VEREIS QUE O POEMA CRESCE INDEPENDENTE
Vereis que o poema cresce independente
E tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
Algas e peixes lívidos sem dentes,
Veleiros mortos, coisas imprecisas,
Coisas neutras de aspecto suficiente
A evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades
Entre as noites e os dias, entre as vagas
E as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer poema é talvez essas metades:
Essas indecisões das coisas vagas
Que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
(Jorge de Lima. Livro de sonetos, 1949)
Interpretação:
Podemos observar que este poema se faz presente mediante dois movimentos que prescindem de limitação, posto que suas fronteiras se dissolvem, impossibilitando-nos de apontar categoricamente onde termina um para se iniciar outro. Entretanto, como horizonte desta interpretação, adotaremos um marco que delimitará nosso percurso sem, contudo, fazer-se absoluto.
Da primeira estrofe até a metade da segunda, o primeiro movimento nos é revelado como uma “conversa” com os leitores, na medida em que se diz: Vereis que o poema cresce (...). O segundo movimento se inicia quando vemos um verbo imperativo na metade da segunda estrofe: Parai sombras (...). A partir de então, estes dois movimentos se mesclarão numa atmosfera de imprecisão percebida tanto pela alteração do modo verbal quanto pelo ritmo semântico que os versos expressarão.
Percorrendo o primeiro movimento do poema, em seu verso inicial observamos dois verbos primordiais para o desenvolvimento da obra em questão: ver (Vereis – v.1) e crescer (cresce – v.1). O “ver” projeta no “crescer” a dimensão do porvir, indicando uma subordinação ao futuro. Tal articulação é possibilitada pela conjunção integrante que (v.1) onde, como o nome já diz, traz à união aquilo que, a princípio, não compartilha de uma unidade, mas que passa a integrar, neste sentido, um acontecimento à presentificação e ao mostrar-se.
O poema, como aquele que cresce imerso no tempo de experienciação, dimensionaliza-se em dois adjetivos que, no contexto do poema, mostram-se adverbializados: independente (v.1) e tirânico (v.2). Tendo em vista essa possibilidade dual, porém não dicotômica que se espraia por todo o poema, o mesmo se desenvolve ambiguamente ao congregar uma liberdade que se radicaliza no desprendimento de um agente, de um sujeito que o faça trilhar um percurso obediente. Assim, a independência e a tirania comunicam a imprecisão de uma certeza pela qual já se saberia um destino certo.
Considerando que crescer é se apropriar da verdade enquanto ação de desvelar o que se ocultara, o poema se move entre imprecisões. Esta idéia é o centro do mesmo, quando a imprecisão indica o posicionamento num entre-lugar, no cerne de um andamento que não deixa o poema se estagnar como objeto, como resultado de uma fórmula versificante; posto que a imprecisão é a negação de uma medida ao entendermos “precisar” como acertar, ajustar. Logo, esta obra poética é um soneto, sim, mas que consegue insuflar um dizer misterioso, marcado por coisas imprecisas (v.4) em sua peculiar e tradicional estrutura.
Ainda no primeiro movimento, é interessante notar a relação entre o substantivo coisas (v.4; v.5) e seus adjetivos imprecisas (v.4) e neutras (v.5). Tanto o nome quanto suas atribuições apontam para o incerto, para um caminhar tenso. Na fala corrente, “coisa” é tudo aquilo que não recebe especificação e, no poema, as especificações ligadas a tal substantivo indicam o mesmo norte de imprecisão, já que a neutralidade seria a imprecisão de uma posição, ou seja, é aquilo que habita o abismo entre uma negação e uma afirmação. É desse abismo que surge a força do evocar, uma vez que tal verbo significa chamar à presença. Desse modo, o que se presentificaria?
Possivelmente, tudo que permanece velado no passado enquanto memória: Ó irmãos, banhistas, brisas (v.2). Eis a mobilidade da vida enquanto ação e retração do experienciar. Tudo que é vivido habita a claridade para, quase no mesmo instante, ganhar as sombras do passado enquanto guardião do porvir.
Da oposição entre a neutralidade e a suficiência, a memória manifesta o presente ao trazer à tona os acontecimentos vigentes como realidade. Isto é, afogados (v.6), sombras e gentes (v.7) nos falam de um desocultamento promovido pela memória em que tal ação chega ao seu auge quando, já no segundo movimento do poema, temos o verso Que este poema é poema sem balizas. Se num momento anterior, a mudança do modo verbal para o imperativo já delineava uma mudança no percurso poético (Parai sombras e gentes! - v.7), a dita “conclusão” do verso 8 nos lança inegavelmente na vigência da ambigüidade, na medida em que não ter balizas é a assunção de uma queda abismal na ilimitabilidade do pensar.
A partir do nono verso (Mas que venham de vós perplexidades), qualquer tentativa de impedimento do fruir poético é desfeita. As “porteiras” da ambigüidade foram escancaradas e todo movimento se volta para o entre. O entre, então, dá-se como o originário da perplexidade, quando esta nos diz o espanto, o admirar-se poético. Um dado que nos permite concordar com o vigor do entre neste poema é que, além de figurar direta (Entre as noites e os dias – v.10) ou indiretamente (... essas metades – v.12) no mesmo, sua disponibilidade tanto reveladora quanto misteriosa se presentifica reticentemente: entre... (v.11). As reticências são o encobrimento de qualquer certeza que possa se infiltrar neste poema. Elas nos deixam livres ao pensamento, a um mergulho cego na razão quando esta se desconfigura na interpretação.
Na última estrofe, temos quase uma conclusão na medida em que metalingüisticamente o poema seria definido: Qualquer poema é talvez essas metades: (v.12). Contudo, esta possível definição perde sua força já desde o início do 12º verso com a palavra Qualquer. Esta retira a exclusividade do poema e universaliza sua unicidade, lançando-o na tensão de um entre-lugar (...metades – v.12). Este percurso conclama a ambigüidade poética e a projeta na dimensão do corpo: Que isso tudo lhe nutre sangue e ventre (v.14). Assim, (...) tudo (...) retoma a memória e congrega as incertezas de um caminhar racional. Dialoga com o ciclo vital de um ente que se individualiza na propriedade do seu sangue a partir do nascimento físico (...ventre – v.14).
Portanto, o verso final retoma o inicial numa circularidade evidente, posto que ventre se ressignificará poeticamente. Será tanto a origem do corpo que vive na densidade da realidade quanto a pro-cura do poema pelo originário na vigência do real.
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Um comentário:
Fábio,
Maravilhoso o que escreveu. Admiro seu trabalho. Sucesso!
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