poema, tais como tempo, memória e, claro, poesia. Eis um olhar da Poética, dos estudos que desenvolvemos em nossas pesquisas no NIEP – Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Poética.
Sem mais demora, fiquem com o ensaio, este que foi originalmente publicado na edição 22 da Revista Garrafa.

IMBRICAÇÕES DE TEMPO E MEMÓRIA EM VIRGÍLIO DE LEMOS

O poema “O teu retrato”, do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, traça com ares pitorescos a gestação, o que está prestes a nascer. Com isso, vemos na consubstanciação de vida e morte outra maneira de entendimento do corpo. Um olhar de travessia, de conjugação entre diferenças e identidade, dos dois que fazem um. A imagem-questão do útero como fonte de nascividade e recôndito de morte é memória: início e fim confabulam trejeitos de música nos versos que desenham o antes da parturiência. Então, a fim de ver como essas questões se articulam, vamos ao poema, tendo em vista os caminhos que a hermenêutica nos possibilita trilhar em nossa interpretação:

O teu retrato

Ainda não nasceste e és já o atento
olhar e o receptáculo, ternura, gesto
e fluidez na respiração, boca que busca
a outra boca, a deslumbrada crista

és já violência e doçura, o espaço
da meditação, o olhar que se desdobra
e é floresta e mar, o fogo e o segredo
que incendeia o corpo interior, vertigem.

Ainda não nasceste e és já o desejo
que se transcende e perscruta e apreende
e subverte na subversão do que sente

e vê e pensa, e é reflexão que galopa,
e capta e inquieta, tu e outro,
o verso e o reverso do que é, e vai ser.
(LEMOS, 2001, p. 19).


Comecemos pelo título: “O teu retrato”. Espalmando as mãos como se fôssemos apanhar algo no contrassenso de nossos dedos, o que vem de súbito é a imagem figurada numa superfície. Neste pedaço de coisa, lembranças viajam em intemporalidades. O adulto ali se vê criança, volta aos tempos de andar descalço. O único compromisso era obedecer aos pais, comer as verduras sempre intragáveis, fazer o dever escolar para, finalmente, encontrar os amigos e cambalhotear meninices. As reminiscências têm o poder de máquina do tempo, sem a necessidade de exacerbada tecnologia, até porque esta está sempre um passo atrás da poesia. Podemos então brincar de dizer que quando um cientista se tornar poeta, oposições se fundirão a olhos vistos e a hegemonia da técnica talvez tenha seu fim.
Mas, enquanto isso não acontece, precisamos nos demorar em certas indagações a partir do que dissemos acima. Então, perguntamos: as reminiscências são só aquelas lembranças acolhidas no passado? Uma foto é mecanismo de desentravar as poeiras mnemônicas? As andanças de ser hoje o que era ontem são somente invencionice romântica ou peraltice de poetas?
Tendo em vista essas perguntas, podemos aprofundar algumas questões que o poema nos incitou a pensar, refletindo acerca de algumas palavras já desgastadas pelo seu uso comum. Dessa maneira, o título aciona todo um complexo de questionamentos propostos na desenvoltura das estrofes. Pois, o retrato já traz implicitamente a ideia de lembrança que, por sua vez, instala a questão da memória. Dessa feita, a memória enquanto questão vai além do sentido reminiscente, pois convoca um percurso desmedido pelo canto originário do poeta, ou seja, miticamente encena o abraçar-se deste com o mistério do abismo, quando o mesmo se lança na queda abissal de ser um com as musas. Irrompendo em linguagem, seu canto é fala musal realizada em língua. Cada palavra é retrato que se tira, são transfigurações do real na feitura imagética do inapreensível. O que se registra em cores é assombro de luz.
Retrato, etimologicamente, retoma o verbo latino trahĕre, que reúne verbos como tirar, mover, atrair, entre outros. Estes citados são os que nos interessam, pois constelam o emaranhado concernente ao interior semântico da palavra em evidência. Insistindo nos verbos, é interessante notar que na fixidez do sentido comum de retrato moram dinamizações de vigor temporal. Assim, tais verbos expõem ruminações de tempo como suas infindas possibilidades de manifestação, pois: tirar requisita o sentido de mudança: o tempo que vigora, trazendo na ilusão da deslocação a permanência. O Ser é permanente enquanto o ente, o sendo, muda ininterruptamente. O verbo mover enseja o mesmo caminho, contrapondo-se com o atrair: move-se na medida em que atrai para si a incomensurabilidade de se estabilizar no tempo. Desta forma, trazendo ainda a denotação comum do retrato (como registro de uma imagem), esta propicia implicitamente a conjugação de todas essas questões ao convocar a memória e sua realização como possibilidade de possibilitar: descaminhos convergentes no fluxo das diferenças.
Quando pensamos no que apontamos acima, junto com o pronome “teu” se estabelece a dinâmica que vamos acompanhar no desenvolvimento das estrofes, isto é, a questão do outro, de um fronteiriço trânsito, no qual a transmigração corporal se apresenta poeticamente. O “teu” já é o que está prestes a acontecer: é eco vibrando na antecedência de seu frêmito.
O título do poema enseja a complexidade de um sentido subjacente de memória quando esta se dimensiona conjeturando outras possibilidades de ser pensada em sua intimidade com a maturação da vida, portanto, o arcabouço da morte indo muito além de causalidade final. Dito isto, temos que a morte é fonte inesgotável de vida, e isso não é novidade: “Pois a morte é nascimento, é angústia e medo ante uma renovação aterradora” (HESSE, 1968, p. 20). E essa renovação é uma das questões que o poema suscita conforme vamos perceber, trazendo a lume outras que se revelarão em nossa leitura. Então, sigamos para a primeira estofe, a fim de nos aproximarmos do que ela oferece:

Ainda não nasceste e és já o atento
olhar e o receptáculo, ternura, gesto
e fluidez na respiração, boca que busca
a outra boca, a deslumbrada crista

A questão do tempo é já posta no advérbio “Ainda” que, por sua vez, é confrontado com a expressão “és já”. Essa elocução percorrerá todo o poema, sobressaltando uma atmosfera de iminência, isto é, há sempre uma pontuação temporal para que, a partir dessa referência, apareça uma contraposição que elabora na sua colisão tensional a presença de algo que está por vir. Porém, a tenuidade do que virá a ser é, por outro lado, desfeita quando mesmo ainda não sendo, já é. Há, com isso, a presentificação do que viria a acontecer num sempre-já-sendo. O sentido de nascer é ressignificado, a fim de se aprofundar na raiz da nascividade, pois o nascer se torna um sempre-sendo que não depende de estrutura biológica para se presentificar. A eclosão do que nasce se dá à luz quando o que foi, é e será avaliza o tempo além do cronológico.
É por intermédio do sentido cronológico referenciado pela modernidade que entendemos a marcação temporal a partir de uma trajetória linear. Uma coisa após a outra, assim diz a cronologia: sua ciência é marcação restritiva de lugares, afirmada pela razão que, por sua vez, está arraigada no que se põe materialmente à nossa visão. O sentido clássico da ciência não permite a acolhida do que ainda não ocorreu, tendo em vista sua deflagração por meio do que se ordena em série de acontecimentos factuais.
Como dissemos anteriormente, a poesia está sempre um passo (diríamos até mais) além da ciência. Nesse sentido, a cronologia é corrompida quando, ao lermos “és já”, aquilo que ainda não é passa a ser. E assim acontece de tal maneira que ganha diversas formas de realização. Pensemos então as imagens-questões em voga nessa estrofe.
Em “o atento olhar”: este olhar vê o antes de qualquer desambiguação, por isso se atenta. Atentar em algo é morar nesse algo, conhecê-lo profundamente em todas as suas possibilidade de existir, logo, de ex-sistir: pôr-se adiante, ou melhor, trazer para o aberto (ex-) da permanência (stare > -sistir). E o que permanece? O Ser.
O “receptáculo”: guardião dos segredos do que ainda não se deu a ver, o profundo de um recipiente ressignificado no vazio: berço da inesgotável e incomensurável possibilidade de ser. O abrigo seguro, cujo mistério se densifica no abraço que recolhe em seu peito a intimidade do nascituro, e este é cerne de tempo e ser. Seus braços são a precedência de uma futura eclosão, trajetórias de vivência no contorno de seus dedos, quando as mãos são a premência imediata do que o corpo pretende tomar posse.
A “ternura”: o afeto acolhedor, o que enternece o corpo na junção de sentidos, ou seja, a corporeidade de sentir no ver, na medida em que também o densifica. A ternura é a capacidade de sentir o calor do carinho antes que a mão toque a pele e, nesse antes, mora o poético.
O “gesto” é brevidade de acontecimento, o intransponível do horizonte no desejo de fazê-lo pôr do sol enquanto a “fluidez” é tangência de intocabilidades, o rio que corre inventando margens no longo de sua correnteza. E essa fluidez se dá na “respiração”, quando nela entendemos o ato de consumar vida e morte no acorde de sua transitividade, pois na expiração e inspiração se compõem o entremear do novo e do velho, tradição que se enuncia além de qualquer dizer.
Nesse encadeamento, a “boca que busca outra boca” refaz a vontade do gosto, do sabor que ambiguiza início e fim numa concentração cosmogônica: o que ainda não é converge toda a possibilidade de ser num único pedaço de coisa, de pele, de corpo: unidade. Então, chegamos à expressão que é junção de estrofes, pois no final da primeira, a segunda se inicia: a “deslumbrada crista” é a protuberância que se radicaliza na luz. Então, deslumbrar[1] é se densificar em luminosidade: irromper, nascer. A crista pode significar também pequena língua, no sentido orgânico, o que reforça a corporeidade de se entranhar no que se revela. Entretanto, essa expressão é fronteira, liminaridade que, como dissemos, tanto encerra quanto principia. Logo a seguir, a segunda estrofe começa retomando o “és já”, propondo a circularidade poética de se entrever o início no fim, e movendo a roda das ambiguidades.

Vertigem temporal

Somos levados a pensar numa gestação, e isso é claro: algo é gestado. Uma criança? Talvez, entretanto fazer tal afirmação seria colocar palavras que não existem no poema. Este é o perigo numa leitura poética: quando excedemos o que diz a obra para inserirmos nela resquícios de nossa subjetividade, um expressionismo sutil, mas que não condiz com o desencadear do pensamento questionante, do pensar poético. Por isso, a suposição de uma gestação vem e nos seduz com seu ar de nascença, fertilizando nossa imaginação quando planejamos e nos excedemos em nossa excitação. Tal movimento é próprio da iminência do que nossos ouvidos esperam numa música: o silêncio fomenta nossa audição, produzindo a agitação que quer prever no compasso o seu porvir. Desencadeiam-se benfazejos de improvisos nos quais o surpreendimento é sempre dadivoso, virtuoso.
Toda essa ânsia à qual nos referimos acima é oferecida pelo “és já” que inicia a estrofe em questão. Tal expressão antecipa distâncias e retoma o que já fora mencionado na estrofe anterior, configurando-se como um elo que conjuga tempo e espaço. Na sua antecipação, propõe a potencialidade de ser o que já é e não é e, nesse ínterim, está sendo em efervescência. Quando retoma a estrofe anterior, o “és já” também pode se referir à “deslumbrada crista”, então, encontramo-nos em um terreno incerto. Mais ainda, num território liminar em cuja intermitência se agita a investida abissal no desconhecido. A consagração do espaço ocorre como fio que delineia o aberto de uma obra de arte, tangendo, alinhavando, circulando, tecendo lugares nessa clareira. Se entendemos que espaço é todo o aberto que ao ser ocupado conforma um lugar (Cf. HEIDEGGER, 2010, p. 111), então a dança que faz girar perspectivas encena o espiralar de mundos que se penetram. A aliança espaço-temporal se dá no âmbito da excessividade de fazer ver o não visto, projetando no longe do olhar a imaginação que gesta confins de limite.
Da mesma maneira que na estrofe anterior, nesta são enumeradas diversas maneiras de presunção existencial, isto é, insistindo no apregoar tensional do vir a ser. No entanto, essa estrofe acrescenta uma particularidade, pois se divide sutilmente em dois mo(vi)mentos. A saber, pela conjunção “e” disposta no sétimo verso, que empreende uma perpendicularidade avessa à intocabilidade, ou seja, embora andem lado a lado, tocam-se inevitavelmente, até porque o poema é um operar de contrários em cujas particularidades vigora o diálogo, unificando-as. Mas vamos com calma, percorrendo os versos que antecedem esse momento.

és já violência e doçura, o espaço
da meditação, o olhar que se desdobra
e é floresta e mar, o fogo e o segredo
que incendeia o corpo interior, vertigem.

A segunda estrofe se inicia com letra minúscula, o que nos faz desconfiar de que seja uma continuidade da primeira. Daí, segue o metamorfosear da esperança em realidade concreta, ou seja, inserida no âmago do que se desdobra, do que cresce junto, enraizando-se com o que aflora. Portanto, vislumbramos o jogo entre permanência e mudança na ausculta da verdade.
Em “violência e doçura”, temos os opostos que se consagram na mesmidade de forças ao se antagonizarem e empreenderem o movimento de fluxo e refluxo de uma realidade em especial. Ora, não é a primeira vez que dissemos ser uma obra poética um desencadeador de realidades, e uma obra não diz apenas um coletivo – um livro, por exemplo –, e sim aquilo que concentra numa cena toda a encenação, portanto, um poema é uma condensação de todo poetar de um poeta, conforme o caso que temos em vista. Então, essa realidade em especial à qual nos referimos é uma dentre as demais ainda recolhidas no mistério do real. Devemos ter em mente que o poema “O teu retrato” conjuga um entremear espaço-temporal e nos conduz para essa instabilidade do que é e não é, logo, eis uma leitura de derrocada, cuja estagnação de tempo como premência do visível é posta em derrisão.
A violência é reviravolta de doçura, face oculta do que se mostra aprazível e sereno, é o repentino ataque que arrebata o singelo de um afago. Este é transposto em fogo que arde a súplica com que se abrem caminhos mediante os premeditados destinos a seguir. No entanto, brincar de enxergar contrários nessas palavras apenas raspa de leve a superfície do que nos absurda, do que nos poetiza. Doçura e violência são a ciranda que roda e faz circular no seu entorno a excentricidade do que foge ao esperado.
Uma outra imagem-questão da segunda estrofe está em “o espaço da meditação”. Aqui, temos o lugar que se funda na abertura do escampado. Isto é, se o lugar é conformado a partir da ocupação do espaço, então irrompe, faz nascer o diâmetro que liga os pontos de uma circularidade fundada no aberto, no interior de uma espera. O espaço da meditação é o arranjo que vê na sua possibilidade de acontecer a contemplação no longe que já se faz perto desde o “és já”.
O “olhar que se desdobra” é revestido de ambiguidade tal qual (embora diferente) a “deslumbrada crista” da primeira estrofe, pois prepara para um sutil acréscimo de nuance. Desse modo, e sem incorrermos em tautologismos, esse olhar tanto desdobra quanto se desdobra, ou seja: imiscui tempo e espaço, misturando perspectivas na opacidade de um ponto transiente. Mais ainda, intensifica o olhar para alongar o horizonte de seu alcance. Para esses nossos dizeres, baseamo-nos na conjunção “e”, que adiciona um outro ponto de vista, ainda que muito tênue. Vejamos:

[...], o olhar que se desdobra
e é floresta e mar, [...]

A captação de mundo propiciado pelo olhar traz ao corpo o largo para onde ele pode se lançar. Este olhar é derivado em outras margens, pois é também “floresta e mar”: imagens que ensejam o entendimento do pleno, do uno. Assim, é um olhar que vislumbra o visível ao mesmo tempo em que abarca o não visível, a saber, toda a possibilidade recolhida no que ainda não veio à luz. Horizontalmente, essa ambiguidade duplica numa harmonia antinômica o olhar que é tanto para diante como para trás, passado e futuro se concentrando no istmo da realidade presente. Verticalmente, do cimo de toda claridade, o sentido do olhar se enverga ao intenso negrume da noite, sendo metáfora de vazio, de útero.
A floresta acalenta todas as possíveis trilhas que levam tanto ao perder-se quanto ao achar-se. Habitar a floresta significa viger em proximidade com o legítimo berço no qual vida e morte se enredam. É tanto acolhimento do verdor quanto metáfora que nos conduz à origem da nascividade:

É a essência da floresta que nos visita com a paixão da natividade. Um interesse originário começa a fluir em nós e esta influência nos guia para o coração da floresta, que de selva selvagem do pensamento se faz liberdade do mistério de ser e realizar-se no verdor do verde e não verde. (LEÃO, 1992, p. 185).

O mar seria uma outra maneira de dizer a floresta? De certa maneira, sim. No entanto, cada uma resguarda sua singularidade. Se na floresta o verdor acolhe todos os caminhos, no mar estes são engolidos pelas marés, pela extensão de água e sal onde vida e morte se entretecem em caos e cosmo. Podemos transpor nosso olhar para uma dimensão, diríamos, macroscópica ao rever no poema o sentido de mar que vai se fazendo. Logo, aproximamo-nos agora mais explicitamente da questão que rege nosso trabalho: a inesgotabilidade do mar em se manifestar sempre inauguralmente, mostrando toda a variabilidade possível, e resguardando o que ainda não se deu a ver. Eis nosso empenho, quando nos incutimos do método hermenêutico na leitura de Para fazer um mar. Desse modo, temos um exemplo claro de como a questão de uma obra está em cada detalhe da mesma.
O mar é efusão de dor e amor: cada onda é propulsão de unidade. Bate, quebra, leva consigo toda profundidade do oceano na colisão com a rocha, com a praia. Daí, cada espuma, pedaço de água ao céu, é o todo do mar concentrado nessa doação ao aberto do infinito. Lembremos de Mensagem, quando no final do poema “Mar Português”, podemos ler o seguinte:

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(PESSOA, 1980, p. 58).

Portanto, o valor infinitivo de um fazer, de um mar que ainda não existe porque está em contínua feitura, espelha a profundeza do céu numa paisagem que confunde os limites de cada um. E esta fronteira desguarnecida refaz o “olhar que se desdobra”, desdobrando-se ele mesmo em ecos de permanência.
O olhar que “é floresta e mar”, por sua vez, é um desdobramento do “és já”, que também se obliqua em “fogo e segredo”. Estes se reúnem no ímpeto do que arde e se esfumaça secretamente. O ardor impõe marca de constância enquanto o segredo entorpece os ouvidos de quem por ele é dominado. A copertença entre um e outro é tão forte que ambos se invadem numa orgia semântica, nomeando de instabilidade o que deles se esperaria. O que nos leva a tal constatação são os versos seguintes:

[...], o fogo e o segredo
que incendeia o corpo interior, vertigem.

Como podemos ver pelo pronome “que”, o “corpo interior” é incendiado pelo segredo e não pelo fogo. Este corpo é o abrigo que recebe as reviravoltas de incandescência e enigma numa ciranda de intimidade, e em cuja circularidade se envolvem o antigo e o novo numa conjuntura de penetração. O antigo é o já posto, o sabido, o que alimenta as chamas para a geração do novo que, por sua vez, não é apenas o que desponta, e sim o que sempre se inaugura tal qual a luminosidade solar. Desse modo, o sol que abre o dia é sempre a comoção que traz consigo as boas-novas do que irrompe como claridade, como presença. Se apontarmos em direção aos pensadores originários,[2] observaremos tal referência no 106º fragmento heraclítico, no qual lemos o seguinte: “O vigor de cada dia é um.” (HERÁCLITO, 1980, p. 123).
Outra maneira de entendermos tal incêndio está em irmos além do caráter combustivo. Pois o fogo também diz a purificação, a transformação de algo que está sendo gestado. Portanto, uma constante metamorfose que se concretiza na procura pela luz. Por sua vez, a incandescência do segredo é o sagrado que contém no silêncio a potência do que virá a ser. Assim, o fogo e o segredo agem dupla e ambiguamente, desdobrando-se um no outro no sentido de verter na claridade o que ainda não foi revelado. Também trazem a lume a inerência de uma espera, vislumbrando uma aprendizagem que é serena e tenaz, ao se imbuir na perseverança do tempo a energia luminosa do que está resguardado no ventre do não saber.
Todas as imagens acima se excedem na última palavra da estrofe: “vertigem”. Esta nos diz o súbito de uma perda, em que qualquer dimensão de controle é abalada por um lampejo de desfalecimento. Digamos ser uma palavra cataclísmica, pois concentra as profusões de revoluteios empreendidas pelas duas estrofes, a primeira e a segunda. Então, é um redemoinho que faz rodar as amarras do tempo cronológico, brindando a imaginação que encena o outrar-se na simultaneidade entre o que é e o que está prestes a ser: o um e o outro num movimento de rotação: circularidade entrevista em faces diversas do que se realiza em segredo.


O outrar-se: memória, história e destino

Compactuando com a (in)tensa ambiência das estrofes anteriores, a terceira adiciona uma outra perspectiva. Notamos que a especulação por um tempo não restrito ao cronológico é recolocada, assomando-se a uma insistência de transitoriedade, de permanência e mudança, conforme podemos observar:

Ainda não nasceste e és já o desejo
que se transcende e perscruta e apreende
e subverte na subversão do que sente

À semelhança da primeira estrofe, vemos que o “Ainda” se articula com o “és já”, um empreendimento do qual se derivam os malabarismos de demarcação temporal. Pois, conforme dissemos ao nos referirmos à primeira estrofe, o tempo do sempre-já-sendo coloca a questão da eternidade, da plenitude. Desse modo, se por um lado podemos pensar que algo sempre existente é assim porque nunca nasceu, já que nunca morreu; por outro, sempre existiu porque sempre esteve vivo, uma vez que esteve permanentemente morto. Assim, o poema põe em xeque a dicotomização conhecida entre a morte e a vida, elevando as duas questões ao patamar do sempre-sendo numa referência mútua de copertencimento. Se a eternidade emprega um sentido de sempre vida, na verdade, é também de sempre morte.
Tal afirmação soa estranha porque correntemente partimos do ponto de vista da vida. O fato de se insistir na vida provém de um entendimento cristão no qual a existência é um exagero de viver, opondo-se ao morrer: busca-se a salvação como vida eterna. Contudo, viver e morrer são um e o mesmo. A experiência de cada uma é única, porém experimentadas apenas a partir de um solitário ponto de vista: o da vida. Não se pensa a vida a partir da morte, aliás, nada é pensado a partir da morte, pois esta comumente significa ponto final. Obviamente, não estamos defendendo uma postura mediúnica, onde a perspectiva da morte é a de quem já partiu e veio nos contar, claro que não. Estamos ressaltando a dicotomia que toma nosso modo de entender o mundo e as coisas do mundo a partir de um olhar viciado e confortável. Mas insistimos que tudo que vive, vive porque é morte:

No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
[...]
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. (LISPECTOR, 1974, p. 27).

A citação acima foi retirada do conto “Amor”, de Clarice Lispector, e nela podemos perceber dois pontos fundamentais à nossa discussão: primeiro, a colocação de que o entendimento que temos da morte como uma parada estanque precisa ser revisto quando lemos: “[...] a morte não era o que pensávamos.” Segundo, conforme vemos na última frase, a condição ambígua entre vida e morte é ressaltada, pois embora as árvores estivessem carregadas – e daí supomos com seus frutos, folhas, enfim, cheia de vida – o apodrecimento (a morte) é uma constante que tanto intensifica quanto possibilita que vivifiquem em toda sua extensão. A plenitude e a eternidade das árvores estão na condição de ser morte e vida em circularidade, conjuntando-se como presença frutífera e concreta, pois a vida se vela na morte tanto quanto a morte na vida.
Com as considerações acima, o início da terceira estrofe de “O teu retrato” compõe a paisagem destes atravessamentos, nos quais a cronologia se perde, fundando-se um tempo próprio. Tempo este, cuja concepção se irradia para as demais estrofes: momentos de eternidade que imprimem a peculiaridade de um poetar excêntrico, ou seja, que traz ao aberto da liberdade o pontual desejo de ser o antes de cada coisa.
Observemos estes versos da estrofe:

[...]
que se transcende e perscruta e apreende
e subverte na subversão do que sente

Dessa feita, o pronome relativo retoma a palavra “desejo” do verso anterior, com sentido de espera. E assim, é transfigurado num tipo de prolixidade poética, cuja loquacidade é um derramamento desenvolto em semânticas. Percebemos este alongamento na figuração polissindética do “e”, que aprofunda e nos faz mergulhar juntos na figuração desse carrossel de imagens: quatro verbos – transcender, perscrutar, apreender e subverter – compondo o horizonte de uma expectativa num movimento de impor esforço ao transbordamento do desejar, uma vez que tais verbos oferecem dinâmicas de travessia.
Demorando um pouco nas quatro direções desse desejar, entendemos que, no poema, transcender é ir além do que vai ao longe; aquilo que é e, enquanto está sendo, inaugura-se na centelha de seu porvir: uma senda que ultrapassa sua própria passagem no tempo, por isso, sendo o legítimo tempo acontecendo em vez de uma notação de sua cronografia.
Perscrutar é se embrenhar no que se examina, invadindo-se numa indagação que procura essencialmente o que poderá ser no que ainda não é, mas se presentificando nessa ausência. Por sua vez, apreender é tomar para si, morar no que toca o corpo e invade a percepção sensorial, logo, o instante que se converte em trajetória de memória. Isto é, envergadura de cimo à base no largo de uma corporeidade mnemônica, cuja passagem é encruzilhada de temporalidades, portanto, fluxo de investidas que se assomam ao mundo que é tanto antecedência como potência de porvir.
Finalmente, subverter é aniquilar, revolver do chão ao céu uma verticalidade de invasões mútuas: “subverte na subversão do que sente”. Eis um sentir contraditório que em sua própria percepção se arruína qualquer aparência de estabilidade, ou seja, o sentir é corrompido, sendo tanto o que toca quanto o que foge ao toque: signo de contradição afirmada no ato de aprofundar-se, quando se aprofundar é imergir no desconhecido.
Todas as acepções acima estão ligadas pelo sentido de travessia, pois além de estar presente etimologicamente no interior de cada verbo, assinala neles o isomorfismo de ser a própria coisa sobre a qual se fala. Em outras palavras, este sentido de travessia faz convergir para o centro tensional – primeiro de cada verbo e depois da própria estrofe – a multiplicidade de sentidos pertinentes à cada enunciado, suscitando estes como harmonia de corrupção sígnica, já que estão poeticamente além dos seus registros dicionarizados.
A terceira estrofe acentua a questão da memória já proposta desde a primeira. Afinal, pensar o tempo como inalcançabilidade cronológica, vendo como os quatro verbos de que tratamos acima se articulam é pensar a memória em sua disponibilidade de entrever além de tempo, também história e destino. Nesse sentido, pensamos na experiência histórica consagrada pelo poeta, à qual Octavio Paz faz referência no ensaio “A consagração do instante”, que compõe O arco e a lira (1982). No texto, ao se pensar o histórico, pensa-se também o destino, uma vez que as questões do tempo, da história e do destino estão intimamente ligadas, imbricadas.
Uma questão não se desliga da outra. Ao contrário, insinuam-se, flertam entre si, até que se consumam como bacantes no apogeu de seu entusiasmo. E no meio disso tudo, em trânsito e em transe, está o homem: sendo engolido, consumido e consumado agonicamente. Humaniza-se no estertor dessa fúria de ser tempo e destino em acontecimento poético-histórico. No cume dessa possessão, entremeado pela luta de ser outros num só, conflita as diferenças no seu destinar como presença. Portanto, o poeta é iluminado e tocado pelo canto musal, subverte rastros de cronologia a fim de evidenciar a condição humana: essência de todo poetar, pois a dança da linguagem na composição de qualquer manifestação artística tem inevitavelmente como fundo o homem enquanto questão. Finalmente, observaremos o que nos diz Octavio Paz nessa referência entre homem, história e destino. Para isso, leiamos o seguinte:

Em cada instante ele [o homem][3] quer se realizar como totalidade e cada uma de suas horas é o monumento de uma eternidade momentânea. Para escapar de sua condição temporal não tem outro remédio a não ser fundir-se mais plenamente no tempo. A única maneira que tem de vencê-lo é fundir-se com ele. Não alcança a vida eterna, mas cria um instante único e irrepetível e assim dá origem à história. Sua condição o leva a ser outro: e apenas sendo-o pode ser ele mesmo plenamente. (1982, p. 232).

Com a citação acima, evidencia-se o intercurso que faz do homem um ser histórico, elevando o poeta à condição de horizonte. Não que um e outro estejam afastados, na verdade, quando o homem é tocado pela disposição do poético, fundem-se e se confundem quaisquer barreiras limítrofes e distintivas entre eles. Isto é, poeta e homem existem num interlúdio de canto e silêncio, linguagem e fala, dança e repouso. O que nos leva ainda a lembrar da tão famosa frase de Heidegger, referindo-se aos poetas e pensadores como sentinelas da linguagem: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias.” (1967, pp. 24-5). Logo, vigiar a linguagem é estar à sua mercê, escutando em doses de travessia o que lhes chega ao corpo, fazendo o homem vigorar poeticamente na constituição da história, sendo a realização destinal do Ser.

O tu e o outro: a ambiguidade de ser

Partindo para a quarta estrofe, notamos o ritmo do galope: escorando-se também no conectivo “e”, os passos vão se fundindo na repetição cadenciada desse elo de musicalidade. Como nas outras estrofes, embora com acréscimo de peculiaridades, o movimento espiralar retorna ao início não sendo o mesmo, pois no trajeto que fez, a experiência de novos ares se presentifica, trazendo a destinação do que se prenuncia e se realiza no antes de sua eclosão.
A conjugação de presença com o vir a ser radica no tempo o baralhar das bases cronológicas de percepção da realidade. Tal confusão se coloca quando o que se diz de uma a realidade restrita à sucessão de fatos e ao limite de nossa visão é abalada pelo surpreendimento do real, dando-se como novidade jamais contada e nunca plenamente reconhecida. Pois o que se dá a ver é sempre um pirilampejo do que se obliterou em mistério. É como tentar pensar em uma palavra que ainda não foi dita, pois no alcance do seu dizer mora a distância infinita do que ainda não ganhou voz.
Sem mais demora, entramos no último ciclo de uma fala que é rabisco de letra e acúmulo de vazio, porém que não se extingue na leitura de seu último verso:

e vê e pensa, e é reflexão que galopa,
e capta e inquieta, tu e outro,
o verso e o reverso do que é, e vai ser.

A quarta estrofe está infestada de movimento, acomoda uma pressa, uma velocidade de se tentar dizer o inefável a qualquer custo, de tentar reverter o irreversível do tempo na pálpebra que se fecha com a gestação de abertura para o mundo inapreensível da realidade. Essa velocidade impregna nossa escrita, dando-nos vontade de correr rumo à inconstância musical da palavra, pois seu ritmo pulsa em cadência de improviso, cujos compassos traduzem o íntimo do caos: a desordem da travessia de realidades batendo nas portas, janelas e sopés das montanhas da interpretação.
Vê, pensa, reflete no galope representacional do tempo. Se representar é uma possibilidade de realidade, a linha do tempo que se apresenta é fumaça perdida no azul infinito do céu. O galopar da reflexão remete à memória como grande estrada que nos leva ao longe de qualquer caminhada. Assim, essa estrofe se movimenta em busca da primeira, empreendendo visivelmente o impulso de trazer no fim o início. A hermenêutica da leitura está em perceber o quanto de todo há em cada parte, reter na porção de um punhado de palavras a musicidade de uma obra de arte.
No galope da reflexão, mais dois verbos se conjuntam em ares agitados: captar e inquietar. Desse modo, temos a indicação do tomar para si o afã de ser vários em um mesmo: “tu e outro”. A ambiguidade atravessa a estrofe, irrompe em poema, faz da leitura um gesto de articulação com a diversidade das realidades do real, e isto para trazer no dito a impossibilidade de se dizer qualquer coisa. Chega-se perto, mas nunca desencobrimos o sentido lato de uma palavra. Apenas nos colocamos em proximidade, e nesta mora a irisação de qualquer enunciado quando, na verdade, apenas matiza o principiar de uma experiência radical: poesia.
Nesse momento, estamos no centro da estrofe, e porque também não dizer, do poema. O “tu e outro” concentra a volúpia das várias danças trançadas em “O teu retrato”, desdobra as brincadeiras de versejar ilimitado na composição da palavra poética. Esta desdiz certezas, irrita o costumeiro normativo, empreende o inaugural como consistência do que abarca ditos e desditos. Este “tu e outro” densifica o mesmo na derivação das várias possibilidades de ser, trazendo o sentido da tensão entre permanência e mudança enquanto luta empreendedora do humano: morte e vida.
No verso seguinte – “o verso e o reverso do que é, e vai ser” –, temos outra forma de se dizer o “tu e outro”. Este se alarga em imagens de acolhimento, de imbricação mútua das diferenças, ou seja, do outro no um: corpo que se apropria de si ao mesmo tempo que se excede no limite da pele. Esse transbordamento acontece pela memória, que compõe um tempo sem exclusão de anterioridade e posterioridade, dando-se na instauração de uma ordem temporal que não é nem antes e nem depois de seu nascimento. Portanto, não temos aí um tempo cronológico, e sim um ontológico, no qual o princípio é em si a gestação do fim, uma vez que não se delimitam como pontos intransponíveis. Muito pelo contrário, vemos um sentido erótico não num plano sexual, mas como desdobramento entre Éros e Thánatos. O erótico posto como enlace de unidade, pois do modo que aqui estamos tratando, reitera o ser e o não-ser como experiência do humano no homem, estando este nesse meio que é implicação de ambos. Logo, “Éros e Thánatos são, ontologicamente, a experienciação de ser e não-ser, pois viver é ser o não-ser. É isso o que diz morte, é isso que diz para o homem: ser mortal.”[4]
O homem é um ser mortal, cuja paisagem estendida à sua frente é a morte enraizada no longo do seu viver. Nesse ínterim, ser e não-ser se doam como memória, como “verso e reverso do que é”. E neste sendo, entranham-se e se engalfinham de tal modo que o limite da morte é o limiar da vida. Daí, quando consideramos a memória na acepção mitológica, falamos de Mnemosýne, a mãe das Musas – “as palavras cantadas” (TORRANO, 1995, p. 16) –, em cujo ventre reside o incontável do tempo. Eis o destinar do Ser no homem, aquilo que não se pode medir ou presumir, mas que se realiza no que é, ou como nos acena o final do poema que acabamos de ler, do que “vai ser”.

Referências bibliográficas

CASTRO, Manuel Antônio de. “O mito de Midas e o ser feliz”. In: Travessia Poética. Disponível em . Acesso: 12 ago 2010.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.
______. Sobre o humanismo. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
HERÁCLITO. Fragmentos: Origem do pensamento. Tradução, introdução e notas de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980.
HESSE, Hermann. Demian. 3ª ed. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heidegger e a modernidade: a correlação de sujeito e objeto”. In: Aprendendo a Pensar. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1992.
LEMOS, Virgílio de. Para fazer um mar. Maputo: Instituto Camões, 2001.
LISPECTOR, Clarice. “Amor”. In: Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
PAZ, Octavio. “A consagração do instante”. In: O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PESSOA, Fernando. “Mar Português”. In: ______. O Eu profundo e os outros Eus. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
TORRANO, JAA. “O mundo como função de musas”. In: HESÍODO. Teogonia. 3ª ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.



[1] Des-lumbrar: des- > prefixo com sentido intensivo; -lumbrar = lumen > luz

[2] Quando temos o cuidado de considerar os primeiros pensadores gregos (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Zenão, Xenófanes, Heráclito – no nosso caso – e Parmênides) como “pensadores originários” e não pré-socráticos, estamos nos dirigindo ao zelo histórico e não simplesmente historiográfico, que reduz em determinações cronológicas a inaugurabilidade de uma época e de um pensar singularíssimo. Desse modo, dialogamos com o que nos diz Emmanuel Carneiro Leão na tradução que faz dos fragmentos de Heráclito e o que, ainda na introdução da obra, esclarece sobre o sentido originário do pensamento e sobre o prefixo “pré-”, utilizado nas correntes traduções desses pensadores: “Os problemas, as concepções e os conceitos de Sócrates, Platão e Aristóteles, transformados pelas ciências modernas, servem de parâmetro para se medir o nível filosófico de todos os gregos de antes e depois da segunda metade do século V. Em pacientes pesquisas filológicas, historiográficas e linguísticas busca-se reconstruir a lógica, a ética e a física arcaicas sem se levar em conta que só há uma lógica, uma ética e uma física na tradição de ensino das escolas clássicas. Não se permite que os primeiros pensadores gregos sejam pensadores. Têm de ser filósofos, iguais a Sócrates, Platão e Aristóteles, ainda que só o sejam de forma arcaica, isto é, primitiva. Por isso mesmo só podem ser pré-socráticos ou pré-platônicos ou pré-aristotélicos. Assim, nestes títulos, o pré- não possui apenas sentido cronológico mas sobretudo axiomático. É o axioma de implantação da filosofia na decadência do pensamento.” (1980, p. 10).

[3] Inserção nossa.

[4] Citação do ensaio “O mito de Midas e o ser feliz”, de Manuel Antônio de Castro, disponível em seu blog Travessia Poética, no endereço: http://travessiapoetica.blogspot.com/2008/05/o-mito-de-midas-e-o-ser-feliz-manuel.html.