31 de julho de 2012

Oferenda ao infinito


Meus amigos, disponibilizo meu ensaio, que foi originalmente publicado na 28ª edição da revista eletrônica Labirinto Literário, a fim de provocar o diálogo com quem se interessar. Como dito na postagem anterior, caso queiram receber as edições do LL por e-mail, basta se cadastrar em seu site. Fiquemos, então, com meu ensaio. Boa leitura!

Oferenda ao infinito

Lanço minha voz ao infinito... Retornam vento e poesia de mar... O clamor de ondas se enrijece na fala de uma palavra que se diz em todas as cores. A palavra está em todas as coisas, inclusive em seu silêncio. O silêncio da palavra é gestação de aurora, rompendo como voz ou escrita o rubor em face adolescente.
Lanço minha voz ao mar... Retornam amores entalhados em sal, esculturas sobre e com o Nada, nascidas do primeiro choro de uma criança. Choro de vida, da dor de estar vivo, esculpido ao som de cânticos ancestrais. Eis a oferenda doada ao imprevisto, o andor que eleva a sacralidade do humano diante de si, de sua incompletude, de sua existência ornamentada em dúvida, queda, errância e amor. O que se percebe além disso são decalques de uma vontade inventada, mas não a invenção no sentido poético, e sim no de verborragia desnecessária.
O sentido poético de inventar diz respeito ao que descobrimos daquilo que já nos foi doado pelo real. Assim, quando nos depararmos intimamente conosco – em transiência de ser –, descobrimos, inventamos aquilo que já temos e, só por isso, podemos (nos) realizar. Realizamo-nos junto com nossa invenção, pois somos a obra de arte resguardada no silêncio misterioso do não-ser. Não podemos inventar o que não nos pertence, e sim desvelamos o que originariamente nos compõe como humanos: somos solo fértil para o plantio do real. Tal questão se desdobra corriqueiramente, e não percebemos. Dessa forma, apontando para um caráter supostamente externo, mas que, na verdade, retoma e reforça o cerne do que foi dito há pouco, ao olharmos uma pedra e nela vermos uma escultura, estamos transbordando o sentido inventivo do que nos é próprio. Des-formamos a pedra, pois a metabolizamos e fazemos dela nosso alimento; não exatamente dando um formato, mas sim deixando transparecer em forma o apelo que escutamos de sua matéria. O mesmo acontece com a palavra num poema, com um pedaço de madeira, com um traço no papel ou com o gesto que nos restitui à humanidade, seja lá com que matéria for.
Inventar é se abrir às vestes do sagrado, da ambiguidade entre criador e criatura, uma vez que um está no outro, sem que se imponha passividade ou atividade. Criar é ser o empenho do nada na doação do mundo; criar é ser homem e refestelo de poesia em noite de lua cheia, em dia de mar aberto, em poentes coloridos de orgasmos. Nos criamos nos sussurros ao pé do ouvido ou na fúria de braços entrelaçados... nos entalhamos no olhar do outro quando a verdade se inflama e se diz (quase) sem muralhas... no outro que é tanto o além quanto o aquém de nós... pois somos também (e principalmente) o outro de nós mesmos...
Lanço meu olhar ao horizonte... Retornam gestos, procissões de imagens inacabadas, porvir... O anseio de conceber minha imagem como desconhecido de mim eleva o gosto de meu suor ao auge de um querer-sem-saber. Uma ausência, prevalência, cores e tons do imprevisto que pinta a paisagem de um existir em acontecência: minha existência em oferenda ao desconhecido. Ofereço-me repleto do que não tenho ao ardor de ser, ofereço-me simplesmente como presente ao mar, como carinho em criança, afago em moribundos ou beijo em boca esquizofrênica; apenas ofereço-me... e o resultado disso é que não devo esperar por reciprocidade, por presente datado. Devo me submeter ao orvalho da palavra, ao entoar de vozes ensandecidas de poesia. Dou-me à poesia, sou todo poema a ser escrito sem data ou assinatura, sou todo palavra descabida, emergência de tudo que não sei.
Lanço minha pele à escrita, sou superfície a ser arada por versos e música, pré-cultivo de linguagem, inefável presença de imprevisibilidade... Sou qualquer coisa inaudita, incomensurável, um apelo ao oposto das oposições, quando a oposição é uma falácia inventada por divertimento da palavra. Sou qualquer poema escrito e a escuta atenta à sua voz. Sou um poema catado ao vento, que preenche meu corpo – e a quem se deixar envolver – de sentido e vida:

INSTANTE ANUNCIADO

Um chapéu velho!
Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei que não chorava
E nem tinha desejo de falar.
Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma coisa vinha chegando...
Eu não via seu rosto,
Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei como ele amou aquele instante
Mas sei com que prazer ele esperou
Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
A que havia de vir passar as mãos
Pelos joelhos feridos.[1]

O instante se anuncia no seu próprio movimento de aparição, seja lá este como for: visível, palatável, audível ou impronunciável. O instante, para se tentar alcançar um chamamento, é fuga constante em qualquer tentativa de apreensão, antecedência de nome e gesto de poesia quando a voz se inflama nos pulmões do poeta.
O instante se anuncia e fala junto com a palavra, e nela mesma; é a palavra em seu jogo eriçado de travessia. A ambiguidade é sua cor, pois se iridesce o sentido verbal de ser vários. Quem fala? O poema, a linguagem, o instante! E só consigo ouvir porque sou fruto da mesma imprecisão. Melhor, sou fruto e semente, antecedência e procedência imersos na mesma palheta antes de se auferirem antagonismos. Só ouço o poema porque sou também seu verbo, sou sua fala e voz; cantamos em uníssono a proclamação do instante que já e nunca passou, pois o instante, o tempo, não passa: vigora!
Sou a espera dos lábios úmidos a me dizer com boca o beijo de eterna inocência, a carícia perene, sempre presente, do amor que me ama com profundidade, dor, calor e abandono... Abandonar não é somente deixar alguém sozinho, mas é também o movimento de este alguém se deixar só consigo, apropriando-se de si. Só amamos quando nos deixamos amar pelo amor, e assim nos reconhecendo no amar, e nos amando, podemos transbordar a ponto de acolher o outro.
O amar é sempre um transbordamento, é palavra que diz o que não é possível ser captado em formato gramatical, pois palavra não é apenas forma, coerência, ocorrência de código linguístico. Palavra é o próprio amor se dando no que não é possível dizer, mas sentir com corpo pleno de existência. A definição de amor já chega atrasada em sua tentativa de se explicar, tal qual a de palavra. Nenhuma explicação dá conta da inaugurabilidade que é ser amor e palavra, ser um instante anunciado.
Depois de girar meu corpo em ciranda, lanço meu olhar à Lua e sou também o que vejo na quentura de sua luz, o brilho que guia os poetas no exercício de seus passos, quando erram no desencaminho de suas letras. O caminho é o presente aos pés de quem se entrega à procura da verdade, de seu apropriar-se. E verdade não significa razão premeditada da certeza, mas a assunção (dolorosa) do que se é. Sou e realizo aquilo que se dá a ver na retina de meu toque. Toco com o corpo e sou a pele do que me atravessa.
Danço com a inconstância do mar e me entrego em palavra à poesia de suas ondas, estas que são o berço alvo do poente. Ofereço-me à imensidão de suas águas, à palavra e ao amor, sem saber o contorno do meu corpo. Dou-me inteiro e sem nome, uma oferenda ao infinito...


[1] BARROS, Manoel de. “Instante anunciado”. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 43.

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