Meus
amigos, disponibilizo meu ensaio, que foi originalmente publicado na 28ª edição da revista
eletrônica Labirinto Literário, a fim de provocar o diálogo com quem se
interessar. Como dito na postagem anterior, caso queiram receber as edições do
LL por e-mail, basta se cadastrar em seu site. Fiquemos, então, com meu ensaio.
Boa leitura!
Oferenda
ao infinito
Lanço minha voz ao infinito...
Retornam vento e poesia de mar... O clamor de ondas se enrijece na fala de uma
palavra que se diz em todas as cores. A palavra está em todas as coisas,
inclusive em seu silêncio. O silêncio da palavra é gestação de aurora, rompendo
como voz ou escrita o rubor em face adolescente.
Lanço minha voz ao
mar... Retornam amores entalhados em sal, esculturas sobre e com o Nada,
nascidas do primeiro choro de uma criança. Choro de vida, da dor de estar vivo,
esculpido ao som de cânticos ancestrais. Eis a oferenda doada ao imprevisto, o
andor que eleva a sacralidade do humano diante de si, de sua incompletude, de
sua existência ornamentada em dúvida, queda, errância e amor. O que se percebe além
disso são decalques de uma vontade inventada, mas não a invenção no sentido
poético, e sim no de verborragia desnecessária.
O sentido poético de
inventar diz respeito ao que descobrimos daquilo que já nos foi doado pelo real.
Assim, quando nos depararmos intimamente conosco – em transiência de ser –,
descobrimos, inventamos aquilo que já temos e, só por isso, podemos (nos)
realizar. Realizamo-nos junto com nossa invenção, pois somos a obra de arte
resguardada no silêncio misterioso do não-ser. Não podemos inventar o que não
nos pertence, e sim desvelamos o que originariamente nos compõe como humanos: somos
solo fértil para o plantio do real. Tal questão se desdobra corriqueiramente, e
não percebemos. Dessa forma, apontando para um caráter supostamente externo,
mas que, na verdade, retoma e reforça o cerne do que foi dito há pouco, ao
olharmos uma pedra e nela vermos uma escultura, estamos transbordando o sentido
inventivo do que nos é próprio. Des-formamos a pedra, pois a metabolizamos e
fazemos dela nosso alimento; não exatamente dando um formato, mas sim deixando
transparecer em forma o apelo que escutamos de sua matéria. O mesmo acontece
com a palavra num poema, com um pedaço de madeira, com um traço no papel ou com
o gesto que nos restitui à humanidade, seja lá com que matéria for.
Inventar é se abrir às
vestes do sagrado, da ambiguidade entre criador e criatura, uma vez que um está
no outro, sem que se imponha passividade ou atividade. Criar é ser o empenho do
nada na doação do mundo; criar é ser homem e refestelo de poesia em noite de
lua cheia, em dia de mar aberto, em poentes coloridos de orgasmos. Nos criamos
nos sussurros ao pé do ouvido ou na fúria de braços entrelaçados... nos
entalhamos no olhar do outro quando a verdade se inflama e se diz (quase) sem
muralhas... no outro que é tanto o além quanto o aquém de nós... pois somos também
(e principalmente) o outro de nós mesmos...
Lanço meu olhar ao
horizonte... Retornam gestos, procissões de imagens inacabadas, porvir... O
anseio de conceber minha imagem como desconhecido de mim eleva o gosto de meu
suor ao auge de um querer-sem-saber. Uma ausência, prevalência, cores e tons do
imprevisto que pinta a paisagem de um existir em acontecência: minha existência
em oferenda ao desconhecido. Ofereço-me repleto do que não tenho ao ardor de
ser, ofereço-me simplesmente como presente ao mar, como carinho em criança,
afago em moribundos ou beijo em boca esquizofrênica; apenas ofereço-me... e o
resultado disso é que não devo esperar por reciprocidade, por presente datado.
Devo me submeter ao orvalho da palavra, ao entoar de vozes ensandecidas de
poesia. Dou-me à poesia, sou todo poema a ser escrito sem data ou assinatura,
sou todo palavra descabida, emergência de tudo que não sei.
Lanço minha pele à
escrita, sou superfície a ser arada por versos e música, pré-cultivo de
linguagem, inefável presença de imprevisibilidade... Sou qualquer coisa
inaudita, incomensurável, um apelo ao oposto das oposições, quando a oposição é
uma falácia inventada por divertimento da palavra. Sou qualquer poema escrito e
a escuta atenta à sua voz. Sou um poema catado ao vento, que preenche meu corpo
– e a quem se deixar envolver – de sentido e vida:
INSTANTE
ANUNCIADO
Um chapéu velho!
Eu não via seu
rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo
sol, cobria.
Mas sei que não
chorava
E nem tinha
desejo de falar.
Porque sabia que
alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma
coisa vinha chegando...
Eu não via seu
rosto,
Seu rosto
sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo
sol, cobria.
Mas sei como ele
amou aquele instante
Mas sei com que
prazer ele esperou
Aquela que viria
com os lábios úmidos para ele
A que havia de
vir passar as mãos
Pelos joelhos
feridos.[1]
O instante se anuncia
no seu próprio movimento de aparição, seja lá este como for: visível,
palatável, audível ou impronunciável. O instante, para se tentar alcançar um
chamamento, é fuga constante em qualquer tentativa de apreensão, antecedência
de nome e gesto de poesia quando a voz se inflama nos pulmões do poeta.
O instante se anuncia e
fala junto com a palavra, e nela mesma; é a palavra em seu jogo eriçado de
travessia. A ambiguidade é sua cor, pois se iridesce o sentido verbal de ser
vários. Quem fala? O poema, a linguagem, o instante! E só consigo ouvir porque
sou fruto da mesma imprecisão. Melhor, sou fruto e semente, antecedência e procedência
imersos na mesma palheta antes de se auferirem antagonismos. Só ouço o poema
porque sou também seu verbo, sou sua fala e voz; cantamos em uníssono a
proclamação do instante que já e nunca passou, pois o instante, o tempo, não
passa: vigora!
Sou a espera dos lábios
úmidos a me dizer com boca o beijo de eterna inocência, a carícia perene,
sempre presente, do amor que me ama com profundidade, dor, calor e abandono...
Abandonar não é somente deixar alguém sozinho, mas é também o movimento de este
alguém se deixar só consigo, apropriando-se de si. Só amamos quando nos
deixamos amar pelo amor, e assim nos reconhecendo no amar, e nos amando,
podemos transbordar a ponto de acolher o outro.
O amar é sempre um
transbordamento, é palavra que diz o que não é possível ser captado em formato gramatical,
pois palavra não é apenas forma, coerência, ocorrência de código linguístico.
Palavra é o próprio amor se dando no que não é possível dizer, mas sentir com
corpo pleno de existência. A definição de amor já chega atrasada em sua
tentativa de se explicar, tal qual a de palavra. Nenhuma explicação dá conta da
inaugurabilidade que é ser amor e palavra, ser um instante anunciado.
Depois de girar meu
corpo em ciranda, lanço meu olhar à Lua e sou também o que vejo na quentura de
sua luz, o brilho que guia os poetas no exercício de seus passos, quando erram
no desencaminho de suas letras. O caminho é o presente aos pés de quem se
entrega à procura da verdade, de seu apropriar-se. E verdade não significa
razão premeditada da certeza, mas a assunção (dolorosa) do que se é. Sou e
realizo aquilo que se dá a ver na retina de meu toque. Toco com o corpo e sou a
pele do que me atravessa.
Danço com a
inconstância do mar e me entrego em palavra à poesia de suas ondas, estas que
são o berço alvo do poente. Ofereço-me à imensidão de suas águas, à palavra e ao
amor, sem saber o contorno do meu corpo. Dou-me inteiro e sem nome, uma
oferenda ao infinito...