@Dieggger Olá! Eis que a existência nos põe em dúvida no ato de nossa fala. Falamos e somos palavras. Existimos fora de nossas dúvidas?
— Fábio S. Pessanha (@fabiospessanha) 18 dezembro 2014
18 de dezembro de 2014
Existência...
16 de dezembro de 2014
Nó e ventania...
ahh... vento que levanta a saia das minhas vistas... e só vejo nó e poeira de frases entardecidas...
— Fábio S. Pessanha (@fabiospessanha) 16 dezembro 2014
29 de novembro de 2014
Desde quando a palavra é verso? Brincações de palavras com Manoel de Barros
Texto
postado originalmente no site Obvious, em http://lounge.obviousmag.org/verbo_inverso/2014/11/desde-quando-a-palavra-e.html#ixzz3KU8qdnNO
Desde
quando a palavra é verso? Desde quando meu nome é pronome dado à alcunha de
chamamento? Qual a beleza de uma palavra no rascunho de uma página, a ponto de
se tornar canto em boca de poetas?
As
tentativas para se dizer o que seja ou não poema são infindáveis. E ainda há a
confusão entre poema e poesia para embaralhar ainda mais a situação. Bem,
tentando esclarecer essa dúvida – ainda que
não seja de vez por todas porque o fim de toda vez
só existe na fragilidade do rigor científico –, arrisco: poema é produto (??!!). Explico: uma feitura elaborada na costura
entre presença, forma, ritmo, melodia, palavras e, se considerarmos o apelo da
tecnologia virtual e visual, o manejo com as várias maneiras de um texto (seja
ele verbal ou não verbal) se conformar num constructo poemático, ou seja, que
inaugura um mundo a cada leitura. E essa ideia de “produto” diz respeito à
terminação “-ma” que, a partir do grego, tem-se ideia de algo feito, um produto.
Agora, o exposto acima só é possível pela poesia, e esta não está
restrita à estética. A estética passa longe, principalmente quando perde seu
apelo originário-etimológico: aístesis, que, do grego, diz
“percepção”. Estética é o modo produtivo-conceitual da estesia, na medida em
que esta perde sua força verbal pelo encarceramento conceitual das várias e
muitas correntes teóricas. Poesia, então, não é gênero – ainda que assim muito
se propague nos mais diversos estudos teóricos –, e sim movimento, ação. Poesia vem do grego poíesis e
está presente não só nas manifestações artísticas, mas em todo acontecimento da realidade,
pois o real se realiza poeticamente na medida em que nos apresenta a intangível
dimensão daquilo que acontece sob a concretude (que
concresce, ou seja, “cresce com”) da vida, da presença, da realidade.
Poesia
possibilita o poema, pois é o verbo de toda ação. E verbo, por sua vez, não se
restringe às categorias gramaticais. Aqui, sob nosso olhar, verbo se reinventa
como tudo aquilo que é movimento, portanto, realidade; mais ainda: vida. O
poético, podemos dizer, é um trânsito que trafega
nas coisas (lembremos os numerosos estudos do filósofo alemão Martin Heidegger
sobre a questão da "coisa") e se reluz em paragens e travessias.
Mas não nos iludamos ao pretender arrebatar numas poucas frases o sentido do
poético, ou a diferença luzidia
entre poema e poesia. Ainda que tenhamos o respaldo da etimologia grega, onde
poesia diz ação contínua e originária; e poema, um produto dessa ação, considerando
respectivamente as terminações –sis (de poíesis) e –ma (de poema), a melhor maneira de se acolher tais (des)entendimentos é com as próprias obras
poéticas. Assim, trago abaixo o poema “Experimentando a manhã dos galos”, de Manoel de Barros,
onde encontramos uma possibilidade de se pensar essa questão:
… poesias, a poesia é
é como a boca
dos ventos
na harpa
nuvem—
a comer na árvore
vazia que
desfolha noite
raiz entrando
em orvalhos…
os silêncios sem poro
floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca
cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém
o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros
— e é livre
como um rumo
nem desconfiado…
(BARROS, 2010, pp. 109-10)
Como num
suspiro de vento levantando as saias das mentes corroídas por certezas, esse
poema de Manoel de Barros diz muito sobre a
artesania poética, embora não abocanhe o título de sumo conceito acerca do
fazer poético. E poesia não tem recantos, é puro acontecer nas pálpebras de
cada dia. Faz seu ninho nos olhares inventivos de quem se permite trançar lua e
sol em pleno entardecer, onde os sumiços são alongados no horizonte de quem se
atreve a dilúvios verbais.
No poema,
lemos que “a poesia é...” e daí se desdobram uma série de imagens impossíveis
de serem retidas na linearidade razoável da razão (e digo isso sem medo de
incorrer em redundâncias!), até chegar na liberdade “como um rumo/ nem desconfiado...”.
Livre são as palavras em gorjeios semânticos, rumando para a inutilidade que
nos fecunda libertos em nossas próprias vozes.
Poeta é
aquele, arrisco dizer, que se deixa libertar de si no âmbito verbo-imagético,
onde passa a ser o próprio prelúdio de sua escuta, o rumor inocente, devasso,
infantil ou lúdico de sua perdição em palavras, imagens e silêncios.
Manoel de
Barros foi um grande sabedor de inutilidades, deixando-nos o riso solto de
palavras descascadas de duras semânticas. Isso, esses “vareios do dizer”
(BARROS, 2010, p. 265. Verso da parte VI do poema “Retrato quase apagado em que
se pode ver perfeitamente nada”), nos ensina mais da tensão poema/poesia do que qualquer
compêndio acadêmico dos consagrados fazeres poéticos, com suas regras, infindas
normas... E, voltando à pergunta inicial dessa pequena
“proesia”, desde quando a palavra é verso?
Ainda não sei
responder e espero nunca saber, pois se em algum dia tal resposta aparecer será
o fim dos “vareios do dizer” e “vadiações com as palavras” (Id., p. 451)...
Poesia não se explica, é para ser incorporada, como já dizia esse poeta das
palavras inventadas!
Referências:
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “A coisa”. In: Ensaios e
conferências. 2ª ed. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,
Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001.
18 de novembro de 2014
Eu e Manoel de Barros no site Obvious
Acabei de estrear meu
espaço no site Obvious. Como não poderia ser diferente, fiz minha homenagem ao
querido poeta Manoel de Barros, tão importante na brincação do meu olhar para o
mundo.
Quem se interessar em
ler e comentar, abaixo disponibilizo o resumo do meu texto e o link da minha página. Sejam
bem-vindos a este outro espaço das minhas palavras!
Começamos pela pergunta: desde quando a palavra é verso? Desdobramentos, incandescências palavrais, desvios, dilúvios e aflúvios verbais se fazem presentes numa tentativa de mergulho nesse questionamento. E deixo ainda outra questão que se insere nas entrelinhas do texto: quando nos tornamos poema durante orgias com as palavras? (ih, será que estraguei a surpresa??!!)
Minha página na
Obvious: VERBO IN-VERSO
Travessuras
"travessa voz
trova a língua...
silencia a travessia
de outrora foz e dentes"
Em conversa poética com a Daniele Negreiros...
— Fábio S. Pessanha (@fabiospessanha) 18 novembro 2014
11 de novembro de 2014
Descoberta!
A palavra me descobriu palatal... de fato, e além, me desconfio um ser de escombros...
— Fábio S. Pessanha (@fabiospessanha) 11 novembro 2014
3 de novembro de 2014
Pensamento de chuva...
Choveu... vi o mar no céu e lembrei do meu querido poeta Manoel de Barros: "o que há de você na água?"... Depois, chovi ininterruptamente...
— Fábio S. Pessanha (@fabiospessanha) 3 novembro 2014
15 de outubro de 2014
Poesia...
“[...] a poesia é o que nos aproxima de
nossa morte, pois finca raízes em nossa carne, pondo-nos também em
questão. Quando isso acontece, o mundo deixa de ser
a realidade estável do senso comum para se mostrar como paisagem de instabilidade.
Pois a realidade não é estável, e sua mobilidade é o mistério que nos
toma sempre inesperadamente, restando-nos o abismo”.
Referência:
PESSANHA, Fábio Santana. A
hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 60.
2 de setembro de 2014
Lançamento dos livros Convite ao Pensar e O Educar Poético!
Está marcado para o dia 10 de outubro, a partir das 18h, na Livraria da Travessa de Botafogo, o
lançamento simultâneo dos livros Convite ao Pensar e O
Educar Poético, nos quais participo como ensaísta.
Anotem o endereço: Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo - RJ.
Caso queiram conhecer um pouco dos livros, em postagens anteriores neste blog fiz uma pequena resenha de cada um deles.
Estão todos convidados!
18 de agosto de 2014
O Educar Poético
Mais um lançamento da
Editora Tempo Brasileiro chega a público! Refiro-me ao livro O Educar Poético, organizado pelos professores Manuel Antônio de
Castro (UFRJ), Igor Fagundes (UFRJ) e Antônio Máximo Ferraz (UFPA). Com o foco
na Educação Poética, onde “Poética” não se resume a um simples adjetivo, neste
livro vemos o despir-se do lugar-comum das teorias pedagógicas para o salto no
abraço do mistério que reúne o “princípio e o sentido de todas as falas, de
todas as escutas”[1]
a partir da ação originária do poético; ação esta que aponta, sinaliza, o
humano como “parte do mistério de ser”.[2]
Cogitando o educar a
partir do poético, com vistas à fertilização de possíveis modos de percepção do
sentido de educar, pensou-se numa reunião de diversos olhares para a composição
dos textos que se enlaçam nesta obra:
Os professores, os artistas, os
pensadores que aqui se reúnem em livro partem de tal horizonte: encontram-se
lançados no livre-aberto, conduzidos pelo aberto, perfazendo a existência como
esta poética educação. Antes verbo do que substantivo, antes ação (questão!) do
que definição (conceito!), educar será toda palavra, corpo, rosto, sentido,
destino que se reconheça mistério. Em liberdade.[3]
Contudo nenhuma
formulação é criada, nenhum emblema é cunhando para fins de aplicabilidade
teórica do que seja a educação. Não há receitas para professores ou
profissionais de ensino, e sim a disposição à assunção de um vasto enigma, de um
desafio a ser explorado pelo pensar, pela recondução do olhar do educador para
si e, consequentemente, para o seu outro na condição de aluno:
Aos que ansiosamente aguardam uma
decifração do enigma, seja o do aprender, seja o do ensinar; aos que confiam na
sorte de encontrar por estes mundos de página uma nova cartilha, um novo modelo
de ensino, respondemos com as peripécias e vicissitudes que atravessam o caminho
meditativo das possibilidades. De cada um, intransferíveis, irrepetíveis,
sempre singulares, as descobertas. Sobretudo, a descoberta do encobrimento
permanente e imediato de si e das coisas todas. Em meio a esses desvelos e
véus, o vir a ser mestre e o vir a ser aprendiz se alternam e se confundem nas
encruzilhadas inesperadas do humano: pode ensinar apenas quem aprendeu e quem
ainda aprende no instante em que ensina. E isso quer dizer: quem desaprende,
aprendendo.[4]
Neste livro, participo
com o ensaio “Agramática: a
desgramaticalização no educar para o poético”, no qual tento pensar a gramática para além do reduzido e ceifador sentido normativo que há muito tempo nos reprime
verbalmente. Se tivermos cuidadosa escuta e não nos deixarmos levar pelas
retóricas vigentes do cotidiano, seja acadêmico ou das esquinas de nossas ruas,
acredito que a gramática – que nos dá margens para pensarmos a agramática,
conforme nos diz um poema de Manoel de Barros,[5] ou
simplesmente a desgramática – é uma possibilidade de salto para o infinito do
poético, quando nos valemos, melhor, nos apropriamos de nossa língua para com
ela nos absurdarmos:
A gramática em sua
desgramaticalização é um salto na profundidade verbal de ser tudo que se diz na
vigência do não-dito. E pela pintura divina da escrita, devemos crer que o
mundo se arremete em dores quando a sílaba rasga o silêncio ao acolher o grifo
de uma letra. A palavra, em seu conjunto verbo-gramatical, brinca com as
criações vindouras, sendo o meio de qualquer enleio, uma vez que sua ressalva é
sempre pela alva ou também impura – visto que é gesto e sobressalto – de
molecagens sintaticais.[6]
Que todos se sintam
convidados a mergulhar nO Educar Poético,
nesse desafio de repensar a si mesmos, que consequentemente aponta para a
reinvenção do educar a partir do poético, crendo que inventar é o modo mais
radical de estar na realidade, convivendo com as diferenças que nos formam, que
nos constituem misteriosamente humanos.
Referências
CASTRO, Manuel Antônio de; FAGUNDES, Igor; FERRAZ,
Antônio Máximo (orgs.). O Educar Poético.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.
PESSANHA, Fábio Santana. “Agramática: a desgramaticalização no educar para o poético. In:
______. O Educar Poético. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014, pp. 199-216.
27 de julho de 2014
Convite ao pensar
Acaba de sair pela
editora Tempo Brasileiro o livro Convite
ao pensar. Sob organização dos professores Manuel Antônio de Castro (UFRJ),
Igor Fagundes (UFRJ), Antônio Máximo Ferraz (UFPA) e Renata Tavares (UNESPAR),
nasceu esse mosaico palavral, fecundado por poesia, filosofia, silêncio e gesto, do qual tenho a grande felicidade de participar como um dos
ensaístas.
A ideia desse livro
surgiu da necessidade de dar aos alunos – em princípio, de graduação, ainda que
não esteja restrito ao âmbito acadêmico – a possibilidade de se infestar de
verbo e acontecências semânticas para além do já desgastado sentido comum das
palavras. Evidentemente, nada do que já se trabalha teoricamente nas
instituições de ensino se exclui, contudo, a grande novidade está na linkagem
entre o que se diz ou se pode dizer sobre ideias engessadas conceitualmente e o
que advém do mergulho ao fundo vocabular das palavras, numa investida
originária que procura o útero do verbo a partir da costura realizada pelos pequenos,
mas densos, ensaios presentes neste Convite.
Assim, este livro é engravidado pelo horizonte no qual se vê o avesso ambíguo,
mas não dicotômico, das já tão batidas determinações dicionarizadas. Audacioso,
infestado de circularidade, entradas, entrâncias e reentrâncias, a poesia da
palavra se consagra numa rede fundada em 121 possibilidades de quedas e
abismos.
Além da necessidade de
dar aos alunos perdições por escrito, o grande estímulo para tal exaustivo
trabalho partiu de Guimarães Rosa, quando, na famosa entrevista concedida a
Günter Lorenz, proferiu: “Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem
não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é
uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente” (ROSA in
LORENZ, 1973, p. 20). E mais adiante nessa mesma entrevista, temos um dizer
fulcral e que foi usado como epígrafe do livro: “Cada palavra é, segundo sua
essência, um poema.”
Acima mencionei 121
possibilidades abismais. Mas qual mistério por trás desse número, 121? Arrisco
um palpite: autonomia de voo na e com a linguagem durante a grafia encantada
pelo poético! Sim, 121, não 122 nem 456. São 121 palavras que foram
criteriosamente selecionadas para integrar este livro:
O leitor tem em mãos um livro
constituído por um conteúdo aparentemente estranho: 121 palavras, às quais
correspondem 121 pequenos ensaios de, no máximo, duas páginas. Não se trata de
um dicionário, pois não se reduz a um mero levantamento de significados. O que
é, então, ou melhor, o que pretende ser este livro? A tal pergunta responde seu
título: um Convite ao pensar. Desse
modo, não pretende introduzir nada, pois o pensar não depende de introdução.
Vivendo, já nos movemos no pensar. Por ele, no questionar, vigoramos.[1]
O trecho acima foi
retirado da apresentação do livro, na qual, mais à frente, encontramos:
Procurou-se em cada palavra
estabelecer uma dialética, na qual nada se exclui, muito embora se desconfie
dos significados dominantes e engessados. Dessa maneira, todas as palavras se
interligam e procuram estabelecer um círculo poético de abertura para se
compreender melhor o que somos e nos cerca histórica e conjunturalmente. A
ligação entre elas dependerá do interesse do leitor, o que será ajudado pelo
Índice Remissivo e pelas indicações bibliográficas. Estas têm a finalidade de permitir
o aprofundamento das questões.
Quanto à construção,
organização interna do livro, o mosaico se estende à diversidade do pensamento
encontrado nos 16 autores que escreveram os pequenos ensaios que integram essa
rede de 121 palavras:
propusemos o presente livro,
convidando diferentes autores para pensarem a poética de cada palavra,
contrapondo-a com seu uso banal, cotidiano, desgastado, e resgatando suas
possibilidades de inaugurarem sempre novas e poéticas realizações. Assim como
os autores se viram livres para dialogar conosco no pensar de cada palavra que
lhes coube, os leitores também estarão livres para questionar e que, no diálogo
com todas, entrevejam em si as possibilidades que já receberam para se
realizarem, de maneira que a vida de cada um se torne um autopoema.
Portanto, não foi
erigido apenas um livro teórico, e sim um rearranjo léxico que desempoeira a
estabilidade vocabulatória do nosso idioma. As palavras são saltos, fecundações
aurais, aórgicas e orgíacas entre realidades que desempenham limites e
florações semânticas. O convite está aberto a todos, que sejam bem-vindos!
Referências
CASTRO, Manuel Antônio de et al. (orgs.). Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2014.
LORENZ, Günter. “Guimarães Rosa”. Diálogo com a América Latina. São Paulo:
E.P.U., 1973.
26 de junho de 2014
Poema...
“Um poema não quer
dizer, ele diz. E esse dizer não é um ‘fazer como’, uma indicação de um caminho
a seguir, mas é o próprio caminhar. Ler um poema é se abrir ao indizível, por
isso, como podemos dizer que um poema retrata, caracteriza ou luta por algo?
O impacto de um poema
não se restringe apenas à explosão subjetiva das sensações, isto é, o poema não
está a serviço da sensibilidade, do sensório. Mais do que isso, ele nos convoca
a adentrarmos naquilo que não conhecemos sobre nosso próprio; um caminho de
procura cuja busca se dá na peregrinação do que estamos sendo, portanto, um ato
contínuo de desencobrimento.
Um poema é uma
abertura, então devemos lê-lo sem querer respostas, mas de maneira questionante.
Devemos ser com o poema”.
PESSANHA, Fábio
Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de
Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 44.
8 de maio de 2014
Insight
Corpo
não serve só para ficar nu.
Muita
gente não entende porra nenhuma...
ou quase nada...
ou muito do mesmo.
ou quase nada...
ou muito do mesmo.
Às
vezes,
sou
uma delas,
e
nos (des)entendemos.
Se
as primeiras imagens que vierem à minha cabeça
quando
eu pensar em corpo forem
buceta,
pau,
sexo,
então
ainda não cheguei
ao
estatuto de pele.
1 de maio de 2014
I Simpósio Internacional de Filosofia Pop
Entre os dias 7 e 9 de maio de 2014, acontecerá na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO o I Simpósio Internacional de Filosofia Pop – Corpos, Imagens e Culturas Híbridas, e no dia 8 (quinta-feira), a partir
das 16h, participarei desse evento com a comunicação “Poesia: alucinação
poética da palavra”. Abaixo, segue o resumo do meu trabalho. Estão todos
convidados!
POESIA:
ALUCINAÇÃO POÉTICA DA PALAVRA
A partir da epígrafe
“Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina” – verso que integra
a primeira parte do poema “Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho”, de
Manoel de Barros (2010, p. 257) –, partiremos para um percurso no qual
tentaremos escutar o sentido poético das palavras, tendo como principal
referência os poemas do poeta citado. Isso posto, enfocaremos na tensão entre a
palavra acostumada a seu arcabouço dicionarizado e a revisitada pela imersão
poética de se pensar em declive de escombros. Provocaremos o sentido “normal”
das palavras no intuito de incitar sua corporeidade poética, dialogando ainda com
a habitação verbal do humano. Assim, a poesia não será abordada como construção
artística, tampouco confundida com poema, e sim aproximada de seu vigor
originário: poíesis. Portanto, ao
trazermos a ideia íntima, originária, de sua manifestação a partir do que em
grego diz a movimentação do que surge e se eleva por si mesma – quando a phýsis é considerada a máxima poíesis, conforme podemos ler no ensaio
“A questão de técnica”, de Martin Heidegger (Cf. 2001, p.16) –, teremos como
divergir do patamar empoeirado das estéticas ruminantes de conceitos, a fim de
nos deixar cair numa procura pela palavra descabida de normalidade. E nessa
empreitada inevitavelmente passaremos pela tensão entre homem e poeta.
Considerando o exposto
acima, poesia, filosofia, literatura darão as mãos num caminho que se fará
dialogante com os estudos tradicionais, porém com ênfase primordial na
hermenêutica poética, observando a leitura que faremos de poemas de Manoel de
Barros e/ou outros poetas que se fizerem necessários no decurso de nossa
escrita.
Retomando a epígrafe
citada, cremos que a única maneira de se enfrentar um poema é estando
alucinado! E é este mesmo o verbo a ser
usado: enfrentar. No entanto, tratamos de um enfrentamento no sentido de disputa,
na qual a vigência da tensão provedora da realidade se dá. Mas não me refiro a
qualquer disputa, e sim, por exemplo, à que Heráclito de Éfeso traz em seu
fragmento 53, quando menciona a guerra, do grego polemós: “De todas as coisas, a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros,
livres” (1980, p. 83).
Estamos em disputa todo
o tempo, afinal somos o exercício tensional entre morte e vida durante a
arquitetura dos instantes em que vivemos. E poesia, conforme já nos referimos a
seu sentido mais íntimo, poíesis, diz
essa movimentação. É o que deflagra a singular morada do homem no interior de
si mesmo, melhor, no crepúsculo onde real, realidade e realização se intimizam
pela costura de suas fendas.
Insistimos em nossa
existência e, por isso, reiteramos a procissão límbica de nossos pés aos sermos
conduzidos sempre ao instante anterior de uma palavra ser despida por nossa
boca. E como diz Heráclito, lembrando do fragmento supramencionado, estamos
sempre em guerra, em disputa, num meio do caminho para todas as coisas,
inclusive para nós mesmos. Então, o que propomos neste momento? Que pensemos um
pouco nossa habitação poética, nossa condição errante de ser um infindo
rascunho de poema. Portanto, trataremos do sentido poético da palavra, quando
ela se nega a permanecer na castidade dos rótulos empoeirados para saltar no
abismo da humanidade, cujo salto se refere à disputa, à liminaridade de sermos
o acontecimento do “entre-ser”, talvez até em sermos um poema acontecendo,
sendo escrito na permanência paradoxal de nossos dias.
Referências
bibliográficas
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “A questão da
técnica”. In: Ensaios e conferências.
2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
HERÁCLITO. Fragmentos: Origem do pensamento. Tradução, introdução e notas de
Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980.
27 de abril de 2014
A violação poética da poesia*
Há quem diga que poesia
se explica. Há quem mapeie de gramáticas, semânticas e sintaxes o salto mortal
de um verso ao fundo do estômago. Há quem faça de tudo, até rotina de
parapeitos em geografia de escadas. Estes existem sim, são muitos e aos montes.
Mas há outros também: os que se fecundam por nuvens, que absorvem na pele o fôlego
do vento.
Aos primeiros se
costuma atribuir listas de nomenclaturas, jargões precisos de títulos, manias e
costumes pré-datados. Já os segundos são crias de invenções: forjados por
nascentes de sol, são o cultivo do absurdo mediante a esquizofrenia da razão. E
são estes que me interessam: os resultantes do amor entre pôr do sol e
horizonte.
Indagando o ventre por
onde escoam as palavras ainda jamais pronunciadas, confessam-se alegrias de
outonos em vertentes de epifania. Nesse lugar, o céu é o alforje em que se
guardam rajadas de cores ensandecidas.
Rumo ao epíteto do nome,
pensa-se no jardineiro das palavras lavrando num canteiro lógico – de lógos – parafernálias de injunções
verbais. A todo troço criado na plantação de sua alcunha, florescem cristas
adnominais no cume de orações ao sagrado sentido do silêncio. A esses colhedores
de linguagem chamamos poetas, cujo traçado corporal rabisca de luz as paredes
do tempo, criando espaços de ubiquidade indelével.
Aos poetas são dadas as
confissões de pecados nunca cometidos, mas vividos na pureza de auroras. Mas
que fique claro: não me refiro às tolices morais confiscadas de decências que
tanto falam por aí. Os pecados da poesia estão na infestação de seu nome, no
incesto próprio de reinventuras para os casos, ocasos e acasos de som e
travessia. O pecado rompe da própria pele para percorrer os recantos onde a
saliva não alcança. O pecado é a palavra travestida de queda e violação.
O poeta viola o cerne
do verbo ao cantar o mundo em suas vestes ancestrais. Um corruptor da
eloquência dos bons hábitos, onde esses – os bons hábitos – não passam de
castidade imprópria para o humano. Uma castidade que deturpa, que ceifa o aroma
de maresia do mar.
O poeta é um violador.
Corrói com sêmen verbal a brancura falsa de moralidades para reinventar a
sujeira de uma vida em chão feito de sonhos e terra batida. O sujo não é o
impuro. Na verdade, é o repleto de experiência, o pulo no canteiro do sol,
pegando no percurso do seu salto pedaços de música, lixo, incoerências, imprevisibilidades,
confetes, palavrões, banho nu de mar, pedrada na janela da vizinha chata,
corrida após tocar a campainha de uma casa qualquer, beijo roubado da menina
distraída, sorvete de madrugada, o entardecer com um amor... e todas essas
coisas ditas e vividas que sempre nos lembraremos como se fossem o agora.
A violação poética da
poesia está no peito inflado do vento ao abrir a porta dos fundos de casas transeuntes
e fundar o império dos sustos em corpos espantados. Daí, montanhas são
levantadas pelo voo de borboletas em trajetórias enigmáticas de paragens, cujo
traçado límbico de seu frágil corpo incendeia de absurdo a calmaria de vestes
protestantes. O espanto é a transformação do silêncio em ação grávida de escombros
palatais, cujo céu da boca é o véu do poético em dias de sol e mar nublado.
O pecado da carne é
pressuposto de poesia. Num viril olhar onde o soslaio se apresenta de corpo
inteiro, qualquer castração se torna importuno para fluência verbal. O gosto de
sal do suor na boca é parte integrante do verso que reclama para si o seu outro
durante o orgasmo múltiplo entre corpos, prelúdios e gestos. Nessa orgia de
costumes inventados, o que vale é o olhar, e também a pele sentida no frêmito
da voz nascida nos instantes da palavra. A poesia está nesse tenso enlace, onde
o primogênito do verbo insiste em nascer a cada virada de esquina, a cada
sorriso perdido nas dobras de roupas atiradas ao relento de poentes.
Há quem diga que poesia
se explica, há quem pense que o peixe nada ao contrário em noites de lua cheia,
há quem afirme que beija o cotovelo com os pés nas costas. Há sempre uma
possibilidade para o absurdo. Mas de qual absurdo se trata aqui? O poético,
recriado a cada vento que espreita a intimidade dos segredos? Ou o conceitual,
perdido na poeira das estantes intelectuais?
O absurdo ao qual nos
entregamos é fonte de versos e canções. Porém a dureza da definitiva certeza
dos dias refuta o absurdo enquanto nascente de acontecências, tratando-o como o
que está à parte da realidade. Daí, é preciso que se diga, esbraveje, berre: nada
está à parte da realidade, pois o dentro e o fora compõem o real em sua
essência de surpreendimentos, ou seja, tudo que se dá ocorre por intermédio de
uma finura inatingível de olhos, porém concreta no que possibilita o ver,
velando-se, resguardando-se, vislumbrando-se na multiplicidade que aparece
enquanto realidade. A realidade é uma possibilidade de absurdos.
Quero o absurdo para
dentro de minhas dúvidas ao desbravar semânticas em concertos de metafonias,
pois só assim poderei libertar do jugo do palpável o grito da poesia inflamada
desde o peito até o leito de batentes corpos. A poesia mora nessa explosão e
também no depois do baque. Na verdade, não há um lugar para sua habitação, pois
a poesia é a própria insurgência do habitar. Habitamos poeticamente o mundo enquanto
homens encarcerados em nossa singular maneira de ser. Travados entre pele e
dentes, o limite de nossos passos se conduz ao desenho dos pés na caminhada
para o nada. O nada é o quando de nossa morte, a medida voraz da passagem entre
o cravo de uma beligerância e o crivo de remitências consonantais.
Na fala, uma boca se
enseja. Na reunião entre pedra, flor e espinho se resigna o absurdo das simultaneidades.
A fala se permite em lábios atrevidos de palavras. Em tonais de melodias
incandescentes, orações são forjadas ao sagrado infinito dos ventos. E esses
vão criando moradas no cerne das pessoas deixadas ao acaso por sua humanidade.
Deixar ao acaso, aqui, significa o abandono necessário à morte, e morte é o
abandono necessário ao renascimento dos dias de todo instante.
Todo poeta é encontrado
por seu desencontro, é deixado de lado pela precisão das horas de refrões
batidos, já conhecidos antes mesmo de sua composição. Esquecer a canção
conhecida é uma necessidade de criação, uma vez que em todo criar se funda uma
perspectiva de ver e ser. Na criação, cria-se o criar, reinventando correnteza
de rios nos caminhos sempre trilhados e nunca conhecidos. O que há é
reconhecimento, um apetrecho de momentos em que se identifica na diferença o
cerne que conduz ao nada o sentido de ser habitação poética.
Poesia não se explica
por ser acontecimento sempre acontecente. E na tentativa de se dizer o que é,
perdeu-se o fio da meada em trajetórias de cordilheiras. Da poesia nasce o
poema e todas as coisas que circundam a cintura da realidade. Agarrar o braço
do poema quando ele passa em nossa boca é um estupro desconcebido, sem órgãos
genitais, sem suor, sem respiração ofegante. Só há violência e verborragia:
falatórios incessantes, descrentes de linguagem.
Diferente do que agora
se disse é fazer amor com o poema, pois aí não há necessidade de nomes nem
horas marcadas, só há é êxtase infindo, liberdade em ser limite para o salto.
Há também reconciliação do não com todo sim pensado e não dito, há corpo
inteiro sendo espasmo de infinitude. Não há como haver poema se não houver
amor, e na impossibilidade de dizê-lo – o amor –, criam-se tentativas de
prisões. O amor não cabe no poema, pois é o sentido anterior ao primeiro canto
dos versos.
Um poeta é morte
ambulante porque não há amor sem morte. Talvez por isso seja tão difícil ser
poema, seja tão doloroso amar com verdade.
*Publicado originalmente na 35ª
edição do Labirinto Literário.
13 de abril de 2014
Labirinto Literário, nº 35
Meus amigos, acaba de sair o número 35
da revista digital Labirinto Literário. Nessa edição, participo com o pequeno
ensaio “A violação poética da poesia”. Para conferir, enquanto não
disponibilizo o texto aqui, é necessário baixar o periódico em seu site: http://labirintoliterario.blogspot.com.br/
1 de abril de 2014
Mais um poema...
Euforia
De
dentro do avesso olhar
uma
faísca rubra
tange
o peito eufórico
da
palavra.
29 de janeiro de 2014
O homem e sua condição de margem - o ensaio
Meus amigos, resolvi postar aqui no blog meu ensaio, originalmente publicado na revista dEsEnrEdoS. Estejam à vontade para comentar!
O
HOMEM E SUA CONDIÇÃO DE MARGEM
Fábio Santana Pessanha
Mestre em Poética – UFRJ
“faço poesia
não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais
profundo do homem”
Clarice
Lispector – Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres
O homem está mais para
margem que acervo bilíngue de vagabundos. No panorama dos seus pés moram as
vias que o conduzem ao encontro marcado com seu próprio desenredo. A cada passo
dado, é impresso no chão o risco de se criar esteiras de caminhos e presságios
de infinito. Seu rastro é sua alcunha quando eleito magnífico miserável de
imensos veios.
Um convite para uma fala
poética foi feito, e aceito! A partir da envergadura do que se disse acima,
aliado a futuros devaneios, devo então pensar o homem, e me pergunto como. Afinal
de contas, por mais que se trace um rigoroso itinerário antropológico, qualquer
precisão pensada ensaia de antemão sua condição obsoleta. Então, qual é a
saída?
A poesia! Pensar o homem
pela via do poético, ou melhor, de dentro de sua própria insignificação, compreende,
creio, dar as mãos ao salto na iminência da queda. O poético nos leva a cair,
sempre, ao fundo de nós mesmos. Por isso, daremos as mãos à poesia, àquilo que
se perde no desvio de sua voz: os poemas; pois seja em verso – com ouvidos à
tradição – ou no desalinho musical da prosa – que, na verdade, é tão poético
quanto qualquer estruturação classicamente versificada –, os poemas são
gracejos letrais da movimentação intrínseca da realidade, e nós somos sua
realização. Assim, proposta essa ciranda de absurdamentos linguísticos, podemos
ficar à vontade para a desenvoltura do labor que ora se cria e manifesta. Com
isso, vamos à primeira queda:
Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares
nenhuns.
Até que não me achei – e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um
bulbo.[1]
Se o empenho de toda obra de
arte é a humanidade do homem, o compromisso da obra poética não se mostra indiferente
a essa questão. Penso que um poema, ao ser lido, se realiza como um gesto de
abrigo do nosso próprio abraço, um abraço que toma o infindo corpo carnal no
interior dos braços e recolhe o metal dos ventos nos voamentos de palavra.
Assim, de forma alguma falarei do sentido exato do poema citado e dos outros
que forem aqui tratados. Portanto, que fique realmente claro, deixarei me
conduzir por sua correnteza e carnadura.
Então, sem mais demora, e em
atenção ao poema, somos testemunhas de que o silêncio foi aumentado com um
nascimento. Sendo o homem seu próprio mundo: origem e morte, estabelece-se uma
autofecundação poética. Como assim? Desesplico: para toda voz arada no campo da
linguagem há uma potencial mudez na multiplicação de todas as bocas ao relento.
O homem encena sua condição de margem sendo outro e ele mesmo no precipício de
sua identidade. Com isso, eleva-se do escuro canto de seu estômago o vazio
repleto de encantos, habitantes nos desamparos de seus lábios. Aumentar o
silêncio designa a iluminura da epopeia existencial humana, quando o sentido da
aparência do homem resvala pelo anúncio de sua imagem ao espelho. O espelho só
me entrega à dúvida.
Nascer e aumentar o silêncio
anuncia o quanto de completude compõe o homem. E completude aqui quer dizer:
instante no qual anverso e reverso se comprazem na unicidade de seu parto. Se
concluir algo fosse fácil, até ensaiaria dizer que a dicotomia não perderia
feio para ambiguidade, pois no horizonte de nossas vistas mora o brilho e o
escuro como deveniências de uma mesma costura.
Ainda que seja muitíssimo
tentador ver nesse “aumento” o sentido de soma, na verdade, muito mais do que
isso, pode-se enxergar aí o alumbramento da intensidade revelada na morada do
silêncio: o nada. Passo a pensar, então, que o homem é um complexo formado
entre o nada e o silêncio, e o que sobra recai na materialidade da pergunta que
faz a si mesmo enquanto parte integrante da paisagem do real. O desenho dessa
“conclusão” fica assim: estou naquilo que vejo porque vejo com o corpo,
participando da nomeação desestrutural da realidade; esta que está na
antecedência do que toco tanto quanto procede à sensação do choque, do embate .
Não seria esse prolongamento existencial que Riobaldo suscitou quando, em Grande Sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, disse: “– ‘Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...’”?[2]
Da mesma maneira que em Manoel de Barros o “silêncio foi aumentado”, em Rosa o
“mundo tornou a começar”! Todos esses começamentos indiciam a insistência
poética habitante no homem. Portanto, creio que o homem é seu próprio
desconcerto.
Nessa estância de prolongamento
do silêncio, do mundo, do existir, encontro ainda em Manoel de Barros, no Livro sobre nada, a seguinte passagem:
“Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu
acompanho...”.[3]
Acompanhar algo diz morar na realização desse mesmo algo, estar junto não
apenas na companhia, e sim na composição de um espaço que se cria pela
conjuntura de pele e olhar: ver! Então, ver é ser aquilo e com aquilo que nos
chega pela visão, significando ser muito mais do que simples ocorrência visual
de um de nossos sentidos físicos, pois aquilo que nos toca a pele, se
acolhemos, metabolizamos, tornamos parte de nosso sangue, compomos corpo.
No transcurso dessas
imagens, lembrei-me também de que no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, há um
momento, dentre vários, em que Lóri se encontra totalmente desorientada por se
ver radicalmente imersa na vida, percebendo que aceitava em pleno amor o amor
de Ulisses. Impregnada desse acometimento, “parecia-lhe que mil corações
batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa”,[4]
e daí, sendo apossada pelo direito de ser toda sua dúvida, dor, imprecisão,
sangue e carne em flores ou uivos em desfecho de horizontes, ofertou ao tempo
uma frase primordial e que retoma a questão que, nesse momento, nos aproxima em
leitura: “Como prolongar o nascimento pela vida inteira?”.[5]
Não podemos pensar que essa
pergunta toca na mesma questão que vimos em Manoel de Barros, quando ele traz a
lume o silêncio aumentado por um nascimento? Ou em Rosa, quando Riobaldo é
enfático ao assinalar que o mundo torna a começar com o nascimento de uma
criança? Com tais questões, podemos ainda indagar: como aumentar a pausa no
grito que sustenta escombros de palavras? Como entrever na cara o tapa de um
amor perdido? Como mergulhar na vida, não sendo apenas um personagem social que
diariamente acorda, caga, toma café, estuda, trabalha, come uma puta, vai
dormir e, no outro dia, repete tudo igual? Como, no prolongamento de nosso
nascimento, conseguirmos nos outrar na imensidão que somos? Como aumentar o
silêncio no singelo gesto de um princípio quando, na realidade, nascemos a cada
instante?
Tais perguntas não servem
para serem respondidas. Elas devem ocupar cada canto de nossos ouvidos,
impregnando-se em nosso corpo para nos entregarmos à dúvida maior de nossos
olhos: o reflexo visto no espelho. E ainda, nos braços de Clarice, chegamos num
ponto crucial, quando fazemos nossa a fala de Lóri: “Eu existo, estou vendo,
mas quem sou eu?”[6] E
a poesia responde com a:
Elegia
de Seo Antônio Ninguém
Sou um sujeito desacontecido rolando
borra abaixo como bosta de cobra.
Fui relatado no capítulo da borra.
Em aba de chapéu velho só nasce flor
taciturna.
Tudo é noite no meu canto.
(Tinha a voz encostada no escuro.
Falava putamente.)
Estou sem eternidades.
Não tenho mais cupidez.
Ando cheio de lodo pelas juntas como
os velhos navios naufragados.
Não sirvo mais pra pessoa.
Sou uma ruína concupiscente.
Crescem ortigas sobe meus ombros.
Nascem goteiras por todo canto.
Entram morcegos aranhas gafanhotos na
minha alma.
Nos lepramentos dos rebocos dormem
baratas torvas.
Falo sem alarmes.
Meu olhar tem odor de extinção.
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.
Eu pareço com nada parecido.[7]
Só a poesia pode responder
porque não afaga com dizeres simplórios a necessidade de audições pedintes de
esquadros, de correção; a poesia instaura o verdadeiro lugar da resposta: o mergulho
no ensimesmado de entulhos e personalidades nos quais quintais de pessoas
ressoam o desígnio de suas perdições. Poesia, atrevo-me a cogitar, é ser ação
agindo dentro e fora de oscilações e realidades. E nessa resposta repleta de
braços, uma infinda enumeração é feita. Contagens de absurdos para
fundamentações acerca do e com o nada. Um desnome não é a negação do nome, e
sim o aprofundamento na nomeação, considerando aqui algumas falas gramaticais que
designam o prefixo “des-” também como partícula intensiva, em vez de apenas
funcionar como marca de negação, ou seja, causa fundo-de-poço nos nomes em que
se junta: casamento de substantivo com ancestrais de verbo.
No poema acima, é possível
observar as ruminações, derivações, da condição humana em ser margem e poesia.
Cada verso é um lance para o destino do absurdo, sendo este – o absurdo – imagem
emblemática de sustos e contradições. Tal questão, pelo encaminhamento torto de
minhas falas, não tem a ver com a estética tradicional, pautada por normas ou parâmetros,
cujo empenho está em aferir a veracidade daquilo que faz ou não parte da
realidade. Ora, tudo faz parte da realidade, inclusive o que ainda não existe!
A realidade do real conserva simultaneamente o inóspito e a habitação, uma vez
que realidade significa o cerne (-idade), a concentração do real; portanto, na afluência
de um nome é revelada uma aparência que, por sua vez, vela, é latência do
impronunciável.
Ser um sujeito
desacontecido, sem eternidades, que não serve pra pessoa está no âmbito da mais
radical existência, pois congrega nos seus passos a calamidade vigente no furor
de ser nada em permanência de vozes e outroras. Assim, com o mergulho na
identidade de um ninguém, especificamente, do Antônio Ninguém, ao visitarmos um
pouco mais da poética de Manoel de Barros com o poema “A disfunção”,[8]
somos testemunhas de que os poetas têm “Mania de comparecer aos próprios
desencontros” – seja linguístico ou presencial. No entanto, se falávamos
especificamente do homem, e agora trago à nossa dança um verso que fala de
poetas, pergunto: seriam, então, poetas todos os homens?
Exatamente! Pois essa é a
condição de margem do homem!
Contudo, é preciso observar
que ser poeta não é ser qualquer-um. Não basta enumerar cantigas em poste ou
desanuviar a correlação entre triângulos e cossenos! Também não basta manter a
cara amassada depois de acordar ao meio-dia e se dizer atônito com a relevância
das auroras. O homem é poeta, creio, quando se concentra em próprio desassombro
e reinstala a morte de seus dias a cada olhar lançado ao vazio – e posso dizer
isso por não se tratar de uma afirmação científica de cabalidade irrevogável,
uma vez que eu não sou nem científico e nem irrevogável. Ser poeta talvez seja
a contradição da lua em contorno de verão ou estar de acordo com a obscenidade
do vento em lamber os corpos que quiser, quando bem entender... Enfim, por mais
divertido que seja a enumeração de absurdos semânticos, não é com um enunciado
que encabrestaremos um poeta, pois este é a vigência da inconstância habitante
na humanidade do homem. Assim, repito: o homem está mais para margem que acervo
bilíngue de vagabundos, e a vagabundagem primordial, talvez, seja o aceno do
real em se permitir língua e pintura nas paredes da linguagem, nos estames de
ensolarados prados onde o homem se poetiza na medida de sua morte, na medida em
que se abre para a escuta do seu silêncio.
Não percamos nosso norte: o
homem está para margem, é uma entidade do poético em risco de incumbências
lexicais; um aumentador de silêncio quando prolonga o cerne do real ao se
desdobrar em nascimentos. O homem é poesia em escritura de pele, tinta, voz e
calafrio, um “sujeito desacontecido” se procurando em “lugares nenhuns”. Um ser
achante repleto de esquinas e deus-lhe-pagues que caminha sempre em pé de curva
a nascentes de abismos. Então, o elencamento alardeado no poema “Elegia de Seo
Antônio Ninguém” desfila uma série de desacontecências com as quais o ente de
pés cravados no chão de cimento se estranha, pois, como aceitar todas as
indecências semânticas propostas se quase sempre necessitamos fazer a barba para
apresentações litúrgicas ou primamos por comportamentos equidistantes de
comedimentos sociais?
A condição de margem do
homem manifesta o sepulcro das nomeações condicionantes de regras. A morte mora
em seu peito e a vida é seu desvelo, com isso, na ambiguidade de sua andança,
experiencia poeticamente um lugar de habitação, uma vez que o lugar se dá na
medida de sua ocupação. Lembrando o que diz Heidegger em seu importante ensaio
“... poeticamente o homem habita...”, “Poesia é deixar-habitar, em sentido
próprio”[9]
e, sem resvalar num sentido onde o que se diz se torna um manual a ser
empregado no exercício de nossos dias, mais à frente, no mesmo ensaio, temos
que “[...] um habitar só pode ser em poesia porque, em sua essência, o habitar
é poético. Um homem só pode ser cego porque, em sua essência, permanece um ser
capaz de visão”.[10]
Sem cismas ou dedos, tais dizeres nos encaminham a pensar que o homem é poesia
e só se desdobra em poema porque essencialmente, naturalmente, é um ser
poético. E isso significa: um ser de margem que constrói à medida que é
construído pela violência do rio, de seu período de existência na paisagem do
real.
Lembrando o poema com o qual
iniciei essa queda, e com o qual convido quem se disponibilizar a cair, leio: “[...]
eu era torto / [...] Passei anos procurando por lugares nenhuns”. A partir
desses versos, sou levado a crer que a tortuosidade não é algo à parte,
estranho ao desígnio do homem em se apropriar de sua condição de margem. E
digo: só porque o homem é margem é que é capaz de se perceber rio e se perder
em seu próprio curso. Sua andança encena o desenho de um eterno labirinto,
duradouro durante a música que o atravessa e o fecunda porque também é
silêncio. E, ainda no poema, o mesmo termina assim: “Até que não me achei – e
fui salvo. / Às vezes caminhava como se fosse bulbo.” Diante disso, divido o
que pensei: cada passo dado no meu caminho encurta a aproximação com aquilo que
não sei tanto de mim quanto do meu destino. Meu horizonte não se põe diante de minha
presença como imagem que guarda a alvorada e o ocaso do sol, meu horizonte sou
eu e me limita no instante agoral do tempo, da imprecisão habitante no calor de
minhas mãos e que queima a pele quando cismo em agonias de posse. Sou margem
porque sou homem e sou homem porque a poesia mora em mim: sou um acervo
bilíngue de vagabundos porque estou mais para margem!
E agora em atenção ao último
verso, caminhar como se fosse bulbo diz se embrenhar na terra e habitar a escuridão
silenciosa do existir. Considerando que existir é ser no aberto acolhedor de
infinitos, então esse enterrar-se aponta o singular movimento de ser verso e
procissão de um homem só. O conjunto da unidade se apresenta na orquestração
audiúnica de uma procura feita no empenho de perdição. Procurar é se perder,
pois alinhava no gesto de outrar-se a originariedade caminhante e desbravadora
da visão. Ver é ser sempre pela primeira vez, destituindo o hábito que engessa
a recepção daquilo que vemos e recebemos do real. Vemos aquilo que somos porque
essencialmente somos o que vemos e, só por isso, somos capazes de ver, ou seja:
sou a imagem que chega aos meus olhos e só percebo numa coisa aquilo que
identifico como a morada do meu nome. Meu nome é nunca, e sou sempre verso a
ser escrito; encontro-me quando não me procuro porque toda procura enseja
perdição.
É preciso dizer algo acerca
da vagabundagem e sua predileção por coisas tortas e restos de enunciados:
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando
beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os
tolos.
Charles Chaplin monumentou os
vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do
chão mijadas
de orvalho.[11]
A nobreza do empobrecimento
é alcunha de despertencimentos! Elabora no poético uma colheita de escombros e
rascunhos. Tudo é feito com material compreendido de chorume, repleto do fedor
de ser acontecência penumbral, risco de se perder o estame fulcral de
compêndios, empreendendo em luxúrias verbais.
Se pensar o sentido de
margem no homem quase sempre pode se resvalar para contextos sociais,
socioeconômicos, de forma alguma trago esse cheiro em minha palavra. Ainda que
seja possível tal diálogo, aqui não é lugar para obtenções estatísticas, cuja
mortandade não passa de mero levantamento numérico. Creio que tal empenho
apenas alimenta a possibilidade de o homem se perder em seu próprio canteiro,
exumando a ossatura para sempre guarnecida no código genético de seu passado
historiográfico. O homem é seu desconcerto e se conjuga andrajo de vestimentas
palavrais! Está mais para margem que acervo bilíngue de vagabundos!
Pelo poema acima, somos
iniciados na grandiosidade do ínfimo! Compomos o arsenal prolífico de imagens
que encenam a necessidade de se olhar para dentro daquilo que não se sabe do
próprio umbigo. Eu sou homem, poeta, portanto, sou meu convite à morte! Sou o
restolho da colheita que suja o chão na imundície dos meus passos; sou o
descompasso do meu caminho, minha morte e minha alegria em me sentir vivo,
compondo pôr do sol.
A palavra que ora se
entranha em meu corpo e se despede de minha boca faz de minha fala um
infortúnio arcaico de semeaduras tântricas. Sou palavra em escuta poemática,
quando preservo no útero do meu verbo a elocução que funda e fecunda meu olhar
para aquilo que vejo e, portanto, que sou. Hei de monumentar os insetos com
esta doença de grandeza! Assim diz o poema e assim manifesto amém! Tal como
Cristo, São Francisco, Vieira, Shakespeare e Charles Chaplin, sou capaz de
monumentar o mísero porque sou mais um verso escrito no poema que leio a cada
dia de minha existência.
A vagabundagem me toma e me
penetra! E que se entenda: não me refiro ao sentido comum, tão incrustado nos
ouvidos alheios. Minha vagabundagem é a mesma que habita o conluio entre verso
e luz, poesia e ação, digerindo e estando presente no acontecimento fecundo do
nada: o mistério humano no qual o homem se percebe nascido para margem.
O poema diz: “Charles
Chaplin monumentou os vagabundos” e, com isso, podemos pensar que a errância do
homem o nomeia andor que carrega em seus braços o vigor poético em ser abismo e
vertigem. O vagabundo se tornou monumento, mas não se trata de um vagabundo
qualquer. Tal movimentação poético-semântica só é possível porque o poema, na
verdade, explicitou a latência da indolência, da preambulação maldita presente
nos andrajos sociais; e tal situação foi desvista e reinventada na composição
poética da palavra.
A poesia nos deixa
reinventar nossa condição de margem, e não é isso que realmente somos, pretexto
poético para saltos mortais no abismo do humano? O homem está mais para margem
que acervo bilíngue de vagabundos, e assim tenho dito para cada um nos durantes
dos meus dias.
Referências
BARROS, Manoel de. Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “... poeticamente o homem habita...”. Ensaios e conferências. Petrópolis:
Vozes, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ROSA, João Guimarães. Grande
sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
[1] Quinta parte do poema “Cadernos de
apontamentos”, p. 275-6.
[2] ROSA: 2006, p. 468.
[3] BARROS: 2010, p. 336.
[4] LISPECTOR: 1998, p. 131.
[6] LISPECTOR: 1998, p. 131.
[8] BARROS: 2010, p. 400.
[10] 2001, p. 179.
[11] BARROS: 2010, p. 343.
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