4 de fevereiro de 2008

O Mito de Thoth* e alguns apontamentos

Do livro Fedro, de Platão, destacaremos este diálogo entre Sócrates e Fedro acerca da escrita e seu mito de criação, inseridos na rede poética do pensamento originário. De certo, qualquer discussão não dará conta da dimensão que o mito traz em si. Mas, como a intenção não é esgotar a discussão numa atitude responsivo-elucidativa, faremos o percurso do pensamento que questiona, que se lança na obscuridade abismal do que se resguarda na antecedência de um questionamento. Dito isto, vamos ao mito:


Sócrates – Por acaso sabes quais são as condições necessárias para que, já os discursos, já as acções sejam agradáveis aos deuses?

Fedro – Não, e tu, sabes!

Sócrates – Pelo menos, conheço uma lenda que nos foi transmitida pela tradição antiga. Se é verdadeira ou falsa, não sei, mas, se por nós mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?

Fedro – Que pergunta! Vamos, conta-me essa história que dizes ter ouvido!

Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egipto houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipto era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egipto, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más. Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. _ “Oh Thoth, mesmo incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por conseqüência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!”.

Fedro - Com que facilidade inventas, caro Sócrates, histórias egípcias e de outras terras, quando isso te convém!

Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhe parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!

Fedro – Tens razão para me castigar com essas palmatoadas, mas no que respeita a escrita, parece-me que o tebano tinha razão.

Sócrates – De onde se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo, não entendendo o aviso de Ámon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?

Fedro – Perfeitamente!

Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos, mas se alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.

*Texto transcrito do livro “PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986: 120-123.”

Certamente, esta passagem nos reporta a algumas questões, como memória, diálogo, sagrado e claro, escrita. Mas isso é o obvio. O que nos interessa neste perguntar pelo que não se vê de imediato é a apreensão do que se vela no silêncio do não-dito. Observemos o seguinte: o texto já se mostra como um diálogo, portanto, há alguém que fala e outro que ouve. Estes alternam suas posições, e o que fala também escuta assim que aquele que escuta passa a falar. Eis o círculo poético da comunicação, não como a troca de mensagens codificadas como já nos diziam os estruturalistas, como Roman Jakobson por exemplo, mas como vigor do que é e não é, do que é fala e silêncio simultaneamente, uma vez que todo dizer tem seu originário no silêncio. Enquanto algo é dito, seu silêncio é velado e, quando esta fala se cala, o dizer se vela no desvelo do silêncio.

Uma questão que antecede o que fora agora mencionado é que, antes de diálogo, trata-se de um mito, o mito de Thoth. Sendo assim, o que é isto - o mito?

O mito não tem a ver com as falácias contemporâneas que o defendem como histórias antigas, versando na ambiência retórica do que é fictício, imaginação ou falsidade. Ficção num sentido que não atende seu sentido originário. Este sentido originário nos dá o fingere, o fingir como moldar, como realização do real na disputa terra-mundo, do fazer poético como agir da physis. A ficção a que normalmente se tem acesso é aquela que diz um fingir como “faz de conta”, como o que não é real. Mas, se somos doações do real, o que não é real? Este questionamento suspendemos por enquanto. O mito é o acontecimento do sagrado, daí que:

(...) todos os mitos e todas as obras de arte se fundam numa experienciação do sagrado na medida em que este doa o genos de onde surgem os seus membros a partir de uma moira, ou seja, aquele quinhão (destino) que é inerente a cada um dentro do genos. Então o humano vai ser esse destino que une os seres humanos a um genos como doação do sagrado. É o que nos ensinam os mitos (CASTRO, 2007).

Tendo em vista estas palavras, observamos a importância do mito na constituição do humano como busca por sua essência, ou seja, como aquele que pro-cura por seu originário. Assim posta a questão, temos que o mito nos antecede e nos contém, assim como conosco dialoga. E do que tratam Sócrates e Fedro neste trecho? Sim, da escrita. E o que é isto, a escrita? Escrever não significa mera codificação do pensamento em símbolos que se fixam pelo ato humano de escrever. A escrita nos diz também a realização do real enquanto faceta que se apresenta independente do código que se faz uso. Não importa o idioma ou o mecanismo com que se realizará o escrever, mas o próprio ato como o verbo que doa sentido e ação poéticos (poiesis) na tessitura do interstício entre o vazio e a deveniência do que será esculpido no tempo enquanto palavra, enquanto tecido que delineia a entridade dos espaços vazios com as linhas de tal rede textual.

Num dado momento do mito, quando Tamuz nos diz que o possível problema acarretado com a escrita seria a perda da força da memória, ele nos traz a questão da verdade em articulação com a memória. Esta última, num sentido imediato, nos leva às reminiscências, ao rememorar como ação de trazer ao presente um fato do passado como representação. Contudo, numa leitura mais aprofundada, observamos que, pensando a memória como a mãe das musas (Mnemósine), temos a constituição do que foi, é e será. Então, do tempo além da linearidade cronológica, posto que:

a memória, no mínimo, passa a ser condição de possibilidade da constituição de um tempo que se conforma para além de uma noção de tempo mais imediata, mais comprometida com um plano meramente ôntico (JARDIM, 2005: 127).

Memória e verdade se relacionam muito intimamente, já que a memória revela a verdade por fazer eclodir no tempo a ambigüidade da verdade no plano do verdadeiro. Noutras palavras, por evidenciar o quanto a verdade se dá num movimento de velamento e desvelamento na simultaneidade do tempo como deveniência imemorial da memória. A princípio, poderíamos entender que a verdade seria a conformação entre o enunciado e o que se enuncia, ou seja, um processo de adequação entre a descrição de um dado objeto com sua aparência, por exemplo. Entretanto, mais do que isso, Sócrates nos diz a verdade como aquilo que se desvela ao se velar: alétheia. Percebemos isso na passagem em que se faz comparação entre a pintura e o discurso:

As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos, mas se alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa.

Dizer a mesma coisa não significa dizer o mesmo. As “mesmas coisas” são formas diferenciadas de manifestação do “mesmo”. E, segundo percebemos no fragmento aqui trazido, conforme for o tipo de interrogação, poderemos ter outras maneiras de apreender o discurso. Eis o questionar que vigerá na singularidade do perguntar que surpreende o mero conhecer por acúmulo informacional, isto é, o diálogo realizado por Sócrates e Fedro também nos questiona, convocando-nos a interagir enquanto leitores na abertura da clareira de todo questionar, de vigência do diálogo enquanto diá-logo (o que nos conduz e nos faz habitar no “entre” - diá - da linguagem - logos -, na essência da originariedade do pensamento). Então, o “manter-se silencioso” das pinturas e dos discursos é, exatamente, a possibilidade da infinitude do diálogo na manifestação no horizonte do porvir. Não se trata do silêncio como ausência sonora, mas como excessividade do nada originante, do silêncio proveniente de todo dizer.

A questão da escrita se insere na possibilidade infinita da realização da leitura que pede não só pelo que está presentificado na concreção textual, mas pelo que se ausenta na presença do silêncio. O silêncio, este não-dizer originante, está totalmente entregue no que está dito, pois para que se diga algo, é necessário que o silêncio se vele. Neste velamento, há a possibilidade do que se desvela enquanto palavra (escrita ou não) aparecer enquanto tessitura verbal, enquanto as entrelinhas de todo texto.

O Mito de Thoth, portanto, nos relaciona com o sagrado mítico, com o diálogo nascido no silêncio da fala exposto na concrescência do percurso histórico. Então, mais do que uma conformação, mais do que uma aceitação do sentido apenas adjetival do que seja o verdadeiro, deparamo-nos com o diálogo que dialoga a verdade como ação e retraimento. Conforme já dito acima, como o desvelamento do que antes se velara e continuará a se desvelar velando-se continuamente neste movimento circular-poético. Porém, certamente, as questões deste mito, assim como do diálogo integral (aqui traduzido por Pinharanda Gomes) realizado entre Sócrates e Fedro não se esgotaram e nem se esgotarão. Quanto mais leituras forem feitas, mais questões serão percebidas. Esta percepção tem a ver com a singularidade de cada leitor, de cada leitura realizada não como mera decodificação de códigos, mas como postura de escuta. Assim, de um deixar acontecer daquilo que se obscurece no mistério da escrita como ambiência do sagrado e da verdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Manuel Antônio de. Representação e arte. Disponível em http://travessiapoetica.blogspot.com/2007/05/representao-e-arte-prof.html

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva Ltda, 2001.

JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005.

PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.