20 de dezembro de 2015

O grito mineral da carne: memória

Ao revisitar meu livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos, lembrei-me de uma imagem que sempre mexeu comigo: “o grito mineral da carne”, presente no poema “Ouamisi”, do poeta homônimo. Na leitura que fiz, percebi também o sentido da questão da memória sendo trabalhada, imiscuindo-se na imagem do corpo, forte presença na poética virgiliana. Então, abaixo reproduzo a leitura que fiz de tal imagem e convido quem quer que seja a partilhar comigo sua leitura:

O “grito mineral da carne”, bela imagem poética que inflama na voz a exorbitância do corpo. Cava o cerne da carne, expurgando o arrebatamento de um bramido subterrâneo. Berro este que é atroz, que costura com dura mineralidade o que perfura e circunferencia fendas de sangue e voz: sumo que se consuma no entoar bravejo do nascimento: ilha. Sua força poética nos leva às profundezas da terra, onde não é possível discernir origem e originado. Nesta passagem, filho e mãe estão unidos pelo grito, são a reunião da progenitora com sua cria numa fala imprecisa – ‘Será que posso falar [...]’ –, cuja vida é o furor do que explode e emana em existência. O grito mineral da carne é o clamor da terra embebida de sangue e cravada de pele, da pele da história de quem suou e remexeu o chão nas culturas, de quem pisou e deixou suas pegadas na memória telúrica, de quem morreu e teve sua vida renascida nos frutos da colheita. Colher é ser histórico na medida em que não há revisita a fatos passados, e sim acolhimento daquilo que se apresenta no ato de uma experiência. Afundar as mãos na terra não é olhar para trás e imergir em recordações, mas trazer para a presença aquilo que se dá no exato momento de sua evocação, e esta é nossa relação com um poema: de presença. Memória é fundamentalmente presença do que se vela.
Assim se finaliza a segunda estrofe: “Será que posso falar de omnipresente osmose / entre o sagrado e o grito mineral da carne?”, pondo em questão a fala imprecisa que ressoa ao se perguntar pelo mistério entre o sagrado e o corpo, pois o grito mineral é também presença de corpo em gosto e cheiro de palavra. A osmose é um “entre” que se encaminha perenemente (permanência) num equilíbrio sempre buscado, porém nunca conquistado, haja vista o poema ser um corpo vivo em crescimento (mudança). A osmose terminaria junto com a morte do corpo, quando o poema não desencadeasse mais realidade alguma, quando não fosse a própria presença da memória. O mistério de irrupção da ilha habita a errância de um corpo que reúne em si o imprevisível de nomeações. Pisar numa terra cuja descendência se presentifica para além da codificação genética aponta à multiplicidade de vivências. Mais ainda, a terra não figura apenas como chão inerte, mas como solo de onde brotam as experiências de vida, o inalcançável e sempre presente no aceno de cada filho seu (Pessanha, 2013, pp. 106-7).

Também deixo o poema completo, pois seria muito injusto não partilhá-lo todo. Assim, cada leitor fica livre para se deixar levar por seus próprios caminhos, pelo corpo da interpretação.

Ouamisi

Será desta luz d’equinócio o manto verde azul
quem te confere teu ar de canto singular?
Será que o mistério vem mais da luz iridescente
que de tua alma errante em busca da vertigem?

Etiópia Sudão Novo Mundo e Extremo Oriente
escravos e canelas, baixelas de prata bordados.
Será que posso falar de omnipresente osmose
entre o sagrado e o grito mineral da carne?

Efebos e mulheres, conquistadores e naus
entre o simulacro de uns, de outros a firmeza,
neste santuário de almas, a génese irrompe

como se o génio da memória e da paisagem
se beijassem na imediatez do que reclamo
e do oceano imprevisível, nascesses tu, ilha.
(Virgílio de Lemos, 2001, p. 17)

Referências

LEMOS, Virgílio de. “Ouamisi”. In: Para fazer um mar. Maputo: Instituto Camões, 2001.

PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013.