Virgílio de Lemos é o poeta moçambicano em cuja insularidade avultam seus escritos. O sagrado se mostra em disputa com o entre-caminhar do interstício velado na entridade vida-morte.
Comumente, sua questão maior é envolta pelo que se chama heteronímia, ou seja, o fato de se cindir em outros poetas que repercutem seu diálogo com o silêncio do poetar pensante. Assim, temos Duarte Galvão, Lee-Li Yang e Bruno dos Reis.
Ao primeiro, Duarte Galvão, prefiro não reconhecê-lo como mero heterônimo de um criador ortônimo, dando-o reconhecimento pela inaugurabilidade de sua presença. Sua densidade poético-ontológica muito se evidencia; seu operar poético não se restringe às questões sociais. Este poeta integra a universalidade do mundo enquanto manifestação inaugural do tempo, portanto, como história. Seu teor poético-filosófico se instaura numa moçambicanidade que floresce num habitar mundificante do extra-ordinário:
METAMORFOSE*
(Ao Zé Craveirinha, Rui Knopfli e Américo Nunes)
Larvas de vulcão
ionizados plasmas
mamíferos corrosivos
de erosão
cabeças de heresia
pernas de verbos
e línguas de audácia
ensaiam
gestos mágicos
almofadados
de possessão
e tragédia.
Isolado
um berimbau de penas
- memora musical -
perturba
voraz
teu reino submarino
tua música
de segredos.
Primavera de coragem
margem
de desencanto.
(Duarte Galvão, Lourenço Marques, 1962-63. Figura no livro inédito “Entre Muros” e no “Eroticus Moçambicanos”, publicado no Rio de Janeiro com organização da Profª Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco)
Em se tratando da macaense Lee-Li Yang, temos uma orgíaca relação em que mar e terra se fundem no agir poético de versos que clamam um acontecimento mnemônico. Seu corpo vigora na acontecência do diálogo com a ausência presentificada no poetizar, isto é, sempre em um duplo, Lee-Li con-voca Duarte Galvão. Noutras palavras, em si, sua poeticidade se manifesta dialogalmente, cuja dor de amar se dá no enlace com a ausência de Duarte Galvão e a presença do mar corporificado, como vemos no seguinte poema:
QUATUOR DO MEU INDICO
Para Reinaldo Ferreira, Manuela Arraiano, Pi Matos, Marcos Leal e Virgilio de Lemos.
1.
é nua sobre a cama que te espero noite e
enquanto o diabo me nao liberte
nao me perca e se perca –
meu fragil coraçao de anjo e bruxa
reclama a quatro patas teu vendaval
de caricias e loucuras teus
clarins de guerra.
2.
Nem estou inquieta nem morro de tédio
nenhum estuario de obsessoes
me inspira
nesta minha perseguiçao do que nao sei
mas adivinho
caudais das chuvas de fevereiro e
março erros e omissoes amores e
desilusoes.
3.
Na furia da paixao estrangulo
o louva-a-deus sonambulo entre
minhas coxas em busca do tempo
perdido e solitaria radiosa e
bela deixo que esta minha
simplicidade no poema
me supreenda.
Que outros vestigios que outros
sinais da minha elegancia
macaense laurentina meio inglesa
osmose entre uma mulher e
um mar-so-poesia.
O terceiro poeta é Bruno dos Reis. Embora não tenha livro publicado, seus escritos se encontram perdidos em publicações avulsas ou ainda guardadas no ineditismo. Entretanto, tenho o privilégio trazer ao conhecimento dos leitores um haicai (haiku) que nos coloca diante de um pensador ciente da entridade que é estar vivo, na quase submissão ao inesperado do acontecer:
Tua sensibilidade e teus impulsos sao quartos vazios
onde inda nao entraste : osmose entre amor e morte !
Foge a regras e astucias : simples e polido teu diamante!
Bruno dos reis 1956 Durban pedaços de papel !
Percebemos um poeta-pensador que singulariza sua diferença na identidade que é a permanência do ser no estar-sendo. Não indo, neste momento, tão a fundo em sua poética, temos o suficiente para podermos observar na imagem-questão do diamante a experiência daquele que pensa e se lança no não-saber, proveniência de todo saber. Diamante enquanto palavra é composto pelo prefixo grego diá-, que significa entre e por -mante, vindo do grego mántis, significando aquele que advinha, que profetisa. Dito isto, temos que a imagem-questão do diamante nos revela aquele que pensa radicalmente imerso no velamento do que se desvela, na medida em que se entrega ao não-saber, ao vazio, ao nada enquanto originários de sentido, enquanto lógos, linguagem.
Este pequeno texto é apenas parte de um estudo que venho desenvolvendo acerca da poética de Virgílio de Lemos. Que, enquanto ele-mesmo, também profetisa no sentido cosmogônico desta palavra. Isto é, pondo-se na aurora do viver, se re-configura a cada verso que dinamiza as entre-vias do caminhar poético, uma vez que re-configurar é estar junto (-con-) na figuração enquanto fingere (-figurar, dar figura a partir da terra enquanto doadora do que se molda originariamente) da coisa que se põe (re-, do latim res):
NO DELÍRIO DA UTOPIA (forma de interrogação)
1.
Eu, Virgilio, nao serei o unico
Poeta
A demitir-me da utopia:
Dela nao prescindo!
Meu desafio horas que sao vida
Na fugosidade de acordados
Sonhos.
Nao serei Kafka Cavafy nem Pessoa
E Drumond, nem mesmo
Rimbaud
Nao serei o unico poeta que
Se interroga, desorientado, sou e
Serei Orientes no entardecer
Vampirizando a noite
Volupia da melancolia
Alegorizando savanas, cidades e
fundos do mar!
2.
Almas
Do vazio e do absurdo,
jovens kamikazes
embriagados por mil e uma noites,
religiosos euforizantes
cristos crucificadas almas
assexuados profetas
do crime sem horizontes
nem limites.
3.
Luz cega da noite
Mais branca que a alma
Sem pernas e sem braços
Mais branca que
fronteiras sem muros,
Cristos do absurdo
Obscuros cerebros
Do Nada
nodoas clandestinas
na grafia dos quartos sem luz
nem sol,
nas parabolas e lendas de
nossas avos
noite adiante
à luz da lua e à luz
das velas
quando era a mùsica
do silêncio
que nos embalava
o primeiro sonho !
4..
Novos kamikazes anjos
no delirio da utopia
sem morada utopia
musical, farsa
de absurdos no fascinio
da morte !
Inocentes estilhaçados
nos campos de arroz
nos bairros da lata
onde vivem os que sofrem miséria
Silencio das revoltas sem nome
Que negam a mortifera loucura
Dos fundamentalismos
Tenham as côres
Que tiverem.
Vozes
Na transformaçao dos limites
Avidos silencios que se vestem
de gritos inchados de solidao e
tragedia.
Delatores e déspostas
Se dao as maos
Nos arranjos que o medo
autoriza
Sem lugar para almas puras
E sublimes.
No riso da noite, anonima
a solidao é
Um kamikaze no delirio
Do seu sonho!
Raros Orpheus buscam
Nos escombros
Enigmas: misterios e
Magias!
A musica é a alma
Do desejo
Que em teu corpo escreve
Suas primeiras notas!
Sangue e alma talvez premissa
adiada de Whitman e
Garcia Lorca!
Virgilio de Lemos Napoles / Procida
(Para Marco Luchesi, Livia Apa, Jessica Folconi, Elsa Morante)
Enfim, este texto é apenas o prenúncio de um estudo ao qual me dedicarei num caminho fundamentalmente hermenêutico. Nas leituras que seguirão, a interpretação será o movimento que aguardará o thaumádzein, ou seja, o espanto com o qual me lançarei em diálogo com a originariedade do pensamento grego. Assim, a travessia se dará na simultaneidade do leitor-autor de uma poesia densamente concretizada na e pela linguagem. Esta como doadora da manifestatividade de entes da poíesis, no fulgor do agir vislumbrado nas pausas e entrelinhas de cada verso.
*Todos os poemas citados respeitarão a escrita e pontuação utilizada pelos poetas mencionados.
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