Quase ia me esquecendo de divulgar aos leitores deste blog que a resenha que escrevi sobre o livro Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001), de Eduardo White, foi ao ar na revista O Marrare recentemente.
Deixarei minha resenha disponível aqui também, mas quem preferir baixar o texto em pdf, é só clicar no link da revista e baixar o arquivo de lá. Boa leitura a todos!
Entre insônia e Deus: interlúdios de linguagem
Publicado em 2001, o livro Dormir com Deus e um Navio na Língua, de Eduardo White, é um arremesso de instantes nos quais a insônia se conflita com o sono. Deste embate, ruas se tornarão visíveis e nos levarão a improváveis destinos, pois a cada leitura um novo rumo se dará a conhecer. O livro nos traz ainda uma agonia latente da qual nos tornamos cúmplices, pois nos fazemos parte de uma poética de assombros, de uma escrita que nos retém e nos envolve numa dança irresistível.
As páginas ou o ano de edição são pretextos de infinitudes, não importando se o livro seja o mais recente do autor. E isto torna esta resenha autêntica no sentido de ser atual, não se detendo num novo que é conceituado como “o mais recente”. Afinal, uma obra tem a idade da experiência evocada naquele que é atravessado por ela, traçando nesta relação um surto de ambiguidades e imbricações, deixando a poesia existir ao seu tempo próprio.
Entrar no livro é acatar a ordem que de súbito se enuncia: “Quero dizer” (p. 9). Logo, devemos escutar e embarcar num navio, este que fere superfícies, marcando na imensidão do mar (linguagem) o caminho que é presente na sua ausência, quando as ondas engolem o rabisco de seu casco. Embarcar na língua rumo à linguagem significa sermos segurados pelo leme que nos conduz ao interior de uma navegação íntima, aprofundada no mistério de um mar que nos navega. Com preces não detidas em orações verborrágicas, os poemas – que se alargam como uma malha de escrita, onde parecem parágrafos e na qual todas as questões presentes se fazem ecoantes – nos faz singrar pelo rasgo aberto de uma poesia que deturpa momentos, não porque seja um intencional agente ácido, corruptor de cronologias, mas porque já é inevitavelmente a própria corrupção do que se pretenderia inatingível.
Este livro é elaborado a partir da tensão entre a insônia excessiva e o sono almejado. E é exatamente esta tensão que dinamiza o ritmo das palavras, pois aquilo que se busca é tanto mais intensificado na véspera de sua eclosão do que no instante de sua realização, tendo em vista que o aparecer é um lampejo que não se detém em limites, mas se conserva na totalidade do seu brilho. Tal tensão se desdobra em promiscuidade, ensejando que a insônia também se realize durante o sono, uma vez que no diálogo com Deus as questões efervescem de seu descanso, da mesma forma que o sono se dê nas salpicadas memórias do cotidiano, quando a lucidez é pano de fundo para a imersão num ser que é “sendo”, num viver que é “vivendo”.
Como uma sala que se expande a um olhar visitante, uma poética do cotidiano vai se criando, amarrando a língua exercida ao pensamento e à fala, um quadro pintado com as cores de uma realidade que derrama e cria, funde e perpetua a linguagem. Assim, a insônia que acolhe profundidades de vivência traz aos leitores um punhado infinito de verdades, as quais são retiradas de banalizações pedestres. Então, imagens e lembranças são decalcadas de moradas insossas para a iridescência de realidades fundadas como instantes inapreensíveis, em que a única maneira de tê-las ainda com a permanência de seus aromas é vivê-las poeticamente, realizando-as com a língua: “A minha língua é um acontecimento nestas lembranças todas que me chegam. Resulta num presente que é um facto analítico na minha alma, um impulso para o seu conhecimento, um arremedo de vida sobre a sua razão, uma música evocativa para as minhas sensações” (p. 27).
Junto com a linguagem e com a língua, e sem riscos de tautologia, o navio é o caminho com que se caminha no caminho, singrando vestígios de língua no mar inesgotável da linguagem: “Um navio nunca é só uma língua, lembremo-nos, e, definitivamente, uma língua pode ter um navio. [...]. Um navio é uma existência com essa rota. Uma língua estende-se, um navio parte. Uma anterior ao sentido exterior do outro” (p. 10).
Com pinceladas que misturam na tela poemática sensações e erupções de instantes, um bar, um restaurante chinês, uma amiga que parte, a sensibilidade de ser pai com os filhos, uma casa e suas aranhas, estes são universos que se desprendem de estáticas molduras, ressignificando-se na trilha fendida pelo casco de uma língua, esta que é tão própria e enérgica, uma cartografia sem mapas ou geografia, que desmede qualquer mensurável tentativa de dizer um acontecimento.
A casa e a aranha ganham intimidade de linguagem, ganham uma à outra numa tessitura de habitações não ensimesmadas, isto é, a teia da aranha faz aparecer o vazio dos cantos da casa, faz a casa ser casa no silêncio de suas quinas, na escuridão dos detalhes que nos passam despercebidos. O sentido existente entre fio e nada não mede o silêncio de seus vazios, mas faz aparecer o antes de cada lembrança, a véspera espraiada no instante inatingível e sempre permanente da memória. As coisas de uma casa fundam os lugares dispersos na incomensurabilidade do espaço, pois o lugar só existe a partir de sua ocupação: “A casa é um interminável território de coisas, lugar para que as memórias a ela afluam e vivam, por vezes, e morram, por outras. [...]. Nunca nada mereceu tanto uma casa como a aranha, porque ela dá sentido à vida quando está perdida a vida desse sentido e a testemunha com formas tão intensas” (p. 20).
Como Dormir com Deus... se desenvolve por um fluxo tensional, se tentássemos dividir o livro em duas partes, incorreríamos em grave erro, dissipando a unidade de um corpo instável, a fim de tentarmos perceber a estabilidade de demarcações concebíveis. A linguagem é invocada e realizada como língua nos caminhos que se cruzam, sendo o mesmo mar na invocação de outra questão: Deus. Deus, linguagem e língua são questões intercambiadas na conexão com uma poética de arredores. O juízo é pretexto para se trazer à conversa a inefabilidade das questões mencionadas, mostrando a dificuldade – para não dizer impossibilidade – de afigurar uma onda como movimento previsível de mar.
A insônia não precede o sono, realiza-se com ele, sendo artimanha que coaduna e elabora na prece a dimensão humana de um corpo que assim será junto com a cama, coberto e acariciado pela mão negra da noite. Cerrar-se numa dormência nítida de altercações, eis o desejo do cansaço. Cobrir-se pelo manto perenemente enegrecido, eis a condição de tocar os pés de Deus: dormir com Deus é penetrar-se, ser uma visão que desintegra as barreiras impostas pelo ver dos olhos carnais, por isso temos a sensação de uma despedida, ou melhor, uma frivolidade de penitência ao se redimir consigo e deixar-se entregar ao sonho, este que é ambiente de interlúdios: “Para o cimo da sua cruz ao pé do velho sino, lanço as minhas amarras. O destino dos sonhos na paisagem da cama. Hoje vou dormir com Deus. E deito-me” (p. 30).
Deus é o átimo que escapa ao toque, a fuga que se presenteia na procura do que foge, uma incessante véspera que se desalinha na envergadura de um enigma: vertigem que apreende na queda não uma resolução, mas a rota do perder-se: condição máxima para um estado de procura, de mergulho que é salto mortal no desconhecido.
Aquilo que seria uma atmosfera onírica – na qual se desvelariam as imagens trancadas pela suposta realidade palpável – é um caminho de imbricações em cujas dimensões o homem se questiona a partir da busca pelo que é. Portanto, não há separação entre o sonho e o dia ensolarado, a realidade não é aquilo que se enquadra ao tamanho de nossa compreensão, a noite não é uma oposição ao vespertino estado de coma.
O diálogo com Deus é uma teia de incursões onde o homem se debate ao tentar se compreender, ao tentar chegar àquilo que sempre foi, mas se encontra obliterado pela subjugação ao visível. Temos então movimentos de pensamento, deixando claro que poesia é um modo de estar no mundo, de se inquirir e de compreender a realidade que nos rodeia. Pensar é questionar, poetizar: “Penso: A Deus eu servira respondendo? E Deus faria sentido perguntando-me? Deus próprio encarna tudo isso. Funde a pergunta que é na resposta que não me dá. O silêncio cá dentro assinala festivo a minha conclusão enferma” (p. 38).
O sono que poderia ser entendido como nebulosidade irracional, onde todo escapismo é justificável, onde tudo é possível, só seria entendido assim caso lêssemos com vistas à oposição entre real e irreal. O sono é, na verdade, o outeiro de uma planície que se eleva e continua sendo plana no cimo de sua altitude, assim como o pescoço que se enverga do alto da terra continua côncavo no espaldar do chão de imaginárias linhas retas. Podemos considerar que dormir com Deus é se exceder em ser, pois o biombo que separa o visível do invisível é estilhaçado, propiciando um avivamento sem demarcações: “No sono tudo é longe mas cresce tão perto, turvo e tão nítido, presente e tão passado, concreto e tão dissolúvel vivo e tão perecível” (p. 39).
O livro se inicia com uma ordem, esta que é metamorfoseada em apelo de autoescuta. Embarcar no navio é um outro modo de estar com Deus, uma vez que estar com Deus é se arremeter à circularidade de uma pergunta que em si já traz a resposta, ou da resposta que em si já instala um novo perguntar. Eis a movimentação da linguagem, que expõe o desenvolvimento das questões alinhavadas nos poemas: caminhos que emergem de efemeridades para o incontável do pensamento.
Ao nos entregarmos à leitura e às curvas de suas linhas, percebemos que não é possível apenas passear com os olhos pelas páginas. Debruçar-se sobre um livro de poesia não pode se tornar um afago ao cansaço. Ao contrário, exige devoção, impõe um ritmo de evoluções internas, adentramentos de imprecisões que corrompem e instauram um tempo próprio, uma realidade singular.
Sem ser possível determinar o limite entre a lucidez e o sonho, uma vez que estas são dimensões que se ambiguizam no curso da escrita de Dormir com Deus..., este livro nos convida ao salto, oferece-nos uma oportunidade de partirmos em busca de nosso próprio, já que invoca questões importantíssimas ao homem. Só podemos questionar depois de nos questionarmos, e se considerarmos que interpretar é interpretar-se, a leitura deste livro nos enseja uma possibilidade de sermos ondas no mar. Pois, da mesma forma que nenhuma onda é igual à outra, ainda que tenha como origem o mesmo mar, assim se apresenta a poesia: fluxo circular em cuja realização os extremos se convergem para a unidade complexa que são, onde dois fazem um.
Terminamos aqui, no entanto deixamos mais uma passagem que encena a ambiguidade visível no livro, na qual vida e escrita se penetram, pintando a paisagem de um sonho fixado no longe de um horizonte, onde os caminhos que levam a ele são os de imersão no que seja próprio de cada homem: “E o sonho é um volante brilhante, lento, alto, a conduzir-me para os caminhos de mim mesmo. Não é uma viagem, mas uma viragem onde ficará só por saber se, em síntese, a terei vivido ou, apenas, a terei escrito” (p. 49).
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