17 de novembro de 2008
José Martí: cultivo de uma breve interpretação
José Martí é natural de Havana. Mais conhecido por sua militância em prol da independência cubana, elevou sua imagem como figura importante dos movimentos libertários. Desta ambiência, podemos ressaltar que sua produção artística se deu em função do papel de destaque que desempenhava na independência cubana.
Martí, ainda pelos anos da adolescência, apoiou a Guerra dos Dez Anos (1868-1878), cuja relevância enseja a luta pela soberania de Cuba. Anos mais tarde, redige as bases e o estatuto do Partido Revolucionário Cubano, cuja proclamação ocorreu em 1890.
Apesar de sua produção girar em torno dos assuntos de sua militância (haja vista a publicação do folheto “O Presídio Político em Cuba”, no qual denunciava o período em que passara enquanto preso), destacou-se como precursor do movimento modernista hispano-americano. Sua obra o dimensiona num universo de vasta produção literária, posto que seja escritor, orador, poeta, cronista, jornalista, educador.
Então, é com o enfoque no literário que agora nos dirigimos ao dialogarmos com o poema “Cultivo una rosa blanca”.
CULTIVO UNA ROSA BLANCA
Cultivo una rosa blanca;
En julio como en enero,
Para el amigo sincero
Que me da su mano franca.
Y para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo,
Cardo ni ortiga cultivo
Cultivo una rosa blanca.
O modernismo hispano-americano é caracterizado por seu dinamismo, pelo senso de ruptura com o que vigorara até então, gerando uma sociedade em que seu componente humano se encontra em conflito constante. Assimila os diferentes movimentos estéticos, fato este que se expressa na variabilidade expressiva das obras de arte de tal época. No poema em questão, observaremos estes traços manifestos.
Atendo-nos ao título, percebemos a palavra-chave do poema: “cultivo”. Este cultivar é o ponto de reunião histórico em que se refletem as tensões pátrias[1] do povo cubano na luta pela independência e entre a permanência de gestos que, em sua simplicidade, compõem a complexidade de um manancial de atitudes estéticas. Isto é, este verbo é o anverso e reverso de uma estrutura poética que, em sua composição, recolhe a essência dos movimentos de ruptura ao congregar, no caso do poema, as facetas múltiplas de um mesmo gesto.
Temos duas estrofes que aparentemente se opõem. Entretanto, quando nos demoramos um pouco mais em sua leitura, percebemos que toda contradição é desfeita no âmbito da ambigüidade. Em outras palavras, esta ambigüidade não é sinônimo de confusão lógica. Ao contrário, indica-nos a efervescência da assimilação das vanguardas em transe, na medida em que o poema ressalta a impossibilidade de uma simplória leitura dos significantes.
O primeiro verso é a repetição do título acrescida de uma especificidade de sentido. Ou seja, nele temos a imagem da “rosa blanca”. Esta é cultivada tanto para “el amigo sincero” quanto para “(...) el cruel que me arranca / El corazón con que vivo”. Então, a “rosa blanca” é a metáfora que diz a reunião dos opostos no movimento de absorção das diferenças culturais. Mais ainda, tal imagem abarca a dupla possibilidade de tanto suplantar o subjetivismo romântico quanto apontar para o multiculturalismo moderno. Um outro verso que aponta para o duplo domínio dos opostos que se assimilam é o segundo verso[2] da primeira estrofe. O interessante dele é percebermos como a preposição “En” e a conjunção comparativa “como” centralizam o movimento de trânsito. Os termos “julio” e “enero” (meses do ano) ficam em segundo plano, na medida em que as classes de palavras citadas desfocam deles o núcleo de tal movimentação por trazerem, de fato, a idéia de trânsito.
O verbo cultivar torna a aparecer nos últimos dois versos do poema: “Cardo ni ortiga cultivo / Cultivo una rosa blanca”. A inversão aqui proposta e a repetição do verbo em questão ressaltam a ironia crítica ao se perspectivar a paz para além de uma simbologia corrente: a rosa branca. Mais do que uma representação corrente de concórdia, a imagem da rosa funde a tradição e a vanguarda, uma vez que “desloca” o significado do significante. Isto é, retira do senso comum a significação de paz transmitida pela cor branca da rosa para ironizá-la mediante a transitoriedade da modernidade hispano-americana. Vale ressaltar que a ironia de que tratamos aqui não se reduz ao sentido comum do dicionário, no qual tange a relação de ênfase aos contrários. Enviesamo-nos pelo sentido grego de ironia, ou seja, de crítica questionante.
Enfim, ao fechar o poema com um verso homônimo ao título, percebemos a circularidade poética que incita a dinamicidade de tempos não recolhidos ao marasmo de padrões pré-formados. Se ser moderno é estar em movimento, como já disse Marshall Berman, eis uma maneira de mostrar como a produção poética de José Martí compõe, ou mesmo funda, um período caracterizado pela expansão espacial, pela crise das oportunidades e pela constância de movimentos, só para citar algumas das características do modernismo hispano-americano.
Pequena bibliografia
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CRUZ, Jacqueline. Esclava vencedora: La mujer en la obra literaria de José Martí. In: Hispania. Volume 75, nº 1, março de 1992. Visitado em 14/09/2008. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02494943103138163754491/p0000003.htm#I_6_
Homenagem a José Martí. Visitado em 14/09/2008. disponível em: http://www.unb.br/ceam/nescuba/homenagem2.htm#_ftn1
[1] Referência direta ao sentido de terra tanto como morada essencial (telúrica) quanto como pátria.
[2] “En Julio como en enero”
31 de outubro de 2008
Diálogo com o poema "Antropofagia delirante", de Virgílio de Lemos
Abaixo segue um resumo mais que expandido sobre o texto que apresentei e que logo será publicado na íntegra:
O percurso antropofágico-delirante de uma interpretação em Virgílio de Lemos
Virgílio de Lemos nasceu na Ilha de Ibo. Ilha esta que integra o Arquipélago das Quirimbas, na costa norte de Moçambique. Como nos propomos a pensar sua poética, estaremos em diálogo com o pensamento ontológico acerca do homem, assim como com o desdobramento em questões como pátria (terra), língua, corpo, música, mundo entre outros.
Errante, multifaceta-se na cisão heteronímica, a saber: Duarte Galvão, Lee Li Yang e Bruno dos Reis, no entanto, aqui voltaremos nossa atenção ao ortônimo Virgílio de Lemos, em especial, ao poema “Antropofagia delirante”, assinado por Duarte Galvão. Dito vamos ao poema sem mais demora:
Antropofagia delirante
Mas qual o poeta que não tem,
incestuosa,
uma relação com a língua
qual a língua que não devora
o poeta?
É no meu canto que vives
é no meu corpo
que morres
meu Amor, meu sangue,
poesia.
quanto mais reinventas as sombras
da língua, as fugas,
mais outro será o sol
do desafio
quanto mais perto do absurdo
mais real:
vestígios da lama no teu
rosto. Mãos de Irreal.
Vagabundo, o silêncio
devora
a memória. Volúvel,
o coração
se compromete com
a palavra.
A língua é uma canção
que morre
se não lhe conheces o refrão
se não lhe dás a volta
e recomeças,
Livre.
A língua é uma canção
que assobias,
que devolves à memória,
sem artifícios, nua,
irreverente, outra
e tua.
Uma obra poética se apresenta de maneira singular e resguarda no seu dizer a manifestação do não-dizer, isto é, aquilo que essencializa nossa leitura e nos faz espantar (taumádzein) mediante a possessão de sua poeticidade. Oriundo do silêncio, o poema nos forma e se conforma estruturalmente. Não que haja uma relação de enquadramento entre sua construção e um paradigma prévio a ser confirmado, mas um encaminhamento que traz em si sua estruturação e seu próprio caminhar. Assim, um meio de nos aproximarmos de tal dinâmica seria perceber como ocorre a movimentação poética em sua própria disposição. Isto é, como singularmente a obra se dimensiona em seu operar e pronuncia um mostrar-se próprio.
Considerando o que fora acima dito, o poema em questão se apresenta em quatro movimentos, como veremos mais adiante. Estes são perpassados pelo o que o título reúne em si, então, comecemos por ele.
Antropofagia é composta por duas palavras gregas: o substantivo ánthropos e o verbo phagein. O primeiro termo significa homem e o segundo, ingerir, comer. Logo, comumente nos é informado o sentido dicionarizado de canibalismo, ou seja, o homem que ingere carne humana, que a leva para dentro de si (HOUAISS, 2001). Mas para qual encaminhamento tal relação nos leva? Que ingerir é este?
Este trazer para dentro de si é muito mais do que uma assimilação física, uma ingestão. Revela-nos a consumação, ou seja, um percurso de condução do homem à essência do que é na plenitude do vigor. É, portanto, a apropriação poético-originário do sendo humano.
Une-se ao substantivo antropofagia o adjetivo delirante. Este provém da palavra delírio, que significa numa primeira acepção as ilusões ou alucinações em função de alguma doença. Entretanto, delírio também nos diz o êxtase, o arrebatamento, o entusiasmo. O delírio é o que toma o poeta no vislumbre da physis e o lança na vertigem do apropriar-se, um salto abismal na procura de sua essência, uma devoração, conforme nos diz o poema. Exatamente, o poema inteiro nos diz isso e não só o título. Este atravessa todo o poema e retorna ao repouso daquilo que potencializa no desdobramento da obra.
Antropofagia delirante é o deslocamento incessante do convencional, na medida em que se consuma o ser no delírio da poiesis. E isto veremos no percurso dos movimentos.
Primeiro movimento: o devorar incestuoso da língua
O primeiro movimento vai do verso 1º ao 5º e é regido por uma pergunta. Mas o que tal pergunta questiona? Desde logo, somos colocados diante de uma ruptura. Ou seja, a quebra da inércia do já estabelecido é levantada quando, ao se questionar, insere-se uma nova perspectiva indicada pela primeira palavra do poema: Mas. E que contraposição é esta? Mais importante do que saber o que se contrasta, é perceber na caminhada o caminho que se faz. Se temos um Mas é porque, de fato, houve uma mudança e esta se configura em dois momentos: primeiro, pergunta-se pelo poeta; depois, pela língua.
Este primeiro movimento nos apresenta uma falsa situação de dicotomia entre “poeta” e “língua”, já que toda movimentação girará em torno destes dois pólos. Dizemos ser esta dicotomia falsa porque a palavra “incestuosa” acabará com tal oposição, na medida em que imiscui uma na outra.
O incesto que o poema traz diz respeito à relação íntima entre poeta e língua. Há uma proximidade tal que transborda os limites da individualidade de cada um. Poeta e língua se dão mutuamente num corpo. Um reclama pelo outro a ponto de não se saber quem é quem. Buscam o orgasmo como tentativa mortal de vida, um atravessamento contínuo sem determinação genérica, lembrando que orgasmo, do grego orgasmós, significa estar possuído de uma paixão violenta (HOUAISS, 2001). É a plenitude do corpo sendo radicalmente o que é na consumação do destino, a consagração ritualística do tudo é um heraclítico[1]. E o que é isto, senão o devorar?
O incesto é uma realização do devorar na proporção que o poema nos leva à indefinição de um ou de outro, por isso um movimento iniciado por uma conjunção adversativa Mas e finalizado com uma interrogação, avultando se tratar de um caminho incessante de questionamento.
Segundo movimento: o diálogo poético
Este movimento vai do verso 6º ao 18º e se difere do primeiro por, numa primeira instância, instaurar o diálogo com o leitor ao mudar a pessoa verbal. Subdivide-se ainda em dois outros: um está no trecho que vai do verso 6º ao 10º e o seguinte, do 11º ao 18º. No primeiro momento, percebemos o corpo poético vigente na dinâmica do ser (É) e da poesia (poiesis). Em outras palavras, o ser é o que está sendo nos entes, daí que cada homem é um corpo-sendo na vigência do agir primordial e originário da poiesis. Esta última palavra nos diz a ação. Poesia é ação enquanto permanência desdobrada em todas as mudanças, uma vez que tais mudanças são tanto as ações do homem em seu cotidiano (numa perspectiva metafísica de usufruto do sujeito) quanto sua apropriação destinal daquilo que é no estar-sendo. Ser e poiesis são um e o mesmo na proporção que deflagra a essência do homem enquanto permanência desapropriada da dicotomia cartesiana. É neste sentido não-dicotômico que podemos enxergar a relação entre vida e morte que o poema nos demonstra.
Viver e morrer não se opõem. A vida é um intervalo de morte, na medida em que a última é o vazio do qual emerge a efervescência do nascimento de uma existência. Então, podemos entender ser a vida um prazo poético de morte, uma vez que uma e outra se dão contínua e circularmente a cada espanto com o novo, pois a incerteza do que está por vir enquanto destino é o realizar-se ambíguo do homem na figura poética da liminaridade. Isto é, o homem é o ser-do-entre no qual o horizonte de sua vida abarca a mortalidade de sua limitação.
Nos versos (...) é no meu corpo / que morres (...), temos o corpo como aquilo que reúne. E o que é isto que reúne, senão o logos? Eis uma palavra cuja origem etimológica nos leva ao verbo grego legein, que significa, primordialmente, reunir e dizer. Sendo assim, o poema conclama os dois sentidos quando reúne no corpo a vida e a morte e se diz enquanto canto. Lembremos o 6º verso: É no meu canto que vives (...). Portanto, vida e morte são um e o mesmo no vigor da plenitude do corpo enquanto reunião e do canto enquanto doação da linguagem na presentificação da língua. A linguagem é o que nos atravessa e nos possibilita a fala, uma vez que quem fala não somos nós, mas o logos[2].
Em outro momento deste segundo movimento (v. 11º-18º), observamos uma evolução cíclica que aponta para uma dinâmica de ação e retraimento: quanto mais reinventas as sombras / (...) mais outro será o sol (...) / (...) quanto mais perto do absurdo / mais real. Isto é, o poema nos indica seu caminho em sua própria configuração. Comprovamos tal evidência ao percebermos nestes versos destacados algumas palavras essenciais: o verbo reinventar, por exemplo, do qual podemos depreender o sentido da contínua eclosão da essência na aparência. E o que é reinventado? As sombras! Estas nos dizem o mistério do não-saber, da não-ação, do silêncio. E mais, são (...) sombras / da língua, isto é, a língua como presença resguarda a excessividade da linguagem na não-fala. Esta, a linguagem, vela-se no falar da língua, portanto, resguarda-se nas sombras enquanto repouso hiperativo de doação incessante.
Quanto mais a língua se imiscui em sombras, mais o sol se manifesta sendo sempre (...) outro (...). E que sol é este? Eis (...) o sol / do desafio (...), aquele que desponta e realiza sempre outro horizonte. Assim, para que o sol seja outro, é fundamental que seja atravessado pela originariedade de ser continuamente a concretização do que, para brilhar, antes é necessário emergir das sombras. Da mesma maneira, os versos 15º e 16º nos evidenciam a tensão entre aquilo que faz desdobrar em cada mudança a permanência da verdade no sendo-ser. Neste sentido, a tensão é o que converge todas as divergências numa unidade complexa. Em outras palavras, o desdobramento do uno em dualidades mutuamente interpelantes, um ciclo infindo de ser e não-ser: quanto mais perto do absurdo / mais real.
Este movimento se encerra após uma suspensão simbolizada por um sinal de pontuação. Nesta dimensão, os “dois pontos” presentes no verso mais real: suspendem o andamento do atual movimento e retomam seu início ao convocar o corpo. Um corpo repleto de vida, transbordante de fisicidade na medida em que conjuga também o sentido orgânico, sem, contudo, se delimitar nesta ambiência biológica. Com isso queremos dizer que (...) teu / rosto é a deflagração da ação da poiesis em todas as coisas, ou seja, não é algo que está além da realidade como uma noção de fuga. Ao contrário, é a própria vigência da realidade se dando em cada ente na individualização do homem em seu habitar poético-real-ontológico. Também neste sentido, os vestígios da lama (...) são a efervescência da physis na dinâmica do real, doando-se continuamente em realidades concretas. Este concreto nos diz o concrescer, ou melhor, um crescer com, junto, uma vez que seja a vigência do vigente, a permanência. Então, tocar é sentir com o corpo, guardar para si a experiência do novo na consumação do destino (arché / telos) e é neste encaminhamento que as Mãos de Irreal irrompem na aproximação e plenitude poética do inaugural do humano. Em outras palavras, são o furor da realidade em todo e nenhum lugar como imanência poética e ambígua do real.
Terceiro movimento: a linguagem no silêncio da palavra
Dimensionado entre os versos 19º e 24º, neste movimento nos deparamos com dois verbos principais e essenciais: o devorar e o comprometer. O primeiro retoma não só os outros dois movimentos, como também o título, ou seja, um devorar que recolhe para si, que consome e consuma. O segundo se dá enquanto desdobramento poético-antropofágico do devorar, uma vez que traz em si o sentido de intimidade para além de uma con-formação.
O verbo comprometer intensifica e conclama o sentido de dar-se em corpo-vivo numa ação de ingestão poético-delirante. Comprometer é o penhor de ser em conjunto com aquilo a que se refere. Assim, mais uma vez, temos a orgia acontecente na semântica do não habitual. Orgia esta que reclama por corpos aórgicos, ou seja, poéticos, transbordantes de vida.
Ao averiguarmos a desmedida que propõem as questões em seus interstícios, observemos a palavra Vagabundo no verso 19º. Eis o sentido primeiro de errância ao qual o (...) silêncio se atém. Mas pode ser o silêncio errante? Pensar poeticamente o silêncio é se lançar na vertigem de uma apropriação contínua e inesgotável. O silêncio não tem medida, mas funda a medida em uma medição específica.
O silêncio não erra, mas é Vagabundo por estar em todas as coisas e em nenhuma delas. Mais ainda, é assim que ele devora numa realização de retorno à essência originária.
Tão pleno quanto o silêncio, o coração é volúvel, isto é, permanece em cada mudança, habita as lacunas. Lança-se no paradoxo de cada palavra enquanto queda vertiginosa na plenitude de ser. Por isso, comprometer-se com a palavra é sê-la enquanto corpo-vivo, enquanto língua vigente no silêncio e em seu velamento. Tal dimensão poética é retomada no último movimento deste poema, na medida em que a palavra se dá corporificada em língua viva que fala, canta e corresponde à linguagem. É a própria vigência do “sendo”.
Quarto movimento: a circularidade poética na pro-miscuidade antropofágica
Este movimento se dimensiona entre os versos 25º e 36º, apresentando-se, de certa maneira, como o lugar de reunião. É neste sentido que, embora tenhamos nos demorado em cada movimento, estes nunca se fizeram estanques em suas limitações composicionais. Ao contrário, nos dimensionaram numa postura de escuta atenciosa para que pudéssemos ser a própria vigência do poema em nossa leitura.
No verso 25º, temos: A língua é uma canção. A canção é a música enquanto doação do silêncio, pois dele se origina para a ele retornar. E isso o poema já concebe nos versos que morre / se não lhe conheces o refrão, uma vez que conhecer o refrão é se apropriar do que desde sempre já se possuía. Assim, eclode o destino como acontecer do homem em sua experienciação. Pois, ao contrário da acepção comum do destino, que diz o cerceamento da liberdade do homem ao trilhar um caminho previamente estabelecido, ele (destino) se deflagra como o sendo do homem no instante de sua vivência ontológica rumo à plenitude da morte. Mas, e quanto ao (...) se (...) presente no verso acima destacado?
O se que o poema traz nos lança na tensão própria de um constante retorno ao original. É o movimento que diz o principiar quando este congrega em si a desenvoltura da consumação contínua e ambígua (arché / telos). Assim sendo, é necessário que conheçamos o refrão do nosso canto, que estejamos em escuta atenta ao que somos. É fundamental que estejamos imersos no movimento cíclico de retorno à essência do que nos é íntimo, por isso o poema nos diz para sempre e incessantemente recomeçarmos: se não lhe dás a volta / e recomeças. Este recomeço parte sempre de um silêncio, colocando-nos na disponibilidade do que se dispõe como novo, como essencialmente Livre.
É sendo Livre na assunção de seu caminho como vereda singular que o homem canta a língua, posto que ela seja uma canção que o percorre e o toma levemente, como vemos no verso que assobias. Então, é no dialogar e na clareza esvoaçante do êxtase, do páthos enquanto delírio que língua, poeta e poesia se dão pro-miscuamente. Aqui devemos nos desvencilhar da acepção popular de tal palavra e nos deixar atravessar por seu dizer etimológico, isto é, do latim miscere (que diz, entre outros significados, misturar, reunir, con-fundir), temos a não-divisibilidade entre os mesmos (língua, poeta e poesia) na culminância poético-antropofágica de um dar-se uno na complexidade dos múltiplos. De outro modo, é no ofertar da linguagem que a língua eclode no homem e este a realiza concretamente.
Interessante notar que os últimos versos deste movimento retomam o diálogo na forma verbal, ou seja, os verbos em segunda pessoa sugerem um interlocutor, alguém que participe a língua não como possibilitador da mesma, mas como acontecência dialógica da entridade que é ser. Ou seja, somos seres-do-entre na medida em que radicalizamos o acontecimento poético-apropriante de viver mortalmente, ambiguamente e circularmente. E é assim que se desenvolve todo o poema, dando voltas numa dinâmica que evidencia a impossibilidade do cerceamento lingüístico em regras ou convenções gramaticais. Não é homem que possui a linguagem, mas, ao contrário, é completamente possuído por ela, manifestando-se na língua. É nesta infinita circularidade poética que o poema vocifera o homem na liminaridade do entre-habitar musical que é a poesia, ou seja, a ação originária e pro-míscua de ser.
A língua é dita no poema de maneira simples e primordial. É necessário somente que estejamos dispostos a ouvi-la e a acolhê-la na medida em que ela se oferece sem artifícios, nua, / irreverente. Com ela, temos uma relação de extrema intimidade, incestuosa. Para cantá-la, antes é necessário que ela esteja em nós. E isto já acontece, uma vez que só falamos porque primeiro somos o próprio canto. Como nos diz o último verso: (...) e tua, a língua não está exterior a nós, mas em plena vigência enquanto algo fundamentalmente nosso. Por isso, devoramo-nos mutuamente na orgia incestuosa da palavra.
[1] “Auscultando não a mim, mas o logos é sábio concordar que tudo é um”. Fragmento 50 de Heráclito.
[2] Mais uma vez, o fragmento 50 de Heráclito.
Referências bibliográficas
ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES E HERÁCLITO. Os pensadores originários. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva Ltda, 2001.
LEMOS, Virgílio de. Negra Azul: retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco, 1944-1963. Maputo: Instituto Camões – Centro Cultural Português, 1999.
PEREIRA, S. J. Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 4ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1969.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática Normativa da língua portuguesa. 34ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
23 de outubro de 2008
Olhos
os olhos sonham a realidade.
As cenas líquidas repousadas em pálpebras dormentes
piscam gotas de orvalho luminoso.
Raptados da claridade do sono,
imagens,
mosaicos,
e
dúvidas
turvam o plasmar do acerto.
Porém,
deitado em nuvens brandas,
o dia se repete sempre novo
e encontra o susto da turbulência.
São dedos, mãos e pés
que se descobrem na repetição dos gestos,
na caridade do surto,
no apelo da queda.
8 de agosto de 2008
Permanência e atualidade da Poética - Revista Tempo Brasileiro (Nº 171)
Acabou de sair o novo número da "Revista Tempo Brasileiro". Nesta edição, temos ensaios de renomados professores, além de pesquisadores que se propõem a pensar as questões pertinentes ao homem em sua constituição humana, mais especificamente, as questões relativas à atualidade da Poética e sua permanência. Neste sentido, o leque de assuntos tratados se mostra bastante abrangente e provocador por viabilizar o pensar sobre aquilo que já se fazia estático em sua formalidade.
Um dos ensaios que compõem este número foi escrito por mim, o intitulado "Poética do teatro - reunião de corpo, terra e mundo". Então, com o intuito de promover o questionamento e dialogar com quem se dispuser a demorar-se neste blog, postarei aqui meu ensaio na íntegra.
Abaixo, então, deixo meu ensaio!
POÉTICA DO TEATRO: REUNIÃO DE TERRA, CORPO E MUNDO
Neste breve ensaio, propomo-nos a pensar o teatro. Isto significa que mais do que se posicionar sobre a dramaturgia, mais do que estabelecer uma conduta epistemológica em que depreenderíamos uma relação entre sujeito e objeto; pensar o teatro é deixá-lo viger no que é enquanto manifestação do atuar. Este atuar é o diálogo do ator com a obra teatral e com o seu lugar de atuação, ou seja, com o palco. Mas o que é este ator? O que é este palco? Diferente do esperado, este texto não compactuará com os jargões do ambiente dramático, tampouco se dará como mais um manual em cujos “corretos procedimentos da representação” se fariam presentes. Não. Este texto é um ensaio que se envereda numa escuta poético-ontológica, portanto, que procura o inaugural do pensamento no que se refere ao teatro. Então, aqui se desenvolverá o caminho do pensar, cujo único compromisso é o percurso que se revelará enquanto nos movermos imersos no questionamento.
Acima, perguntamos o que é o ator e o que é o palco. Contudo, este não é um perguntar que se satisfaz com uma adequada resposta, é um querer saber mais. Em outras palavras, é uma transgressão à acomodação proporcionada pela lógica dos conceitos. Pensaremos, aqui, o ator enquanto corpo, o palco enquanto terra e o teatro enquanto reunião na vigência de um mundo. Dito isto, iniciaremos nosso percurso com o que é mais recorrente na imagem conceitual do teatro: a representação.
Qual é a percepção mais comum que se tem do teatro? Qual a primeira referência que observamos ser corrente no senso comum ao se imaginar a atuação?
Sem esforço algum, a maioria das pessoas concebe: teatro é representação. Ou ainda num afastamento maior, o teatro é o lugar onde a representação ocorre pelas mãos do artista que presenteia o público com o esquecimento do seu ser através de um personagem. Esta última asserção não é de todo desprezível, pois carrega uma ambigüidade que merece a demora do pensamento.
A primeira coisa a ser pensada é a representação. Então, o que é a representação para além do que se pergunta?
Ao atentarmos no que a palavra “representar” é em si, podemos pensar em tal verbo como um trazer consigo, como o caminho que se revela numa referência a uma coisa. Portanto, o representar é um movimento inaugural na medida em que algo é representado no principiar de cada instante. A origem é referenciada no percurso do mostrar-se, uma vez que re-ferência nos diz aquilo que conduz à fonte das fontes; logo, encaminha-nos ao originário. Então, se representar é um movimento que não se extingue em sua inércia, qual é a questão da representação? Como podemos articular a representação como o esquecimento do ser?
Pensar a questão da representação e do esquecimento do ser é, praticamente, se ater à mesma discussão, haja vista uma imbricação evidente em que a razão e o pensamento ocidental elevam a dicotomia como principal ou única via de ação. Portanto, se há dicotomia, há um posicionamento mediante um contexto binário, onde só um dos lados é tido como correto. Neste sentido, se representar é uma tentativa de trazer uma ausência à presença, o problema se dá quando a dimensão d’o que é não é extrapolada. Ou seja, aquilo que é se representa no tamanho do seu mostrar-se. Assim, quando o ser é, deixa o abrigo silencioso do recolhimento a fim de se manifestar naquilo em que se apresentar. Por isso, a representação se reduz à aparência do como é quando medida pela limitação de um mensurar racional ou epistemológico. O ser enquanto possibilidade originária de um mostrar incessante e inaugural é esquecido em detrimento da necessidade de uma configuração estática. Representa-se apenas um símbolo, cujo sentido já se mostra obliterado do seu dizer originário. Se etimologicamente a palavra símbolo vem do grego symbállein, em que sym- se origina do prefixo grego syn (junto, que reúne) e –bolo, do verbo grego bállein, significando: pôr, jogar, lançar; símbolo é aquilo que se lança junto na diversidade do que é único: ente-ser como reunião. Esta reunião se atenua num posicionamento que não dá conta do sentido pleno de reunir, uma vez que o símbolo passa a ser uma presença abstrata. Ou seja, o diálogo entre a origem e o originário é cortado, impossibilitando o acontecimento do reunir.
Com o que foi dito acima, fica-nos claro que o teatro – não como espaço destinado a espetáculos, mas como reunião originária do homem – é visto normalmente em sua superficialidade. O importante, neste sentido, seria uma representação que almeja o entretenimento. Por isso tocamos na questão do esquecimento do ser, uma vez que, em uma representação com fins de entretenimento, o ser não é pensado. Ou seja, apenas se pergunta pelo como é. E o como é figura na dimensão da entidade, na funcionalização de um personagem vazio que se propõe a falar num intervalo temporal que não conduz ao pensamento, ao questionamento.
Se o teatro é reunião, significa que há partes a serem reunidas. Então, que partes são estas? Pensar em “partes” é sinônimo de pensar num retalhamento de um todo em pedaços a serem re-encaixados?
Quanto a estas últimas perguntas, a primeira nos remete ao homem que se move poeticamente na terra que o acolhe como filho. A terra doa o homem e o resguarda na pro-cura originária de sua vida/morte. É neste ciclo que da terra surge o homem como o corpo moldado por Cura, tendo em vista o mito de origem egípcia narrado por Higino que trata da criação do homem. Assim, não nos aprofundando muito, o mito em poucas palavras nos diz que: fingido do barro, Cura lhe moldou o corpo; Júpiter (Zeus) lhe deu o espírito e, ficando como árbitro, Saturno (Cronos) deliberou sobre a controvérsia do nome que tal figura telúrica teria. Já que Cura, Júpiter e Terra (Tellus) queriam se encarregar de tal ação, ficou decidido que teria o nome de Homem, por parecer ter sido feito do “húmus”.
É nesta constituição tríplice (terra/corpo, espírito e nome), porém não tri-partida, que o homem se dá como corpo pleno. Sua plenitude vige na não separação dos três elementos citados. Entretanto, embora tenhamos chamado de “elementos”, estes não são objetificáveis. Entendemos como sentido de união o que se funda na relação da identidade das diferenças do todo de cada parte na conformação da unidade.
Retomando a segunda pergunta acima feita, questionamos sobre o todo como somatório das partes. O homem é o todo também em cada parte, não é uma complementaridade de características ímpares que só se fundam em sua realocação lógica. A diversidade e a diferença habitam o homem enquanto unidade estabelecida na multiplicidade. Por isso, a totalidade de cada parte é em si um universo que desdenha do estabelecimento do pensamento moderno que prevê o homem geometricamente conformado. Isto é, tomando por base a dimensão mais exterior do pensamento matemático-científico, o homem seria racionalmente constituído como configuração orgânica adequado à funcionalização do raciocínio. É geometricamente proporcionado como produto ou somatório do meio a que pertence, daí que se Geometria nos diz, corriqueiramente, a medida da terra, duas coisas deveriam ser investigadas: saber que medida seria esta e saber o que é terra para além de um estabelecimento físico. Pois, certamente, o homem geometricamente conformado não se reduziria à contenção do metro como referencial de uma medida estabelecida pela abstração de espaços reunidos no que se arbitra ser uma escala. Aqui já teríamos, no mínimo, dois problemas: A) Posto que seja segmentado num intervalo contido no espaço arbitrado entre quilômetro e milímetro, qual é o princípio do metro quando extrapolada a escala na qual se insere? B) O que é o medir quando este é decomposto da abstração métrica do somatório e pensado junto com sua origem etimológica: métron? Portanto, o que é isto - métron?
A Geometria é uma via de pensamento que põe o homem em diálogo com o mundo. Logo, é mais uma realização do real manifestada na multiplicidade e ambigüidade do viver, já que nos conduz a pensar qual é a medida (-metria = métron) do habitar do homem na terra (geo- = terra). Não cabe à Geometria meramente a afirmação de uma função enquanto ferramenta que serve ao homem na compreensão das coisas. Ela é em si um mundo que se dá no agir humano enquanto pro-cura originária, isto é, é mais um caminho que afirma o homem na tensão do questionamento, é mais uma possibilidade dentre a infinitude de caminhos que abarca o homem no seu viver. E viver é a radicalização de todos os fins, é a eclosão múltipla de caminhos não-lineares, é a desierarquização do homem como personagem historiográfico que tem por meta apenas a obediência à cronologia metafisicamente estabelecida pela sociedade. Portanto, o homem não é um conjunto retalhado em partes que se totaliza no re-encaixamento das mesmas, mas é a totalidade do todo abrigada em qualquer parte do homem-humano.
A questão da Geometria é pertinente à nossa discussão quando escutamos sua proveniência etimológica: Geo-metria. Geo- nos diz Gaia: mãe-terra, surgimento incessante de vida. Mas que vida? A bio-lógica? Sim, também. Entretanto, bíos enquanto vida de proveniência genética se funda em dzoé: a vida originária. Dzoé vem do verbo grego dzén e significa o próprio surgir e abrir-se para o aberto (CASTRO, 2004: 62). Temos, então, a nascividade, o mostrar-se constante e excessivo que se abre na abertura do aberto, inaugurando a vida (bíos) enquanto novidade sempre a acontecer (dzoé). Dessa maneira, Gaia é doadora do homem, é a terra que o afaga em seu habitar, antecedendo-o para, enfim, reconfortá-lo na culminância de seu tempo metafísico, de sua idade expirada em morte para o assombro da vida como acontecimento poético. Este desdobramento zoogônico do homem nos faz pensar em sua atuação telúrica, portanto, o homem como corpo que atua na terra, uma vez que esta é palco.
O homem é um corpo que se apresenta e, nesta apresentação, atua no palco enquanto terra. A partir do momento em que se propõe a dar vida a uma obra dramática, dá-se por inteiro quando, em vez de fazer uma escolha subjetiva, atende à convocação da arte e se entrega ao operacionalizar de determinada obra: é o atuar na vigência do atendimento ao sincero chamado do desconhecido, do que está por se revelar. O homem/ator não é uma entidade que perambula um texto, que torna em falácias os diálogos de determinada obra ou que gesticula sem se dar conta do “fazer vir” habitante do gesto, quando experienciado em sua radical densidade. Uma obra dramática re-vivida é o renascimento do corpo no canto, na dança, no gesto. Renascido e acolhido no diálogo com a linguagem, o corpo dialogará consigo e com o outro a um só tempo, sem qualquer permissão cronológica, ou seja, acontecerá o sagrado, o ritual do corpo que nasce e renasce a cada instante grávido de instantes. O pacto poético terá vigência na possessão do homem pelo espanto. Admirado, poeticamente inaugurado, o homem age e este agir é o atuar, é a escuta do ser.
Transbordante de luminosidade, o homem atuará. Este atuar é a eclosão do excessivo no homem, é a humanidade aflorando violentamente na dinâmica de recolhimento tensionada no gesto, posto que:
Ao tecer, o corpo se presentifica. Este presentificar reúne no atuar a ambivalência entre fala e escuta e constrói um tecido poético do qual retira sua vestimenta. Em outras palavras, o ator sensível trabalha a dinâmica do entre-atuar quando se abre ao céu num gestual de preenchimento dado na escuta à fala do ser, enfim, à linguagem. Ao mesmo tempo, permite-se ao abraçar telúrico que o resguardará no silêncio da terra, uma vez que o ator só poderá falar se antes estiver entregue ao silêncio. Este é o movimento circular-poético que permite o teatro acontecer originariamente, ou seja, é na sinceridade e na sensibilidade do homem enquanto humano que o atuar se propõe a elevar da ausência a sua aparição.
O corpo-ator tece e é tecido a cada movimento que transcende a rotina da mecanicidade do corpo-estrutura. Este, por sua vez, é trancafiado no molde da representação enquanto entretenimento, calando-se num infinito escuro, na cegueira guiada pela luz racional. O racional apenas dá voltas, isto é, no seu conduzir não há a abertura para o salto que transformará o círculo vicioso do representar moderno no círculo poético que rompe qualquer tipo de enquadramento estilístico. Assim, o corpo se mostra como um organismo carente da manutenção alheia que fixará a rota a ser percorrida. De outro modo, este organismo-estrutura apenas cumprirá o traçado que lhe foi determinado, num percurso insosso, por estar desprovido do sabor da experiência poética do viver.
Se no início deste ensaio falamos no esquecimento do ser quando, na atuação, se prima o representar como personificação do “como é” calado do diálogo com “o que é”, podemos agora pensar em outra dimensão: a lembrança do ser enquanto memória. Ao pensarmos em memória, as primeiras referências que nos vêm são: recordação, reminiscência, enfim, lembrar de algo que já passou. Certamente, a memória não exclui tais ocorrências. Entretanto, esta é uma faceta bem comum e superficial que não dá conta da complexidade da memória quando dialogamos com a concretude dos mitos gregos. Assim sendo, memória é Mnemósine, filha de Céu (Uranos) e Terra (Gaia) e, de sua união com Zeus, nasceram as Musas. Neste sentido, temos na memória o sentido de unidade quando ela se principia na relação entre céu e terra, retrospectivamente, e é doadora da correspondência entre homem e linguagem no horizonte do ser, prospectivamente (Cf. JARDIM, 2005: 126).
A unidade se configurando realidade é a atuação se dando mais do que uma representação metafísica, é toda a complexidade da articulação homem-entre-ente-ser. Isto é, se complexidade é aquilo que se dobra ou flexiona com, então é um desdobramento do ser em cada ente, da obra em cada operacionalizar. Deste modo, da tensão entre céu e terra, o homem-ator cumpre o apropriar-se de seu destino ao ser ungido e iluminado pelo ser, dando-se completamente ao atuar na liberdade da clareira que tanto se ilumina quanto se obscurece, posto que iluminar é conduzir algo para o livre, é conceder vigência (HEIDEGGER, 2006a: 244). Neste sentido, temos um ator sensível, isto é, aquele que se abre às experienciações de possessões divinas; aquele que escuta a obra, dialogando com sua complexidade e se deixando habitar na clareira. Mas, afinal, que clareira é esta? Um espaço aberto na multidão dos espaços? Uma fenda que se alarga na escuridão do “já sabido” enquanto símbolo do raciocínio moderno ocidental?
A cada passo dado, o breu do desconhecido se abre ao caminhar poético do ator. Com isso, vemos que não é um mero somatório de passos transcorridos, mas uma andança vislumbrada no horizonte do ser. Ou seja, se o andar é um mover do poético, então é, antes de mais nada, a “poiesis” se dando enquanto agir do ser do homem no percurso da inaugurabilidade humana. E isto quer dizer que, encharcado pela luz do ser, o homem-humano-corpo entre-vive tanto quanto entre-morre. Viver é um morrer contínuo que se alarga na dimensão do agir e o agir é o morrer deixando a vida acontecer na existência do homem. Daí que, se existir é o ser se doando no que é enquanto homem, temos a manifestação presencial do homem que é posto em cena. Entretanto, o movimento de “pôr em cena” só acontece mediante a disponibilidade de um viver. De outro modo, retomando a andança do homem-ator, à medida que este avança, o avançar eclode um aparecer do que está à sua frente, um iluminar momentâneo que tem a duração do espanto possibilitador do andar (eis a disputa entre terra e mundo, contudo, suspenderemos esta discussão por enquanto). Ao mesmo tempo, o avançar recolhe a escuridão do que se mostra e a devolve ao silêncio do que está prestes a eclodir. Portanto, o avançar é o caminhar entre o que se mostra e o que se obscurece a um só tempo. Só nesta dinâmica experienciada no entre do desvelar e do retrair é que o ator se põe em cena.
O pôr-em-cena é o habitar da clareira no atuar do ator, haja vista ser a clareira não o lugar onde se dá a sucessão da luz e da sombra, mas é o próprio iluminar da luz enquanto recolhimento ao silêncio-escuridão do nada, explodindo no empenho de viver-atuar. Desta forma: “Viver é deixar-se libertar para e na poiesis, no agir que dá sentido a toda ação de viver, pois viver é sempre um empenho de ser” (CASTRO, 2006: 10). O empenho de ser dá ao homem a dimensão do entre quando o mesmo se vislumbra na clareira. Tal vislumbramento é o espanto que retira e dá a luminosidade do atuar, ou seja, a clareira é o que disponibiliza tanto o atuar quanto a cena. Pois é nela que há a convergência de todas as divergências, posto que não seja um estabelecimento racional.
Espantado, o homem-ator dialoga consigo, com a obra e com a linguagem: canta e dança. O canto e a dança não são modalidades artísticas representativas de alguém que faz da arte fonte de renda para sobrevivência, até porque a arte, neste contexto, nada tem a ver com a manifestação da verdade no entre do velamento e desvelamento, mas com a instituição de fonte empregatícia. Logo, a arte, ainda neste contexto referente ao senso comum, seria a generalização das atividades manufaturadas ou industrializadas que têm por fim o lucro financeiro necessário ao sustento de qualquer trabalhador. Por esta via, o canto e a dança seriam apenas duas das diversas modalidades que congregam o mercado de trabalho. Contudo, este não é o foco de nossa discussão. Deixaremos a representação da arte, do canto e da dança como algo circunstancial ou conjuntural e procuraremos, então, nos encaminhar à essência da arte ao dialogarmos com o cantar e o dançar enquanto o agir do homem.
Se a essência do agir é o ser, o homem é uma doação do ser, por isso, por mais que nunca o saiba completamente, o terá sempre consigo. É nesta dinâmica de manifestação ambígua que experienciamos a arte. Esta é o que se dá na medida em que se retrai e neste dar-se-retraindo-se a verdade nos é presentificada. Logo, podemos pensar a arte como o caminho essencial do encontro entre o homem e o humano. O homem é, então, uma doação da arte, dando-se como obra máxima. Nesta perspectiva, o cantar e o dançar habitam o bojo do agir e conjuntam a ruptura de um representar metafísico, ou seja, a representação que apresenta só o que já se mostrou no homem enquanto corpo-ator.
O homem-ator só fala porque já é o próprio cantar; assim como só se movimenta por ter vigência na dança. Então:
O palco é terra. Mais ainda, é a clareira onde se dá a atuação. Tendo em vista que não nos referimos à atuação como execução de uma função dramática de entretenimento, o atuar é a respiração poética do homem. Ou seja, é no entre-inspirar-expirar que o homem-ator se lança na questão que desde sempre já o tomara. Esse lançar-se é, então, o apropriar-se do seu próprio, é dar vigência à plenificação do destino.
Referimo-nos à fala, à travessia e à respiração poéticas. Neste caso, podemos considerar este poético como mero adjetivo? Sem dúvida que não! O poético não é só uma forma de caracterizar atitudes ou nomes, mas é o que possibilita o homem se manifestar em ações intimamente ligadas a terra, já que “Se o palco é terra, nele nos abrigamos e dele nos originamos” (PESSANHA, 2007). Dito isto, observamos que a partir do verbo grego poie/w - que diz “o agir” – temos as palavras “poema”, “poesia” ou “poético”. Logo, essencialmente, todas têm em sua raiz a manifestação do agir, isto é, conduzem-nos à vida como um acontecer inesgotável. Inauguramos e somos incessantemente inaugurados no e pelo tempo e este é a abrangência mais radical do que somos enquanto entre-ser. O tempo é também memória, pois é tudo que foi, é e será; além de se manifestar enquanto clareira na medida em que recolhe a dinâmica de tudo aquilo que se dá ao se retrair.
Falar, atravessar e respirar poeticamente é já um habitar na habitação do palco-terra quando o poeticamente reúne estas três formas de manifestação do entre. Logo, a palavra poeticamente nos conduz à dimensão de um modo de agir poético enquanto doadora de realidades. Neste contexto, o filósofo alemão Martin Heidegger nos esclarece e soma à discussão a articulação entre poesia e terra: A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar (HEIDEGGER, 2006a: 169).
Certamente, o habitar mencionado não se refere à moradia enquanto domicílio, mas suscita o resguardar. Tal verbo significa devolver uma coisa à sua essência. Assim sendo, o homem-ator habita a terra enquanto palco na radicalidade da poiesis. Então, o atuar é a cena que se dá no recolhimento do habitar quando o teatro é, poeticamente, a eclosão da clareira. Em outras palavras, podemos pensar que a clareira doa o palco enquanto terra e resguarda o homem enquanto corpo. Este atua e o faz também num jargão metafísico e, com isso, temos o ator. Na medida em que habita o palco, o homem-ator é essencialmente poético; e isso quer dizer que está aberto ao livre da poesia e todo seu gestual é um recolhimento de dança e canto. O tempo é o tecido que encobre o corpo manifesto enquanto se dá ambiguamente na correspondência ao ser. Da linguagem provém sua fala e esta é o registro do que se perde e aparece no que é dito, quando este o que é dito se vela no silêncio a que tende todo dizer.
É pela ambigüidade do aberto que doa o palco como terra e se abre ao aberto do céu que podemos ter a clareira. A clareira vige na dinâmica de mundo, ou seja, é na inter-relação entre o palco-terra e o homem-corpo-ator que compreendemos o sentido de mundo. Mais ainda, temos nesta indissociação do que seja o teatro, o mundo como doador de realidades. Portanto, está radicado na physis, uma vez que esta é (...) o vigor imperante que produz todos os fenômenos, é o real das realidades (CASTRO, 1982: 109).
Quando, habitualmente, se pensa em mundo, a idéia que surge é a de totalidade, universalidade das coisas. O mundo como um aglomerado de dogmas religiosos (mundo religioso), como convergência do modo de pensar do ocidente (mundo ocidental), como generalização de pessoas (por exemplo, “todo mundo fez tal coisa”) ou mesmo como significação do completo espaço planetário ou como sinônimo de universo (o mundo em que fisicamente vivemos). Entretanto, o mundo ao qual nos dirigimos, tomamos e somos tomados a um só tempo não é este descrito pela metafísica, mas uma experienciação poético-ontológica no pleno vigor da tensão do acontecer. É um mundo no qual se dá o humano do homem e onde o atuar é a disputa terra-mundo que dinamiza a manifestação do palco como lugar da arte vigorando na interpretação e no diálogo do homem com a linguagem. Portanto, o palco-terra é o lugar do sustento misterioso do atuar, ou seja, é sustento no sentido de resguardo por devolver o artístico ao abrigo de sua essência no mesmo instante em que vela o fazer arte. Por isso é misterioso, por não demonstrar completamente este fazer, haja vista que não é um fazer como algo já completado, mas um fazer que se faz fazendo, logo, o fazendo é o não cessar de algo que acontece inesgotavelmente.
O mundo, na dimensão da physis, abarca toda ação e não-ação, todo operar de uma obra que não se exaure em encenações. Cada espetáculo é um novo mundo que se instala como realidade e instaura outras realidades. Então, não há uma perspectiva única do que seja mundo, mas este se dará tantas quantas leituras se realizarem acerca da cena, ou melhor, acerca do diálogo vigente no acontecimento do atuar enquanto relação entre o palco-terra e o homem-corpo-ator.
Se teatro é a reunião do corpo-homem com o palco-terra numa encenação que vigora no aberto da clareira, podemos fazer uma leitura deste acontecimento como mundo. A própria palavra teatro já nos diz uma reunião, ou seja, do grego théatron temos o significado de lugar de reunião (PEREIRA, 1969: 263). Assim sendo, o mundo é a vigência do teatro enquanto reunião essencial do homem com sua origem. É enquanto terra se doando que temos o homem como obra de arte proveniente da disputa entre terra e mundo. Esta disputa não significa discórdia, mas nos indica uma elevação para além de si. Na disputa, cada um se apropria do seu próprio ao se encaminhar para o originário. Este encaminhar é o entre-caminho que aponta para o velar-se no ser enquanto doador de todo ente. É uma relação indissociável em que terra e mundo se dão diferentemente, porém não separadamente. O mundo é a abertura para que a terra apareça e este aparecer é a eclosão do mundo, ou seja,
Uma outra possibilidade de leitura se dá na percepção do que a palavra théatron traz em si mesma, ou seja, théa significa a oferta de um mostrar-se, o delineamento daquilo que se apresenta num presentear (Cf. HEIDEGGER, 2006a: 45). Dito isto, podemos meditar com o que, em paralelo com reunião, o teatro seja enquanto doador de uma fisionomia. Em outras palavras, é o que viabiliza a conjunção do que se propõe a reunir no vigor do que se diferencia por traços singulares.
A fisionomia nos informa o nomear da physis no incessante presentear da atuação, posto que a excessividade poética do real em realidades desdobradas no aparecer do ator vislumbra o não-visto na visibilidade presencial do estar em cena. Mas, o que nos é ofertado neste aparecer? O que é que na presença se oculta para se recolher no mistério do não-encenado?
Possivelmente, este movimento do que se oculta na presença configura a geratriz do que no gestual do ator se desdobra o diálogo com o sagrado, o ritual de consagração do corpo físico em poético, uma vez que acontece o agir profundo e originário da physis. Este é o instante sublime de decomposição da materialidade metafísica no movimento inaugural da atuação. O homem se manifesta na fronteira genético-poética, isto é, insurge no limiar do físico para uma viagem catabática à sua essência. Neste instante inefável, há a demora do princípio como constituição de um principiar que, em seu percurso, conduz o homem à sua humanidade. Eis a dinâmica da escuta ao silêncio da terra: o palco se abre no vazio para a iluminação do atuar, na medida em que este atuar se dá na encruzilhada entre a experiência primeira de um nascimento e o atravessamento da morte enquanto consumação poético-apropriante.
Uma peça de teatro enquanto realização de um operar nada tem a ver com a propaganda disseminada pelas vias midiáticas, mas sim com a sacralização do homem-humano em correspondência com o ser da obra. No percurso em que tal homem pergunta por sua essência e se lança na pro-cura de sua cura, acontece a consumação. Então, regido pela poesia enquanto agir originário (poiesis), o ator se movimenta e age poeticamente, isto é, avulta a ressonância das vozes que o tomam numa ruptura com toda a logicidade racional. Dá-se o homem-ator destinalmente na alegria do vir-a-ser incessante, na possessão pelo entusiasmo: o taumadzein.
A Poética do teatro retira do teatral a simploriedade da seqüência mecânica de ações para se lançar na profundidade do incomensurável. Assim sendo, dá ao teatro o seu próprio na proporção poética do não-agir, do não-visível, do não-ser. Meditar a Poética do teatro é repousar no desassossego do que nunca se estagna, pois Poética diz respeito às questões que antecedem e atravessam o homem da mesma maneira que ela mesma enquanto questão é originariamente uma tomada de postura não realizada pelo homem, mas em correspondência com ele. Assim, não é mais uma configuração conceitual em que se estabelece um paradigma de pensamento, mas a ruptura da marcha do caracterizável, do definível circunscrito numa área delimitada por sua fronteira. Demorar-se na Poética em diálogo com o teatro é deixar vir o acontecimento do paradoxo, na medida em que, na permanência do convívio com as diversas áreas artísticas, o teatro se funda original e originariamente.
O teatro pensado poeticamente se manifesta no deixar-se tomar pelo vigor da poiesis, dando-se como experienciação única do acontecer do teatral e da via intersticial de consumação do humano do homem. Dissemos intersticial exatamente porque a Poética do teatro é a vigência do paradoxo no habitar do questionamento que desvanece a estaticidade da atribuição conceitual enquanto paradigma estabelecido. Assim, é somente com esta atenção que poderemos auscultar o teatro na dinâmica de seu operar como o que reúne e faz ver com o corpo em plenitude de sentido.
O palco enquanto terra é o resguardo do corpo e da própria disputa terra-mundo que pede o silêncio. Um silêncio diferente de um calar-se, de um emudecimento criativo. Pelo contrário, pede-se o silêncio grávido de todas as vozes, de todo cantar. Um silêncio que indica o repouso não como movimento que cessa, mas como auge de todo um movimentar que, por sua excessividade, tende à quietude originária. O silêncio do corpo que dança e, por isso, mundifica-se. Afinal, o humano é mundo e eclode no abrir-se à luz da verdade. O homem é dança e por isso se movimenta, podendo atuar. O teatro é o humano, é o mundo mundificando enquanto arte. Daí questionamos: o que é isto, a arte? Eis um questionamento que nos lança no horizonte de nossa questão maior: o que somos enquanto entre-ser no indizível da arte?
Referências bibliográficas
CALFA, Maria Ignez de Souza. Interdisciplinaridade e Dança. In: Revista Tempo Brasileiro. Nº 164. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. [p. 65-79]
CASTRO, Manuel Antônio de. O Acontecer Poético – A História Literária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
___________. Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Revista Tempo Brasileiro. Nº 164. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. [p. 7-36].
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___________. A poesia e o Mito de Cura. Disponível em http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/artigos/art038.htm Visitado em 16/09/2007.
___________. A leitura e o uso de dicionários. Disponível em http://travessiapoetica.blogspot.com/2006/08/interpretao-de-textos-e-o-uso-de_10.html Visitado em 30/08/2007.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006a.
___________. A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. Mimeo. 2006b.
JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
PEREIRA, S. J. Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 4ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1969.
PESSANHA, Fábio Santana. O palco em três diálogos: a terra, o habitar e o sagrado. In: Revista Garrafa. Nº 13, vol. II [abril – junho de 2007]. Revista eletrônica do departamento de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/revista_garrafa13v2.html
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
4 de agosto de 2008
Um pouco de música brasileira em nosso blog!
É só clicar no link abaixo e assistir ao curta "Álbum de Música"!
ÁLBUM DE MÚSICA
22 de junho de 2008
Paiol Cultural no JB Online!!
Paiol Cultural reúne na UFF diferentes artistas no dia 20
JB Online
NITERÓI - O próximo dia 20 de junho será marcado pela terceira edição do Paiol Cultural. Ao unir dança, teatro, música, cinema, exposições e poesia, o Paiol busca integrar todas as artes, permitindo ao público comunicar-se com elas e, da mesma forma, divulgar a produção das cidades de Niterói e São Gonçalo.
Assim como as edições anteriores, que ocorreram em 16 de dezembro de 2007 e 30 de março deste ano, o Paiol contará novamente com a presença da Banda Mãos Calejadas, do grupo Os Ninguém, do comediante João Sena, do poeta Anísio Aguilar, dentre outros artistas. Também continua nesta edição a parceria da Editora da Universidade Federal Fluminense (EdUFF) com o evento.
Entre as revelações que serão apresentadas estão os poetas Fábio Santana e Larissa Mitrof. Porém, a grande novidade do terceiro Paiol será a inclusão de uma forma de expressão que não esteve presente nas edições anteriores: o cinema, representado pela apresentação de diversos curtas metragens.
O Paiol Cultural começará às 19 horas na Galeria de Artes do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF), bloco O, no campus Gragoatá da Universidade Federal Fluminense (UFF). O evento é bimestral e a entrada é franca.
Serviço:
Dia: 20 de junho
Hora: a partir das 19h
Onde: Galeria de Artes do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF), bloco O, campus Gragoatá da UFF. Rua Visconde do Rio Branco, s/nº, São Domingos, Niterói.
20 de maio de 2008
Arte
Desnudada de palavras formais, da forma (“fôrma”) e do conteúdo: a arte. Não a minha, nem a do teórico: apenas a arte.
E mais, arte plenamente despida, inclusive de determinações: o artigo.
Doação do que sou no mundo, sendo o próprio mundo; dou-me arte e não artisticamente. Pois, se arte for caminho ou trilha, antes, é todo: floresta.
Então só posso pensar que arte não é digna de metafísico raciocínio, mas sim de fruição: o rio. Rio este que busca, que procura seu destino, o ato derradeiro no mar: o homem: a morte.
4 de fevereiro de 2008
O Mito de Thoth* e alguns apontamentos
Do livro Fedro, de Platão, destacaremos este diálogo entre Sócrates e Fedro acerca da escrita e seu mito de criação, inseridos na rede poética do pensamento originário. De certo, qualquer discussão não dará conta da dimensão que o mito traz em si. Mas, como a intenção não é esgotar a discussão numa atitude responsivo-elucidativa, faremos o percurso do pensamento que questiona, que se lança na obscuridade abismal do que se resguarda na antecedência de um questionamento. Dito isto, vamos ao mito:
Sócrates – Por acaso sabes quais são as condições necessárias para que, já os discursos, já as acções sejam agradáveis aos deuses?
Fedro – Não, e tu, sabes!
Sócrates – Pelo menos, conheço uma lenda que nos foi transmitida pela tradição antiga. Se é verdadeira ou falsa, não sei, mas, se por nós mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?
Fedro – Que pergunta! Vamos, conta-me essa história que dizes ter ouvido!
Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egipto houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipto era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egipto, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más. Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. _ “Oh Thoth, mesmo incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por conseqüência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!”.
Fedro - Com que facilidade inventas, caro Sócrates, histórias egípcias e de outras terras, quando isso te convém!
Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhe parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!
Fedro – Tens razão para me castigar com essas palmatoadas, mas no que respeita a escrita, parece-me que o tebano tinha razão.
Sócrates – De onde se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo, não entendendo o aviso de Ámon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?
Fedro – Perfeitamente!
Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos, mas se alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.
*Texto transcrito do livro “PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986: 120-
Certamente, esta passagem nos reporta a algumas questões, como memória, diálogo, sagrado e claro, escrita. Mas isso é o obvio. O que nos interessa neste perguntar pelo que não se vê de imediato é a apreensão do que se vela no silêncio do não-dito. Observemos o seguinte: o texto já se mostra como um diálogo, portanto, há alguém que fala e outro que ouve. Estes alternam suas posições, e o que fala também escuta assim que aquele que escuta passa a falar. Eis o círculo poético da comunicação, não como a troca de mensagens codificadas como já nos diziam os estruturalistas, como Roman Jakobson por exemplo, mas como vigor do que é e não é, do que é fala e silêncio simultaneamente, uma vez que todo dizer tem seu originário no silêncio. Enquanto algo é dito, seu silêncio é velado e, quando esta fala se cala, o dizer se vela no desvelo do silêncio.
Uma questão que antecede o que fora agora mencionado é que, antes de diálogo, trata-se de um mito, o mito de Thoth. Sendo assim, o que é isto - o mito?
O mito não tem a ver com as falácias contemporâneas que o defendem como histórias antigas, versando na ambiência retórica do que é fictício, imaginação ou falsidade. Ficção num sentido que não atende seu sentido originário. Este sentido originário nos dá o fingere, o fingir como moldar, como realização do real na disputa terra-mundo, do fazer poético como agir da physis. A ficção a que normalmente se tem acesso é aquela que diz um fingir como “faz de conta”, como o que não é real. Mas, se somos doações do real, o que não é real? Este questionamento suspendemos por enquanto. O mito é o acontecimento do sagrado, daí que:
(...) todos os mitos e todas as obras de arte se fundam numa experienciação do sagrado na medida em que este doa o genos de onde surgem os seus membros a partir de uma moira, ou seja, aquele quinhão (destino) que é inerente a cada um dentro do genos. Então o humano vai ser esse destino que une os seres humanos a um genos como doação do sagrado. É o que nos ensinam os mitos (CASTRO, 2007).
Tendo em vista estas palavras, observamos a importância do mito na constituição do humano como busca por sua essência, ou seja, como aquele que pro-cura por seu originário. Assim posta a questão, temos que o mito nos antecede e nos contém, assim como conosco dialoga. E do que tratam Sócrates e Fedro neste trecho? Sim, da escrita. E o que é isto, a escrita? Escrever não significa mera codificação do pensamento em símbolos que se fixam pelo ato humano de escrever. A escrita nos diz também a realização do real enquanto faceta que se apresenta independente do código que se faz uso. Não importa o idioma ou o mecanismo com que se realizará o escrever, mas o próprio ato como o verbo que doa sentido e ação poéticos (poiesis) na tessitura do interstício entre o vazio e a deveniência do que será esculpido no tempo enquanto palavra, enquanto tecido que delineia a entridade dos espaços vazios com as linhas de tal rede textual.
Num dado momento do mito, quando Tamuz nos diz que o possível problema acarretado com a escrita seria a perda da força da memória, ele nos traz a questão da verdade em articulação com a memória. Esta última, num sentido imediato, nos leva às reminiscências, ao rememorar como ação de trazer ao presente um fato do passado como representação. Contudo, numa leitura mais aprofundada, observamos que, pensando a memória como a mãe das musas (Mnemósine), temos a constituição do que foi, é e será. Então, do tempo além da linearidade cronológica, posto que:
a memória, no mínimo, passa a ser condição de possibilidade da constituição de um tempo que se conforma para além de uma noção de tempo mais imediata, mais comprometida com um plano meramente ôntico (JARDIM, 2005: 127).
Memória e verdade se relacionam muito intimamente, já que a memória revela a verdade por fazer eclodir no tempo a ambigüidade da verdade no plano do verdadeiro. Noutras palavras, por evidenciar o quanto a verdade se dá num movimento de velamento e desvelamento na simultaneidade do tempo como deveniência imemorial da memória. A princípio, poderíamos entender que a verdade seria a conformação entre o enunciado e o que se enuncia, ou seja, um processo de adequação entre a descrição de um dado objeto com sua aparência, por exemplo. Entretanto, mais do que isso, Sócrates nos diz a verdade como aquilo que se desvela ao se velar: alétheia. Percebemos isso na passagem em que se faz comparação entre a pintura e o discurso:
As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos, mas se alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa.
Dizer a mesma coisa não significa dizer o mesmo. As “mesmas coisas” são formas diferenciadas de manifestação do “mesmo”. E, segundo percebemos no fragmento aqui trazido, conforme for o tipo de interrogação, poderemos ter outras maneiras de apreender o discurso. Eis o questionar que vigerá na singularidade do perguntar que surpreende o mero conhecer por acúmulo informacional, isto é, o diálogo realizado por Sócrates e Fedro também nos questiona, convocando-nos a interagir enquanto leitores na abertura da clareira de todo questionar, de vigência do diálogo enquanto diá-logo (o que nos conduz e nos faz habitar no “entre” - diá - da linguagem - logos -, na essência da originariedade do pensamento). Então, o “manter-se silencioso” das pinturas e dos discursos é, exatamente, a possibilidade da infinitude do diálogo na manifestação no horizonte do porvir. Não se trata do silêncio como ausência sonora, mas como excessividade do nada originante, do silêncio proveniente de todo dizer.
A questão da escrita se insere na possibilidade infinita da realização da leitura que pede não só pelo que está presentificado na concreção textual, mas pelo que se ausenta na presença do silêncio. O silêncio, este não-dizer originante, está totalmente entregue no que está dito, pois para que se diga algo, é necessário que o silêncio se vele. Neste velamento, há a possibilidade do que se desvela enquanto palavra (escrita ou não) aparecer enquanto tessitura verbal, enquanto as entrelinhas de todo texto.
O Mito de Thoth, portanto, nos relaciona com o sagrado mítico, com o diálogo nascido no silêncio da fala exposto na concrescência do percurso histórico. Então, mais do que uma conformação, mais do que uma aceitação do sentido apenas adjetival do que seja o verdadeiro, deparamo-nos com o diálogo que dialoga a verdade como ação e retraimento. Conforme já dito acima, como o desvelamento do que antes se velara e continuará a se desvelar velando-se continuamente neste movimento circular-poético. Porém, certamente, as questões deste mito, assim como do diálogo integral (aqui traduzido por Pinharanda Gomes) realizado entre Sócrates e Fedro não se esgotaram e nem se esgotarão. Quanto mais leituras forem feitas, mais questões serão percebidas. Esta percepção tem a ver com a singularidade de cada leitor, de cada leitura realizada não como mera decodificação de códigos, mas como postura de escuta. Assim, de um deixar acontecer daquilo que se obscurece no mistério da escrita como ambiência do sagrado e da verdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Manuel Antônio de. Representação e arte. Disponível em http://travessiapoetica.blogspot.com/2007/05/representao-e-arte-prof.html
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva Ltda, 2001.
JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005.
PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
31 de janeiro de 2008
Virgílio de Lemos na singularidade ambígua do entre-ser
Virgílio de Lemos é o poeta moçambicano em cuja insularidade avultam seus escritos. O sagrado se mostra em disputa com o entre-caminhar do interstício velado na entridade vida-morte.
Comumente, sua questão maior é envolta pelo que se chama heteronímia, ou seja, o fato de se cindir em outros poetas que repercutem seu diálogo com o silêncio do poetar pensante. Assim, temos Duarte Galvão, Lee-Li Yang e Bruno dos Reis.
Ao primeiro, Duarte Galvão, prefiro não reconhecê-lo como mero heterônimo de um criador ortônimo, dando-o reconhecimento pela inaugurabilidade de sua presença. Sua densidade poético-ontológica muito se evidencia; seu operar poético não se restringe às questões sociais. Este poeta integra a universalidade do mundo enquanto manifestação inaugural do tempo, portanto, como história. Seu teor poético-filosófico se instaura numa moçambicanidade que floresce num habitar mundificante do extra-ordinário:
METAMORFOSE*
(Ao Zé Craveirinha, Rui Knopfli e Américo Nunes)
Larvas de vulcão
ionizados plasmas
mamíferos corrosivos
de erosão
cabeças de heresia
pernas de verbos
e línguas de audácia
ensaiam
gestos mágicos
almofadados
de possessão
e tragédia.
Isolado
um berimbau de penas
- memora musical -
perturba
voraz
teu reino submarino
tua música
de segredos.
Primavera de coragem
margem
de desencanto.
(Duarte Galvão, Lourenço Marques, 1962-63. Figura no livro inédito “Entre Muros” e no “Eroticus Moçambicanos”, publicado no Rio de Janeiro com organização da Profª Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco)
Em se tratando da macaense Lee-Li Yang, temos uma orgíaca relação em que mar e terra se fundem no agir poético de versos que clamam um acontecimento mnemônico. Seu corpo vigora na acontecência do diálogo com a ausência presentificada no poetizar, isto é, sempre em um duplo, Lee-Li con-voca Duarte Galvão. Noutras palavras, em si, sua poeticidade se manifesta dialogalmente, cuja dor de amar se dá no enlace com a ausência de Duarte Galvão e a presença do mar corporificado, como vemos no seguinte poema:
QUATUOR DO MEU INDICO
Para Reinaldo Ferreira, Manuela Arraiano, Pi Matos, Marcos Leal e Virgilio de Lemos.
1.
é nua sobre a cama que te espero noite e
enquanto o diabo me nao liberte
nao me perca e se perca –
meu fragil coraçao de anjo e bruxa
reclama a quatro patas teu vendaval
de caricias e loucuras teus
clarins de guerra.
2.
Nem estou inquieta nem morro de tédio
nenhum estuario de obsessoes
me inspira
nesta minha perseguiçao do que nao sei
mas adivinho
caudais das chuvas de fevereiro e
março erros e omissoes amores e
desilusoes.
3.
Na furia da paixao estrangulo
o louva-a-deus sonambulo entre
minhas coxas em busca do tempo
perdido e solitaria radiosa e
bela deixo que esta minha
simplicidade no poema
me supreenda.
Que outros vestigios que outros
sinais da minha elegancia
macaense laurentina meio inglesa
osmose entre uma mulher e
um mar-so-poesia.
O terceiro poeta é Bruno dos Reis. Embora não tenha livro publicado, seus escritos se encontram perdidos em publicações avulsas ou ainda guardadas no ineditismo. Entretanto, tenho o privilégio trazer ao conhecimento dos leitores um haicai (haiku) que nos coloca diante de um pensador ciente da entridade que é estar vivo, na quase submissão ao inesperado do acontecer:
Tua sensibilidade e teus impulsos sao quartos vazios
onde inda nao entraste : osmose entre amor e morte !
Foge a regras e astucias : simples e polido teu diamante!
Bruno dos reis 1956 Durban pedaços de papel !
Percebemos um poeta-pensador que singulariza sua diferença na identidade que é a permanência do ser no estar-sendo. Não indo, neste momento, tão a fundo em sua poética, temos o suficiente para podermos observar na imagem-questão do diamante a experiência daquele que pensa e se lança no não-saber, proveniência de todo saber. Diamante enquanto palavra é composto pelo prefixo grego diá-, que significa entre e por -mante, vindo do grego mántis, significando aquele que advinha, que profetisa. Dito isto, temos que a imagem-questão do diamante nos revela aquele que pensa radicalmente imerso no velamento do que se desvela, na medida em que se entrega ao não-saber, ao vazio, ao nada enquanto originários de sentido, enquanto lógos, linguagem.
Este pequeno texto é apenas parte de um estudo que venho desenvolvendo acerca da poética de Virgílio de Lemos. Que, enquanto ele-mesmo, também profetisa no sentido cosmogônico desta palavra. Isto é, pondo-se na aurora do viver, se re-configura a cada verso que dinamiza as entre-vias do caminhar poético, uma vez que re-configurar é estar junto (-con-) na figuração enquanto fingere (-figurar, dar figura a partir da terra enquanto doadora do que se molda originariamente) da coisa que se põe (re-, do latim res):
NO DELÍRIO DA UTOPIA (forma de interrogação)
1.
Eu, Virgilio, nao serei o unico
Poeta
A demitir-me da utopia:
Dela nao prescindo!
Meu desafio horas que sao vida
Na fugosidade de acordados
Sonhos.
Nao serei Kafka Cavafy nem Pessoa
E Drumond, nem mesmo
Rimbaud
Nao serei o unico poeta que
Se interroga, desorientado, sou e
Serei Orientes no entardecer
Vampirizando a noite
Volupia da melancolia
Alegorizando savanas, cidades e
fundos do mar!
2.
Almas
Do vazio e do absurdo,
jovens kamikazes
embriagados por mil e uma noites,
religiosos euforizantes
cristos crucificadas almas
assexuados profetas
do crime sem horizontes
nem limites.
3.
Luz cega da noite
Mais branca que a alma
Sem pernas e sem braços
Mais branca que
fronteiras sem muros,
Cristos do absurdo
Obscuros cerebros
Do Nada
nodoas clandestinas
na grafia dos quartos sem luz
nem sol,
nas parabolas e lendas de
nossas avos
noite adiante
à luz da lua e à luz
das velas
quando era a mùsica
do silêncio
que nos embalava
o primeiro sonho !
4..
Novos kamikazes anjos
no delirio da utopia
sem morada utopia
musical, farsa
de absurdos no fascinio
da morte !
Inocentes estilhaçados
nos campos de arroz
nos bairros da lata
onde vivem os que sofrem miséria
Silencio das revoltas sem nome
Que negam a mortifera loucura
Dos fundamentalismos
Tenham as côres
Que tiverem.
Vozes
Na transformaçao dos limites
Avidos silencios que se vestem
de gritos inchados de solidao e
tragedia.
Delatores e déspostas
Se dao as maos
Nos arranjos que o medo
autoriza
Sem lugar para almas puras
E sublimes.
No riso da noite, anonima
a solidao é
Um kamikaze no delirio
Do seu sonho!
Raros Orpheus buscam
Nos escombros
Enigmas: misterios e
Magias!
A musica é a alma
Do desejo
Que em teu corpo escreve
Suas primeiras notas!
Sangue e alma talvez premissa
adiada de Whitman e
Garcia Lorca!
Virgilio de Lemos Napoles / Procida
(Para Marco Luchesi, Livia Apa, Jessica Folconi, Elsa Morante)
Enfim, este texto é apenas o prenúncio de um estudo ao qual me dedicarei num caminho fundamentalmente hermenêutico. Nas leituras que seguirão, a interpretação será o movimento que aguardará o thaumádzein, ou seja, o espanto com o qual me lançarei em diálogo com a originariedade do pensamento grego. Assim, a travessia se dará na simultaneidade do leitor-autor de uma poesia densamente concretizada na e pela linguagem. Esta como doadora da manifestatividade de entes da poíesis, no fulgor do agir vislumbrado nas pausas e entrelinhas de cada verso.
*Todos os poemas citados respeitarão a escrita e pontuação utilizada pelos poetas mencionados.