5 de junho de 2016

Nós, poemas

*Texto originalmente postado em minha página Verbo In-Verso, na Obvious Magazine.

Quase final de outono, final de maio, entrando junho daqui a pouco... e um poema me cortou o horizonte. Ele, o poema, foi escrito para Dalila Teles Veras, e não para mim. Não faço a menor ideia de quem seja Dalila Teles Veras. Mas ela, e não eu, ganhou um poema. (Mentira, faço, um pouco. Mas uma vez ouvi que é charmoso dizer que não se conhece aquilo que de alguma coisa se sabe).
O instante que me agarrou os braços e me fez entrar em mim está impresso nesses versos: “a leitura do poema pede / aquilo que as sombras meditam”. Mais uma vez, me percebi poema ao enxergar na dúvida a certeza para tudo aquilo que não sei e nem sei se quero saber... O que persiste, e sempre, é a dúvida.
A cauda do verso me deu uma rasteira e caí estatelado de palavras. Todas esborrachadas num chão viçoso a peripécias. Cada letra me supunha um céu impregnado de vertigens. A queda era o sonho do verbo, e este cavalgava com força, a ponto de romper o véu que se mantinha entre a boca e o cuspe.
Salivas ao chão, a fertilidade era vingada e remanescia no ventre desconhecido da linguagem. Cada qual dentre os homens ao falar dava um passo à frente de sua própria humanidade e ali cada um de mim se resguardava. O silêncio era um troféu.
A voz que dizia o poema me lançava para adiante, num voo desafronteirado. Ao cruzar os limites do léu, projetava-se rente ao meu queixo um elo esvoaçante ao qual se ligavam várias existências da minha fala. Eu era um verso dentre versos... um poema!
Presente na boca de poetas, eu existi a cada instante. E morri também. A existência é um lapso que parte para a própria desavença de ser isso que não tem nome. Nomear é lascivo. Penetra com a força de um chamamento a plenitude que não tem vez e nem espaço. O nome dá um lugar, encarcera na liberdade do porvir. O nome inaugura a voz que clamará pela própria inefabilidade.
Um poema me existe. Um canto se inaugura. A boca está cheia de dentes e esvaziada de pronomes. Querer ser um nome que ainda não foi dito é o desejo de toda imagem. O trejeito de uma frase está presente. Endurece o laço entre mim e todas as coisas que me (se) atravessam. Dizer um nome nesse encalço é existir no que sobra do reflexo das coisas num plexo espelhado. Nós somos o útero não nascido no itinerário para a chuva.
Nós, poemas ditos. Poemas escritos. Vociferados entre o acordar e o dormir. Inscritos na oralidade que clama entulhos ósseos de memória. Moramos na sua alcunha, habitamos sua voz. Enrijecemos com sua pele ao sentir a brisa do tempo no instante de sua eternidade. O tempo tempora a todo tempo. Não há imortalidade que me diga para onde morrer, quando a curva do porvir inventa traquinagens em corpos ínfimos de nuvens. O céu coroa o chão no círculo encantado por sagrações de apelos. Ajoelho. Sigo esquivando sombras e me dou completo no verbo que me diz: – Consome!
Nós, poemas. Poemas de carne, pele e sonhos. Cada palavra é uma vida que segue por descaminhos a serem cumpridos. Uma procissão que se concebe num andor invisível e me faz – eu, poema – outrar na boca que me cala.

P.s.: Os versos que me trouxeram para cá são do poema “Canto LXXIII”, de Fabiano Calixto, presente no livro Sanguínea, de 2007.


Nenhum comentário: