Poesia que me recobre,
me descobre corpo fértil para o nada, para o imprevisto de ser a acontecência
do real. Realidade improvável, incerta na composição da terra onde se plantam
os pés e se colhem arvoredos de imagens e sons. Uma antiga floresta cultivada
no interior do que não se vê no olhar, presente no gesto único e inefável da
pele, e esta não se diz apenas limite físico, mas horizonte em que se perde o
que nunca se ganhou.
Perder não é deixar de
ter. Perder é ingerir a inconstância do real ao se dar contrária à nossa
vontade. Perder é perder-se no inominável sentido de ser o que não somos. Ser o
que não somos diz vida se dando naturalmente, e o natural é isto que não sei
dizer.
Falo, volteio, indago o
próprio existir. Lanço-me nu em seus braços: poesia que se diz no calado dos
passos surdos, na clemência por um algoz sem voz que me afaste da tentativa de
acertar o ritmo; que me destitua do razoável senso prático em ser apenas o que
está ao alcance do meu olhar.
Mas como ser o que não
sou? Como dar o que não tenho? Como impedir que a noite recubra o que vejo nos
lampejos de lua?
Às vezes a lua se
oculta nos braços da noite, fazendo amor com as estrelas e gozando em pleno
sol. Aparece redonda e brilhante, pronta para a escassez de sua forma,
preparando seu corpo para outro momento de plenificação: gestação. Sua forma é
seu corpo, e forma é o modo como o corpo se dá, aparecendo no limite do que se
revela. O corpo é a diferença de ser o que não é quando se lança na figuração
do olhar do outro, ou seja, o corpo é o abismo onde se perdem todas as lógicas
racionais, todas as certezas pautadas no desenho impreciso da visão. Enganam-se
aqueles que conferem ao visto a inteireza do que aparece, pois o que se dá a
ver é inteiro não porque é completo, mas porque traz consigo o que não se pode
nunca alcançar: o não visto. Dessa forma, o inteiro não está circunscrito no
limite da aparição; ao contrário, está disposto naquilo que no limite
transborda o visível, que se doa enquanto corpo na aparição ambígua do que é e
não é.
Drummond já toca nessa
questão em seu poema “As contradições do corpo”. Então, ouviremos o que se diz na
primeira estrofe do mesmo:
Meu corpo não é
meu corpo,
é ilusão de
outro ser.
Sabe a arte de
esconder-me
e é tal modo
sagaz
que a mim de mim
ele oculta.
O corpo encena sua
própria contradição de ser, uma vez que na aparência em que se apresenta rascunha
a sutileza do imprevisto. Sua insustentável leveza é sua morada, sua
incompletude é a marca com a qual se tange de – e no – tempo, de
incomensurabilidade. O que do corpo é meu se perde naquilo que não tenho, pois
tudo que tenho só assim posso considerar por já estar pronto, acabado, definido
em seu modo de ser e aparecer. Exemplificando: conforme disse o pensador
brasileiro Emmanuel Carneiro Leão em uma conferência dada na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ,[1]
posso dar um objeto que tenho em minha casa, pois o mesmo está definido em seu
formato, em sua objetualidade palpável. Mas não posso dar o que sou, já que
isso não tenho. Se o que sou é uma doação do Ser que se dá a ver na
constituição do meu corpo, então sou a vigência do vir-a-ser de mim enquanto o
sendo, portanto, o próprio do que sou. E o que sou nem a mim cabe dizer, pura e
simplesmente porque não me sei.
Outra questão
importante que vemos no poema de Drummond é que somos o outro de nós mesmos. Se
por um lado podemos pensar numa descompassada cisão entre corpo e alma, Id e
Ego, ou qualquer dessas oposições que encontramos no percurso do pensamento
moderno;[2]
por outro, percebemos que não há oposição na realização do corpo, e que a
corporeidade do real é em si o próprio paradoxo de ser o que não é. Em outras
palavras, “o que a mim de mim ele [o corpo] oculta” é aquilo que inevitavelmente
já é meu, porém que ainda não se deu a ver. Na assunção do meu próprio (do que
inegavelmente sou) é que isto que não sei, que está oculto, se revela ao mesmo
tempo em que se resguarda na essência do Ser. Portanto, sou – e cada um é –
simultaneamente salto e vertigem, luz e sombra reunidas na clareira misteriosa
do nada: o nada criativo: o tò mé ón[3]
de Platão, ou seja, o vazio necessário para que algo se dê, o vir-a-ser do que
é e não é. Na conferência à qual nos referimos, o professor Emmanuel Carneiro
Leão nos lembrou de que só há música quando há pausa, e essa pausa é o silêncio
para onde vão e de onde vêm as notas musicais.
O poema faz referência
à “ilusão de outro ser”, e disso podemos cogitar o modo como a interpretação
viva e originária de mim se dá no olhar do outro. O que o outro vê de mim é uma
imagem criativa, da mesma forma que o que vejo de mim é uma interpretação doada
daquilo que não sei e que a todo instante se dá a ver tanto em pele quanto em
poesia. Isto é, o poético é a inaugurabilidade do real, manifestando-se em
realidade. E isto quer dizer que o que sinto é uma tinta que se soma ao
incontável luzente da paleta de um pintor e, nesse caso, o “pintor” é o real.
Não por ser um agente, mas por resguardar e ser a essência do que se realiza. E
isto que se realiza, assim o faz como nota musical, como verso de um poema,
como corpo que se lança no improvável de si mesmo. Portanto, somos o outro de
nós mesmos tanto quanto percebemos o outro que se difere de nós por este se
realizar como nossa diferença. O que quero dizer é que ao tocarmos em algo nos
consumamos ao mesmo tempo em que nos consumimos. Contudo devemos nos atentar ao
fato de que se o consumar nos leva à plenificação (cum-summare: chegar ao sumo, realizar-se essencialmente), o consumir
nos leva à ruína (cum-sumere: chegar
ao que esgota). Entretanto, um e outro estão muito próximos e, por que não,
ligados; já que se dão mutuamente em tensão. Isto é, realizam-se como limite,
como precipício para o phármakon.[4]
Metabolizo aquilo que é
diferente de mim – o alimento, por exemplo –, mas só posso fazer disso meu
corpo porque já sou a realização de tal paradoxo. Isto é, se posso metabolizar
o que é diferente – portanto, daquilo que do alimento ainda não é meu
corpo –; ao mesmo tempo, para que tal metabolização ocorra, é necessário uma
pré-disposição do alimento em mim. Nesse caso, sou do alimento aquilo que é
diferente, mas conforma corpo. Isto nos leva a pensar que sou – somos –
radicalmente o vigor da diferença enquanto existência. Somos a contradição
viva, mas desvista. Ou seja, contradição não como mera oposição, e sim como
movimento incerto, impreciso, errante: agir essencial do poético ao nos tomar e
se realizar em nós.
A contradição do corpo
não está na divergência antagônica de si em relação à alma ou a ele mesmo. Ao
desvermos a contradição que o corpo encena, tomamos posse de nossa própria
errância enquanto humanos poeticamente habitantes de nós mesmos. Somos
divergência e convergência, somos corpo para muito além de um constructo orgânico,
até porque o sentido de corpo que aqui pensamos é o de mundificação. A errância
que envia nossos passos ao desaviso de viver é a música que nos leva a cantar
nosso próprio nome: poesia.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. “As contradições do corpo”.
In: Corpo. 17ª ed. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
A INSUSTENTÁVEL leveza do ser. Direção: Philip Kaufman. Roteiro: Milan Kundera
(romance) / Jean-Claude Carrière / Philip Kaufman. 1988.
[1] Ocasião em que aconteceu o IV
Seminário de Filosofia Antiga, na UERJ, em 2010.
[2] Pensamento moderno que já se dá
por equivocado desde a afirmação que distingue os mundos sensível e inteligível,
cuja autoria de tal proposição se atribui a Platão.
[3] Segundo a interpretação do prof.
Emmanuel Carneiro Leão, podemos entender essa formulação de Platão como “o não
ser”.
[4] Aquilo que tanto pode matar
quanto curar, dependendo da proporção. Um remédio (fármaco), por exemplo.
Obs.: Este pequeno ensaio foi publicado originalmente na revista digital Labirinto Literário, na 29ª edição.
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