Há quem diga que poesia
se explica. Há quem mapeie de gramáticas, semânticas e sintaxes o salto mortal
de um verso ao fundo do estômago. Há quem faça de tudo, até rotina de
parapeitos em geografia de escadas. Estes existem sim, são muitos e aos montes.
Mas há outros também: os que se fecundam por nuvens, que absorvem na pele o fôlego
do vento.
Aos primeiros se
costuma atribuir listas de nomenclaturas, jargões precisos de títulos, manias e
costumes pré-datados. Já os segundos são crias de invenções: forjados por
nascentes de sol, são o cultivo do absurdo mediante a esquizofrenia da razão. E
são estes que me interessam: os resultantes do amor entre pôr do sol e
horizonte.
Indagando o ventre por
onde escoam as palavras ainda jamais pronunciadas, confessam-se alegrias de
outonos em vertentes de epifania. Nesse lugar, o céu é o alforje em que se
guardam rajadas de cores ensandecidas.
Rumo ao epíteto do nome,
pensa-se no jardineiro das palavras lavrando num canteiro lógico – de lógos – parafernálias de injunções
verbais. A todo troço criado na plantação de sua alcunha, florescem cristas
adnominais no cume de orações ao sagrado sentido do silêncio. A esses colhedores
de linguagem chamamos poetas, cujo traçado corporal rabisca de luz as paredes
do tempo, criando espaços de ubiquidade indelével.
Aos poetas são dadas as
confissões de pecados nunca cometidos, mas vividos na pureza de auroras. Mas
que fique claro: não me refiro às tolices morais confiscadas de decências que
tanto falam por aí. Os pecados da poesia estão na infestação de seu nome, no
incesto próprio de reinventuras para os casos, ocasos e acasos de som e
travessia. O pecado rompe da própria pele para percorrer os recantos onde a
saliva não alcança. O pecado é a palavra travestida de queda e violação.
O poeta viola o cerne
do verbo ao cantar o mundo em suas vestes ancestrais. Um corruptor da
eloquência dos bons hábitos, onde esses – os bons hábitos – não passam de
castidade imprópria para o humano. Uma castidade que deturpa, que ceifa o aroma
de maresia do mar.
O poeta é um violador.
Corrói com sêmen verbal a brancura falsa de moralidades para reinventar a
sujeira de uma vida em chão feito de sonhos e terra batida. O sujo não é o
impuro. Na verdade, é o repleto de experiência, o pulo no canteiro do sol,
pegando no percurso do seu salto pedaços de música, lixo, incoerências, imprevisibilidades,
confetes, palavrões, banho nu de mar, pedrada na janela da vizinha chata,
corrida após tocar a campainha de uma casa qualquer, beijo roubado da menina
distraída, sorvete de madrugada, o entardecer com um amor... e todas essas
coisas ditas e vividas que sempre nos lembraremos como se fossem o agora.
A violação poética da
poesia está no peito inflado do vento ao abrir a porta dos fundos de casas transeuntes
e fundar o império dos sustos em corpos espantados. Daí, montanhas são
levantadas pelo voo de borboletas em trajetórias enigmáticas de paragens, cujo
traçado límbico de seu frágil corpo incendeia de absurdo a calmaria de vestes
protestantes. O espanto é a transformação do silêncio em ação grávida de escombros
palatais, cujo céu da boca é o véu do poético em dias de sol e mar nublado.
O pecado da carne é
pressuposto de poesia. Num viril olhar onde o soslaio se apresenta de corpo
inteiro, qualquer castração se torna importuno para fluência verbal. O gosto de
sal do suor na boca é parte integrante do verso que reclama para si o seu outro
durante o orgasmo múltiplo entre corpos, prelúdios e gestos. Nessa orgia de
costumes inventados, o que vale é o olhar, e também a pele sentida no frêmito
da voz nascida nos instantes da palavra. A poesia está nesse tenso enlace, onde
o primogênito do verbo insiste em nascer a cada virada de esquina, a cada
sorriso perdido nas dobras de roupas atiradas ao relento de poentes.
Há quem diga que poesia
se explica, há quem pense que o peixe nada ao contrário em noites de lua cheia,
há quem afirme que beija o cotovelo com os pés nas costas. Há sempre uma
possibilidade para o absurdo. Mas de qual absurdo se trata aqui? O poético,
recriado a cada vento que espreita a intimidade dos segredos? Ou o conceitual,
perdido na poeira das estantes intelectuais?
O absurdo ao qual nos
entregamos é fonte de versos e canções. Porém a dureza da definitiva certeza
dos dias refuta o absurdo enquanto nascente de acontecências, tratando-o como o
que está à parte da realidade. Daí, é preciso que se diga, esbraveje, berre: nada
está à parte da realidade, pois o dentro e o fora compõem o real em sua
essência de surpreendimentos, ou seja, tudo que se dá ocorre por intermédio de
uma finura inatingível de olhos, porém concreta no que possibilita o ver,
velando-se, resguardando-se, vislumbrando-se na multiplicidade que aparece
enquanto realidade. A realidade é uma possibilidade de absurdos.
Quero o absurdo para
dentro de minhas dúvidas ao desbravar semânticas em concertos de metafonias,
pois só assim poderei libertar do jugo do palpável o grito da poesia inflamada
desde o peito até o leito de batentes corpos. A poesia mora nessa explosão e
também no depois do baque. Na verdade, não há um lugar para sua habitação, pois
a poesia é a própria insurgência do habitar. Habitamos poeticamente o mundo enquanto
homens encarcerados em nossa singular maneira de ser. Travados entre pele e
dentes, o limite de nossos passos se conduz ao desenho dos pés na caminhada
para o nada. O nada é o quando de nossa morte, a medida voraz da passagem entre
o cravo de uma beligerância e o crivo de remitências consonantais.
Na fala, uma boca se
enseja. Na reunião entre pedra, flor e espinho se resigna o absurdo das simultaneidades.
A fala se permite em lábios atrevidos de palavras. Em tonais de melodias
incandescentes, orações são forjadas ao sagrado infinito dos ventos. E esses
vão criando moradas no cerne das pessoas deixadas ao acaso por sua humanidade.
Deixar ao acaso, aqui, significa o abandono necessário à morte, e morte é o
abandono necessário ao renascimento dos dias de todo instante.
Todo poeta é encontrado
por seu desencontro, é deixado de lado pela precisão das horas de refrões
batidos, já conhecidos antes mesmo de sua composição. Esquecer a canção
conhecida é uma necessidade de criação, uma vez que em todo criar se funda uma
perspectiva de ver e ser. Na criação, cria-se o criar, reinventando correnteza
de rios nos caminhos sempre trilhados e nunca conhecidos. O que há é
reconhecimento, um apetrecho de momentos em que se identifica na diferença o
cerne que conduz ao nada o sentido de ser habitação poética.
Poesia não se explica
por ser acontecimento sempre acontecente. E na tentativa de se dizer o que é,
perdeu-se o fio da meada em trajetórias de cordilheiras. Da poesia nasce o
poema e todas as coisas que circundam a cintura da realidade. Agarrar o braço
do poema quando ele passa em nossa boca é um estupro desconcebido, sem órgãos
genitais, sem suor, sem respiração ofegante. Só há violência e verborragia:
falatórios incessantes, descrentes de linguagem.
Diferente do que agora
se disse é fazer amor com o poema, pois aí não há necessidade de nomes nem
horas marcadas, só há é êxtase infindo, liberdade em ser limite para o salto.
Há também reconciliação do não com todo sim pensado e não dito, há corpo
inteiro sendo espasmo de infinitude. Não há como haver poema se não houver
amor, e na impossibilidade de dizê-lo – o amor –, criam-se tentativas de
prisões. O amor não cabe no poema, pois é o sentido anterior ao primeiro canto
dos versos.
Um poeta é morte
ambulante porque não há amor sem morte. Talvez por isso seja tão difícil ser
poema, seja tão doloroso amar com verdade.
*Publicado originalmente na 35ª
edição do Labirinto Literário.
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