22 de novembro de 2009

Um olhar poético sobre o educar: da habitação à morte*


Educar é morar, residir permanentemente no devir de um caminho de apropriação. Neste sentido, educar não é dizer como, mas apontar a partir de uma existência o metamorfosear entre externo e interno: consumação.
É necessário que se rompa a tradição baseada na retórica vicejante da quase-incorruptível relação sujeito-objeto. Nesta perspectiva, há aquele que ensina assim como aquele que é posto a aprender. Há um alguém que conduz para a predileção do domínio e, para a outra parte, sobra apenas a afirmação ou a conquista de algo que não lhe faz sentido por não ser seu originariamente.
Educar é encorpar, fazer nosso o que já é nosso. Assim, um autoapropriar-se na travessia que se apresenta misteriosamente. No entanto, misterioso aqui não se reduz à ficcionalização metafísica de um modelo formal, mas conduz ao transbordamento de corporeidade. Pois o mistério é o arcabouço do porvir e, por desdobramento, o berço da educação. Tomar corpo não é aparentar um sistema orgânico. Corpo é mais do que organismo, pois não se reduz a sistemas. Podemos dizer ser a unidade em que qualquer antagonismo é deposto de seu lugar de oposição para acolher a dissipação de polaridades. Desta maneira, o corpo é um todo que se plenifica em cada detalhe de suas partes.
A educação virou discurso volitivo, sujeição política, externalização do outro no transeunte da língua. Porém, como dizer ao outro o que não lhe pertence? Tentativas são feitas e o caminho vai seguindo... Como dizer da felicidade de alguém se não somos o outro? Faz-se uma representação do que é mais aprazível e aceitável, ficando o educar, nesta dimensão, como a metáfora do horário nobre popular.
O verbo educar deveria ter o significado de trazer a experiência da escuta para nosso próprio, isto é, para nosso modo de ser. Uma observação profunda que leva a uma auto-observação, autoescuta, auto-olhar, enfim, toda a possibilidade de experiência singularizada. É como o poeta que se apropria de si em cada verso, em cada obra que lança ao horizonte da leitura.
Neste movimento de incorporação, ler é ser a autoexperiência da humanização e educar, a consumação da convergência das diferenças no diálogo. Mas, para que isso aconteça, é fundamental uma disponibilização do homem à abertura de si mesmo, pois o que mais nos assusta é a possibilidade de nos descobrirmos para além daquilo que nos foi determinado como a aparência do que somos.
A tomada de contas do que somos mora na educação. E isso parece distante de se conceber se olharmos pela janela da nossa aparência, já que a educação virou uma afirmação daquilo que não nos pertence. Um encadeamento esquisito de conceitos e fórmulas...
Por mais que se tente enquadrar o homem nos bons modos da exatidão científica, haverá sempre uma brecha para o que é mais radical na vida: a morte. E esta não está no fim da linha como se supõe a linearidade moderna de percepção do real, mas vigora em todo instante como possibilitadora de todo viver. Morte não é apenas fim biológico, mas possibilidade de vitalizar, de fazer viger a circularidade poética de existir, pois, como diz Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: “É uma naturalidade morrer, transformar-se, transmutar-se. [...] Morrer deve ser um gozo natural. Depois de morrer não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso”. Portanto, educar é morrer.

*Texto originalmente publicado na Revista Educação Pública.

3 de novembro de 2009

A invenção das ilhas – antologia poética de Virgílio de Lemos


No dia 27 de novembro agora, sairá em Maputo (Moçambique) o novíssimo livro de Virgílio de Lemos, intitulado A invenção das ilhas – antologia de Virgílio de Lemos. Com organização, posfácio e revisão de António Cabrita (poeta, autor de contos, crítico de cinema e de literatura) a antologia será publicada pela Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa.
Segundo o próprio Virgílio, esta obra trará poemas inéditos que não constam do livro Eroticus moçambicanus (1999), organizado por Carmen Tindó. A importância deste último foi a de apresentar ao Brasil a poética virgiliana, evidenciando a grandiosidade de versos que reúnem em sua musicalidade e inaugurabilidade uma alquimia de imagens, sons e cheiros próprios. É o que vemos, por exemplo, no poema:

A tragédia e a língua
(Ao Luiz de Camões e ao Fernando Pessoa)

Fora ou dentro, a língua é luz
da alma, sendo seu próprio corpo
vegetal. Na folha em branco
passeia-se o nada recriado.

Sol, sendo luar, no desvelar reside
o segredo do criar, e na paleta
esquecida, vive ainda o morto,
duplo mergulho no texto e na deriva.

E é face ao mesmo mar de teus anseios
que neste outro olhar recrio o gesto
e reconcilio a tragédia e a língua.

(Do livro Eroticus Moçambicanus, pp. 67-8)

Agora é esperar que A invenção das ilhas saia o mais rápido possível também aqui no Brasil e que sejamos presenteados tão logo com uma provável imensidão poética de vertigem e caos.
Enquanto isso, adianto aos amigos leitores o texto da quarta capa do livro:

Virgílio de Lemos, poeta, antropólogo e jornalista moçambicano nasceu em 1929 na ilha de Ibo.
Impulsionador do movimento literário moçambicano nas décadas de 40 e 50, foi um dos criadores da folha-de-poesia Msaho (contemporânea do movimento Négritude de Césaire e Senghor), que procurou enaltecer as culturas locais e criar uma poética moçambicana, em ruptura com os modelos literários impostos pela colonização.
Absolvido de um processo judicial por crime de desrespeito à bandeira portuguesa, devido a um verso escrito em 1954 pelo heterônimo Duarte Galvão. Virgílio de Lemos exilou-se, e em 1963 passou a viver e a trabalhar em Paris, onde foi um conceituado jornalista de televisão e rádio.
Destacam-se, na sua obra, escrita tanto em português como em francês, Poemas do tempo presente (1960), obra apreendida pela PIDE, L’Obscene Pensée d’Alice, Ilha de Moçambique: a língua é o exílio do que sonhas, Negra Azul, Eroticus moçambicanus, Para Fazer um Mar, L'Aveugle et l'Absurde, La saignée de l'indicible e L'Écart du temps.
Sendo um dos vanguardistas da lírica moçambicana e defensor do conceito do “barroco-estético” para as literaturas de língua portuguesa, tem uma escrita poética fragmentária, sintética, eivada de imagens surrealistas, e duma dimensão cósmica, perpassada pelo onirismo, as problemáticas existenciais e o erotismo; que nunca descura a fidelidade aos homens e o seu testemunho.