24 de agosto de 2010

Só cronicando para não chorar de tristeza...


Foi hoje ao ar, na Revista Educação Pública, uma crônica que escrevi a respeito de um acontecimento ocorrido comigo numa biblioteca pública, intitulada “Quando a Filosofia mudou de... estante?!” Bem, como a melhor maneira que temos de criticar é estar junto daquilo que se critica, indo além de mero apelo judicante, morando, digamos, numa cisão que é ao mesmo acolhedora; tal crônica perpassa com certa leveza, ironia e comicidade um fato triste para nossa Educação.
Infelizmente, estamos postos à deriva quando o educar se transforma em manutenção didática, e o próprio sentido da didática se banaliza para aquilo que serve de manual de instruções. Não podemos nos esquecer de que didática, de dídasko (ensinar, instruir) se deriva em didáskalos (o que ensina), trazendo, portanto, o sentido de aprendizagem. E aprendizagem é diferente de aprendizado, na medida em que a primeira enseja uma poética da escuta, um caminho que entremeia ensinar e aprender como dinâmica circular, pois é uma conduta que se vai fazendo enquanto acontecimento. Por sua vez, o aprendizado se reporta a conhecimento já estabelecido. E o problema deste último é se estagnar como uma postura meramente erudita, que não amadurece, não se desdobrando em não saber.
Enfim, a poética da aprendizagem é a habitação da escuta, do desvelamento do que somos em cada momento de nossa passagem por nós e pelos outros, uma vez que esse outro também somos nós! Afinal, o próprio enunciado do que somos já soa em rumos de obsolescência, quando vivemos num entre ser e não ser inesgotável.
Mas para não mais nos demorarmos, agora sim, vamos à crônica:

Quando a filosofia mudou de... estante?!

Depois do café da manhã, organizo minhas coisas, meus livros espalhados por todos os lados em virtude de uma dissertação de mestrado que nasce aos trancos e solavancos de teclas digitadas. Tudo bem, tudo acertado, sem aula hoje à tarde e sem encomendas de revisão de texto: perfeito para um dia inteiro de escrita! Porém, antes, precisava passar na biblioteca e pegar alguns livros. E já que não iria à faculdade, resolvi passar na biblioteca municipal, quase ao lado de onde moro.
Minha namorada liga, os pássaros cantam, risos são cultivados... carteira, chaves no bolso – tenho que varrer esse chão depois... – e, finalmente, resolvo descer. Chego à rua, vou passando – oi, tudo bem! – e a rotina da boa convivência vai se desenvolvendo.
Passos à contramão de ideias sempre nascendo: droga porque não trouxe meu notebook – caderninho de capa preta etiquetado assim mesmo: notebook. Que legal, o primeiro notebook em que preciso virar as páginas com os dedos, genial! E, diga-se de passagem, utilíssimo! Sempre me acompanha para onde vou... Bem, quase sempre...
Viro a rua, pessoas passam – sempre passam – e, até que enfim, a biblioteca se alarga, colando-se à minha visão. Vou entrando e me deparo com um monte de livros amarrados em cima de várias mesas. Já vi tudo, não poderei levar nenhum emprestado. Seria por causa das férias escolares de meio de ano? Creio que não, pois os responsáveis pelo lugar não se equivocariam em achar que a garotada de férias não procuraria por livros... Deve ser algum calendário administrativo de urgência, reforma emergencial, sei lá... Bem, postei-me como uma contradição ambulante e, em seguida, resolvi procurar um funcionário e tirar minhas dúvidas.
Segundo as informações que ele me deu, só os livros didáticos estavam impossibilitados de consulta e, obviamente, empréstimo. Concluí que não era o meu caso. Procurava um livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: Assim falava Zaratustra. Até o tenho em casa, mas uma edição barata e malcuidada. Daí, resolvi procurar outra porque acho que Nietzsche a R$ 7,00 é sacanagem!
Fui ao arquivo, remexi fichas empoeiradas, espirrei, me arrependi de coçar o nariz com as mãos sujas de poeira, mas tudo bem. Fiquei feliz quando achei a ficha do livro.
Aproveitei a oportunidade e a felicidade de uma biblioteca ao lado de casa para procurar outros livros que possivelmente precisarei. Ok, mas segundo o funcionário só poderia levar dois: escolhi quatro e, dentre esses, um seria o vencedor, ganhando como prêmio um aconchegante “em cima de alguma coisa” na minha bagunça literária! Claro, o Zaratustra já tinha lugar cativo, então, a briga seria ferrenha: Guimarães Rosa, Aristóteles, Turma da Mônica (já contei que essas revistinhas são leitura obrigatória em certos momentos de relaxamento? Um dia ainda coloco uma estante no banheiro...).
Entreguei ao funcionário os nomes dos títulos de que precisava e fiquei esperando que ele voltasse com os livros (e a revistinha!). Enquanto isso, fiquei perambulando por outras estantes, só olhando, sem me afastar muito do balcão. Daí, percebi que ele voltava e, para minha surpresa, sem um dos livros:

– Olha, esse não deu pra pegar porque é didático.
– Hum? Didático?
– Sim, esse aqui, o de filosofia.
– Então, ele é de filosofia!
– Então, é didático!
– Nietzsche? Didático?
– Não é de filosofia?
– Sim... é...
– Então, é didático!

Fiquei ainda olhando para ele. Tentando entender desde quando Nietzsche era didático. Será que perdi alguma reviravolta filosófica? Se Nietzsche era didático, será que Heidegger estaria na seção de autoajuda, procurando o Ser?
Putz, claro! Tinha esquecido de que a filosofia se tornara disciplina obrigatória nas escolas desde 2008, com idas e vindas e transfigurações políticas. Mas, na verdade, tal obrigatoriedade não é recente.
Lembremos de que em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 4.024/61), inicia-se o processo de afastamento da filosofia, que era obrigatória desde a Proclamação da República (15 de novembro de 1889), tornando-a uma disciplina complementar. Na década de 1970, com a lei 5.692/71, a filosofia foi afastada do currículo e travestida de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, uma piada de mau gosto em cores de fardas militares e sisudez ditatorial. Em 1998, a disciplina volta como tema transversal para, só em 2008, após a sanção da lei 11.684/08, a filosofia se tornar obrigatória no ensino médio.
Minha cabeça girou por datas e acontecimentos, recolocando a filosofia e a didática como questões a serem calmamente pensadas. Imagine: Nietzsche fragmentado em regras e cronogramas: a filosofia como matéria didática! E esse quadro só foi assim pintado porque a didática se transformou em procedimento de ensino passo a passo, ou seja, técnica pedagógica não muito funcional, ou extremamente! E a filosofia, mera contação de fatos historiográficos. Linha reta que ordena cada filósofo na fila da decoreba. Claro que o problema é muito mais profundo, e certamente não caberia nesta crônica.
Mediante essa situação, em poucas palavras e para que sejamos minimamente justos, seria necessário pensar tanto a filosofia quanto a didática no que elas podem oferecer ao aprofundamento reflexivo nas questões do humano. A travessia de uma na outra como provocação de pensamento. No entanto, se a filosofia passou a ter cunho didático, inclusive com trocas de livros para a estante desse mérito, creio que essa passagem é problemática porque não está se reconhecendo o próprio de cada uma. Em vez de, quem sabe, uma possível mutualidade implicativa de pensamento questionante, estamos assistindo à troca de rótulos sem alguns nem se darem conta desse absurdo: – Ah... o governo estipulou, a gente cumpre! O cafezinho já tá pronto?...
Isso tudo aconteceu ali, em segundos, eu postado diante do funcionário: duas estátuas se entreolhando, girando em mundos particulares. Respirei fundo, peguei os livros e ele seguiu com as atividades que fazia antes de eu chegar.
Atravessei a porta de saída e fui embora...

Ah, claro, esqueci de dizer qual o livro escolhi dentre os três (não mais quatro, já que o Zaratustra estava retido no bolo dos livros didáticos). Ainda aturdido com o acontecido, só consegui pensar em chegar à minha casa e ler: “Cebolinha e a filosofia de Sansão: assim zunia o coelho”, com a porta do banheiro devidamente trancada. Seria dessa maneira que a educação estaria sendo pensada?

1 de agosto de 2010

Ensaios recentes!


Está no ar o novo número (nº 12) da revista O Marrare. Nela participo com o ensaio “Virgílio de Lemos: o barroco estético em onze proposições de corpo”. Também já está disponível para download a última edição  (nº 22) da revista Terceira Margem, na qual participo com o ensaio “Palavra: a casa do poeta”. Esta última revista também tem sua versão impressa, que provavelmente estará acessível entre os meses de agosto e setembro.
Como o link acima da revista O Marrare leva direto ao meu ensaio participante da mesma, então postarei aqui o que saiu na Terceira Margem. Mesmo assim, recomendo aos leitores que acessem os links e visitem as duas revistas, ambas com contribuições importantes ao pensamento: a primeira tratando das literaturas portuguesas e africanas, e a segunda com ensaios em cuja diversidade temos o diálogo com a Poética, num mosaico em que o questionamento sobre as mais diversas questões da arte se faz presente. Sem mais demora, vamos ao texto:

PALAVRA: A CASA DO POETA

Fábio Santana Pessanha

“Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que
eu a seja.”
Manoel de Barros, Livro sobre nada

Em nossa reflexão, intentaremos pensar a palavra em sua intimidade com o poeta. Desta maneira, dizemos que a palavra é a casa do poeta. Nela habita toda transitoriedade de negação e afirmação, toda gama do espetáculo do humano, pois congrega em sua dinâmica a dupla possibilidade de velo e desvelo.
Teremos um percurso que se estruturará nos três movimentos articulados desde o título: a palavra, a casa e o poeta. Mergulharemos na circularidade que abarca estes núcleos ao dialogarmos com o sentido que cada um nos oferta, assim como nos moveremos no quanto de interpenetração tal incurso nos possibilita.
Entremos, portanto, no âmbito do poético e nos deixemos tomar pela palavra: esta que nos atravessa, cinde e reúne em seu alvorecer mais profundo: “A palavra mais antiga para o poder da palavra, entendido como dizer, é lógos" (Heidegger: 2003, p. 188). Sejamos a voz das musas na música do silêncio e o gesto do corpo no salto ao abismo de ser. Nesta dimensão, entendemos que o caminho do pensar é sempre radical por propor uma novidade a ser dita. Porém, novidade não como a última notícia de uma linha evolutiva, mas como boa nova, inaugurabilidade de se presentificar um olhar singular, um único dizer.
Em diálogo com obras poéticas e filosóficas, colocamo-nos em escuta do que somos no operar da arte, portanto, na consumação do humano ao se realizar artisticamente. Isto é, nos deixaremos interpelar pelas questões que nos são propostas no encaminhamento da leitura, logo, do apropriar-se. Ler, aqui, significa a entrega ao cuidado do repouso, ao atravessamento que nos apetece e nos toca sempre radical e misteriosamente.
Indagaremos pelas questões num duplo embate entre escuta e fala; a fala do poético, o dizer da linguagem. Então, experienciaremos uma interpelação de mão dupla, no sentido de nos voltarmos às provocações levantadas que se farão pertinentes ao longo do texto. Melhor do que descrever o que virá pela frente, trilhemos os (des)caminhos do pensamento.

A palavra

Comecemos dialogando com um poema de Manoel de Barros:

[...]
Para enxergar as coisas sem feitio é preciso não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio.
(Barros: 1998, p. 35)

Quando atentamos ao verso “Para enxergar as coisas sem feitio é preciso não saber nada”, somos encaminhados à desvanescente certeza do visto, isto é, somos enganados pelo que nossos olhos nos mostram. Não vemos o que os olhos veem, mas aquilo que, ao se presentificar, presenteia-se à nossa visão (Cf. Heidegger: 2007). Desta maneira, enxergar “as coisas sem feitio” é destrancá-las de uma forma prévia de apresentação. É como pensarmos a representação além do estabelecido pela perspectiva ocidental. Em outras palavras, se no âmbito ocidental o representar significa trazer à presença por meio de símbolos algo que esteja ausente, podemos repensar a representação a partir de sua própria configuração enquanto palavra. Assim, re-presentar é tanto o presentar contínuo do sendo quanto o presentear da coisa à presentificação do ser no tempo e no espaço.
Tal proposição é possível quando deixamos a representação florescer em sua dinâmica verbal. Assim, depreendemos que “re-” pode ser tanto o prefixo indicativo de retorno quanto a alusão ao res latino, cuja tradução se desdobra em vários significados, dentre eles, “coisa”. O vocábulo “-presentação” vem de presentar, apresentar, isto é, trazer à presença algo ausente.
A outra parte do verso nos diz que para chegarmos à essência das coisas, ou seja, quando ainda estão sem feitio, “é preciso não saber nada”. Cremos que o saber se funda na inesgotável circularidade entre velo e desvelo das realidades do real. Isto nos leva diretamente ao âmbito da verdade em seu acontecimento poético, ou seja, a sabedoria não é algo que se retém no conhecimento, mas se doa no movimento do pensar. Podemos, então, admitir que saber é sabor em razão de sua coincidência etimológica.
Temos as duas palavras na esfera da experiência e do atravessamento do corpo para além dos sentidos. Assim, sapere, além de significar “saber” também nos diz “ter gosto, sabor” (Cf. Houaiss: 2001). Então, podemos considerar uma configuração de experimentação do que se realiza na dimensão da travessia do saber ao não-saber, logo, do ser ao não-ser. Também podemos invocar a este movimento a tensão que confere existência ao homem e que lhe possibilita errar na inconstância da experiência de ser. Não saber nada não é estar desprovido de conhecimento, mas viger na plenitude da sabedoria, isto é, o não-saber é a máxima condição de abertura ao saber.
É importante notar que o verso termina com “nada”. Desta maneira, o fim se torna princípio e vice-versa no consumar do círculo poético. Este desfaz a dicotomia que estrutura um ponto de partida e seu destino – enquanto meta – ao trazer o princípio-fim como desvelo auto-velante do real, portanto, alétheia. O nada como nascividade é a clareira de onde eclode a coisa e se apresenta num formar-se. Esta circularidade nos possibilita entender que enxergar as coisas sem feitio é surpreendê-las no instante de sua criação.
Como uma ordem proferida, somos convocados a entrar em “estado de árvore”, a nos apropriarmos da liminaridade que a phýsis nos possibilita, na medida em que o arvorescer se dá no crescimento ambíguo tanto para o céu quanto para a terra. No verso seguinte, da mesma forma, somos convocados a entrar em “estado de palavra”. Daí, qual a relação que se apresenta entre árvore e palavra?
Assim como a árvore, numa dada dimensão, a palavra irrompe num silenciar que coaduna as margens da liminaridade entre o nomear da coisa e a própria coisa: “Palavra, assim, é o limite, quer dizer, a hora, o lugar da coisa” (Fogel: 2007, p. 50). Entrar em estado de palavra é sê-la em seus ditos e desditos, é estar em vigência com a morte no “palavrar” da vida. Palavrar? Isto mesmo! Diferente do verbo palavrear – que significa basicamente falar – o verbo palavrar insufla de poeticidade a argamassa gramatical e se funda na vigência do pensamento originário. Pensar originariamente é concrescer na multiplicidade do real ao se doar em realidades inaugurais. Portanto, fundemos o verbo palavrar! Verbo que traz em seu não-dizer possibilidades de outros caminhos.
Palavremos, pois entrar em estado de palavra é ser o próprio palavrar, é habitar o cume do silêncio nas voltas da linguagem. Cada curva é um sentido, cada letra uma ponta de vida que se origina. Vislumbrar a palavra no momento de sua criação quando está embriagada pelo estado de repouso, a isto chamamos de palavrar!
A palavra foge de nosso âmbito de utilidade e nos leva ao princípio de humanidade. Desta maneira, imergimos no mistério de onde surgem o canto e a dança, absurdamos a incidência do surpreendimento da voz e do gesto: mundificamos.
Mundificar é presentificar mundo, organizar as coisas na plenitude espaço-temporal de ser. Assim, mundificamos ao tornar palavra o silêncio que nos alarga e nos atravessa. E, da mesma forma, somos levados a enxergar o não-visto, as “coisas sem feitio”. Eis o movimento do palavrar que vemos no poema: nos tornarmos palavra enquanto travessia.
Se quisermos entender o sentido de palavra na dimensão retórico-conceitual, basta consultarmos um dicionário. No entanto, ao observarmos tal vocábulo em sua origem grega (parabállo), podemos pensar que palavra é o movimento contínuo que se move em seu próprio transitar, uma vez que parabállo significa “lançar junto, ao lado de”. Este encaminhamento é interessante à nossa reflexão, tendo em vista que a palavra é sempre uma dinâmica alicerçada num figurar. Não podemos considerar que palavra seja o modo de representar o pensamento, que seja instrumento da linguagem. É necessário que nos atentemos ao seu devir, aos seus encantos de ambiguidade.
Quando mencionamos a dupla dinâmica da palavra no palavrar, fazemos referência ao silêncio que doa a fala na própria enunciação. De outro modo, não partimos de uma ordenação linear, mas apontamos a circularidade e simultaneidade destes dois movimentos. Não que primeiro tenhamos o silêncio e dele nasça a fala; nem que o silêncio seja o cessar da mesma. O que dizemos é que silêncio e fala se dão em um mesmo instante, uma vez que o silêncio é o que dá condições de a linguagem acontecer numa fala. Ou seja, enquanto o silêncio se vela na máxima condição de repouso, a fala irrompe como plenitude do dizer. E, da mesma maneira que a fala resguarda o silêncio, este, ao se plenificar, ressoa a condição máxima da não-fala. É nesta tensão que temos a palavra: o acolhimento do silêncio na fala é simultâneo ao acolhimento da fala no silêncio. Temos a palavra neste entre-fala-e-silêncio. Podemos, então, atinar que a palavra não é só o que dizemos, mas é o que somos na travessia do silêncio.

A casa

Dizer que a palavra é a casa do poeta nos leva a questioná-la poeticamente, ou seja, tentar chegar ao lugar de sua essência e proveniência. Ao fazermos isso, aproximamo-nos do berço onde repousa a inspiração. Devemos ressaltar, contudo, que a inspiração da qual tratamos não é a mesma significada num ímpeto externo ao poeta, ao contrário, referimo-nos ao furor que independe de sujeição volitiva e se resguarda no misterioso lugar do sagrado. Sendo assim, o que se chamaria habitualmente de inspiração, trataremos como entusiasmo.
Pensar em casa, de uma certa maneira, enseja uma ideia de proteção: o local onde nos abrigamos. Casa é o lugar do acolhimento, refúgio no qual os conflitos se arrefecem ou se impulsionam. É neste ambiente tensional que a palavra é a casa do poeta, já que “não é uma cópia ou decalque das coisas, mas justamente a elaboração que contém e retém em si a abertura recolhida e tudo que nela se oferece e patenteia” (Heidegger: 2007, p. 123).
Ao abrigo em que tudo se oferece e patenteia nomeamos palavra. Ela é o elo que reúne as musas no vigor musical de todo poetar, já que poeticamente todas as palavras são peças de canto regidas pela memória.
As musas são filhas da linguagem (Mnemosýne) e esta dialoga com o sentido de memória na vigência do originário. Uma outra imagem-questão que nos conduz a tal reflexão, por exemplo, é a da terra como doadora de vida. O sentido musal se dá nos poetas enquanto o palavrar do silêncio. Este palavrar é também o recolhimento de toda palavra no silenciar vigente da fala. Falar é calar: copertinência do nada no florescer da linguagem. Insistimos, falar é cantar, uma vez que as palavras são cantadas, como vemos na reflexão de Torrano em diálogo com Hesíodo:

O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosýne) através das palavras cantadas (Musas). Fecundada por Zeus Pai, [...] a memória gera e dá à luz as Palavras Cantadas, que na língua de Hesíodo se dizem musas (Torrano: 1992, p. 16).

A superação dos bloqueios e distâncias espácio-temporais que ouvimos pela narração acima não se veiculam no aporte metafísico de entendimento, pois a superação aqui não diz ultrapassagem enquanto evolução, e sim a instauração do concreto na consumação da memória. O tempo e o espaço não se dão linearmente, mas poeticamente, o que significa a plenificação do ser na vigência de todo sendo (ente). Em outros termos, eis o surgimento dos poetas pelas musas, em cujo seio se dá a festa dionisíaca abismada no entre vida-e-morte.
Entusiasmados, os poetas irrompem num palavrar musal. Tomados pelo espanto (thaumádzein), entreabrem as vagas do mistério num dizer que horizonta o canto, a dança e o silêncio em gestos de mundo. A palavra não é uma morada em que se esvaziam os versos, mas a di-ferença congregante de alegria e dor no brilho do pensamento poético e do poetar pensante. Pois é sempre um desafio habitar o limite entre vida e morte, mais ainda quando esta fronteira é avultada no brotar da palavra poética. Esta convoca no seu dizer o duplo domínio do agir e silenciar enquanto unidade concreta (poíesis) que se retrai ao se manifestar (alétheia).
A palavra não é só a casa do poeta, é também a soleira da linguagem na manifestação do real. A linguagem se consuma mnemonicamente, na medida em que o poeta se espanta e retorna ao princípio de sua nascividade. Na verdade, retorna para o lugar de onde nunca se ausentou, por vigorar na gestualização do sagrado.
Quase inevitavelmente, repercutem em nossa escrita os dizeres de Heidegger: “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação” (1973, p. 347).
Pensar é poetar, pois o poético é sempre o movimento que aponta em direção ao pensamento originário. O poeta não é aquele que conjuga versos, mas é o que se põe sensível ao toque do extraordinário. Em vista disso, os poetas e pensadores guardam a linguagem enquanto habitação do homem.
O homem nasce na linguagem, uma vez que ela o antecede e, na vigília da palavra, os poetas protegem o brotamento do palavrar poético. Mais ainda, a linguagem doa a palavra ao homem e este é por ela enredado de maneira irreversível. Guardar a habitação do ser significa viger em seu sendo, isto é, na intimidade entre homem e linguagem viceja o surpreendimento do poético no palavrar. Sabemos que a poesia, quando vislumbrada no que os gregos denominam poíesis, é o agir originário, a criatividade fundante das realizações do real em correspondência com o homem. Deste modo, não é o homem quem cria, ele se deixa possuir pela concriatividade do real e se realiza no entre-transitar do ser. Neste entre, a palavra vigora como exsurgência do nada. Esta é a experiência do poeta, haja vista que se atenta ao momento decisivo de uma palavra acontecer.
Todo homem é vigente na linguagem. Entretanto, o dar-se conta do palavrar cabe aos poetas, pois eles se entregam ao exercício da escuta, na medida em que “escutar é deixar-se invadir pelo real acontecendo” (Castro: Escuta, 1). Em função da banalidade que transfigura o pensar poético, a palavra é tida como parte de uma verbosidade, isto é, sua dinâmica circular entre fala e silêncio é desfigurada na quebra desta ambiguidade. O palavrar se torna palavrório quando a palavra deixa de se lançar na entridade das realidades. Com isto, forma enunciados fixos e o silêncio se torna esvaziamento. O poeta perde sua casa, transformando-se num retórico por lidar só com rearranjos de conceitos em vez de se disponibilizar ao enigmático domínio das palavras.
A banalização da palavra retira o poeta de seu corpo, rouba-o da terra ao ceifar suas raízes. O poeta é arremessado de sua fala, ou seja, exime-se do palavrar, as nuances de cores e sons, pondo em linha reta a ambiguidade da linguagem. Neste movimento de alinhamento, predomina o enfoque científico como instrumentalização da linguagem em alguma utilidade objetiva.
A palavra se dá enquanto corpo. O poeta se lança em seu vigor e se abisma no horizonte de sua habitação: eis a palavra enquanto margens da linguagem.

O poeta

O poeta se plasma em palavras: arrebata-se no dizer múltiplo de falas e entrelinhas de silêncio: abre, entremeia e acerta o íngreme estado de palavra: mundifica. Faz do canto seu voo, da lógica desentendimento. O poeta mora na palavra quando esta é, a um só instante, permanência e mudança... E, assim, vai desaguando na linguagem.
Plasmar talvez seja um dos principais verbos que se liga aos poetas, pois estes figuram em palavras os contornos do indizível. Plasmar significa modelar e, modelando, o poeta ausculta a convocação que o atravessa, vocifera o palavrar do verbo que o irrompe: poesia. A fim de dialogar com a dinâmica do poetar, ouçamos o que nos diz o poema abaixo:

Poesia

Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
(Andrade: 1980, p. 16)

A poesia figura e transfigura o poeta, lança-o na incomensurabilidade de ser e não-ser. Esta tensão pode até evidenciar um esforço de cunho técnico empregado quando o poetar se reduz à mera manipulação estrutural, ao trabalho das formas. Porém, é insuficiente ao convite de uma poética da poíesis. Isto significa que o poeta não força a eclosão do poema, pois não é ele quem cria. Na verdade, o poeta se abre ao brilho da realidade quando é tomado pelo estado de criação. Assim,

[...] na obra não é o poeta que cria, mas é a própria realidade que advém como verdade e sentido, na medida em que ela opera desvelando-se tanto mais quanto mais se vela, enquanto linguagem do silêncio (Castro: Interpretação, 5).

A “linguagem do silêncio” impera na pena que “não quer escrever”, pois não é a mão do poeta que, ao segurá-la, faz brotar o verso em estado de palavra, mas ele, por ser vivo e solene, se aquieta na profundidade do mistério gestante de sua irrupção em realidade.
A pena não tem vontade, sua ponta voluntariamente não rabisca o sentido a ser desvelado. Ao contrário, recolhe em seu traço a poesia vigente em seu não-dizer. O poeta não comanda o poema, os versos é que o arrebatam e o transgridem em direção ao extraordinário. Seu horizonte é a poíesis, sua medida é a desmedida de entre-ser.
O verso que “não quer sair” aponta a impossibilidade de se determinar a sujeição do poetar à vontade humana. Além do mais, indica uma possível fronteira de saberes ou sabores na experiência do incalculável, quando contrapomos os versos 1 e 3: “Gastei uma hora pensando em um verso” / “No entanto ele está cá dentro”. Deste modo, o duplo encaminhamento de querer escrever o verso e senti-lo se dá no instante em que o determinismo com o qual o homem se camufla é insuflado por sua escuta. Neste incurso, há um adentramento de seu cuidado, isto é, uma auto-escuta: uma auto-poetização.
A intransigência de querer fazer um verso é traspassada, reinstaurando-se numa circularidade própria e condizente com o vigor do real. O verso está dentro do poeta, portanto, compõe um corpo. Não é possível um agir de cunho externo, até porque toda obra de arte conclama princípio e fim (arkhé e télos) em sua configuração de mundo. No operar da arte, temos a consumação da plenitude, a invenção contínua de empenhos no homem. Assim, vemos a desfiguração de um sentido puramente teleológico para a concretização da verdade enquanto alétheia, logo, como o desvelar-auto-velante da realidade.
Em outro momento, temos a tensão em voga no poema: “Ele está cá dentro/ e não quer sair”. Aqui, já se densifica a oposição poética que será deflagrada nos últimos dois versos: “Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira”. Estes quatro versos que mencionamos convocam o sentido do poético como permanência e mudança, principalmente nos últimos dois: permanência porque a poesia pertencente a um momento singular que se alarga por toda a vida – esta enquanto reunião de espaço e tempo. O percurso de vida será o transbordamento do poético, haja vista que todo instante é um recolhimento deste marco fulcral, ou seja, a culminância de tempo e espaço no presentar-se da realidade.
Toda mudança é sempre nova na experiência do poético. Deste modo, o inundamento da “vida inteira” se apresenta a nós como desdobramento do próprio nas diversas presentificações do real. As mudanças só são possíveis porque remetem sempre ao que é permanente e este confere unidade aos ensejos de realidade, às inesperadas curvas do transitório.
O poeta mora na palavra e a palavra se plenifica na linguagem. A poesia atravessa o homem e o enleva, transporta-o ao lugar do absurdo: poetiza-o. O poetar é constante de vazios, de luvas tangentes às mãos da caneta ou da pena que rabisca o traço de horizontes. Todo poema é um horizonte no qual o poeta se lança, morre e vive ao mesmo tempo. Todo poema é uma costura de palavras, frases, gestos e escuridão.

Um final que diz o mesmo, mas diferente

A palavra é a casa do poeta, é a cesta que abriga as dadivosas noções de todas as coisas em pequenos furtos de razão. A clareira se abre ao nascimento do verso, refestela-se no indizível das falas jogadas ao vento. O palco dos poetas é sua habitação terrena, sua glória de nunca não dizer. Fala o que corta a carne, ouve o que bifurca a linha reta de conheceres; é o ser do sempre-sendo. O poeta figura na sala das incompreensões lógicas, rompe os laços que unem cada peça dos blocos de montar infantis. Estes blocos, nas mãos dos poetas, são brinquedos de entortar razões, de anunciar o a-ser-dito na simplicidade de um sorriso.
A casa do poeta se fundamenta nas instalações de nuvens passantes, aquelas que dão vida às imaginações transeuntes. A casa do poeta se movimenta na conformidade de riquezas não-tácteis, convoca a surdez para as coisas banais e escuta o lancinante romper do certo. Erra o poeta por descaminhos de poesia, por palavras estreantes de si mesmas.
Diz-nos o filósofo alemão: “A palavra é o que confere vigência, ou seja, ser, em que algo como ente aparece” (Heidegger: 2003, p. 180). Portanto, ao conferir vigência, a palavra se concretiza como impulso poético num lance de corpo-inteiro do poeta, isto é, sem a separação entre corpo e alma tão presente no cartesianismo ou, por desdobramento, entre silêncio e fala, entre tudo e nada.
Os versos de um poeta não são frases soltas, são instalações de sentido e verdade. O mundo torna-se novamente e o gesto se renova no enlace do palavrar. A corporeidade poética traz em si o instante, o sempre presente de um toque de silêncio. O aparecimento do poema faz aparecer o poeta na apropriação do poetar. O dizer do poema se configura enquanto corpo, presenteia a palavra na dança da linguagem.
A palavra é a casa do poeta: o poetar vigora no palavrar do não-dito, funde as semânticas empoeiradas e as leva às luminosas curvas do não-saber. O tornozelo de um verso diz mais do que um tratado médico de osteologia, e, assim, a palavra vai ganhando voo na liberdade do dizer e do resguardo de silenciar. Esta é a desmedida da palavra na eloquência do silêncio: a batida na porta da casa do poeta: a palavra.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poesia”. In: Reunião. 10ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.
______. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Escuta, 1”; “Interpretação, 5”. In: ______ e outros. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Escuta. Acessado em 10 de maio de 2009.
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