1 de maio de 2015

Ecologia

*Este meu pequeno ensaio é um dos 121 que compõem o livro Convite ao Pensar.

De dentro da palavra, comecemos: eco-logia: oîkos-lógos: habitação-linguagem. Correntemente, considera-se em ecologia o sentido empregado em função da lógica funcional de tal palavra: ciência que estuda a interação entre os seres vivos e seu meio. Contudo, tal acepção é própria de um entendimento metafísico que observa a superfície executante do que já se cristalizou como o estudo científico ou político, ainda que esse último traga já esmaecido o verbo pelomai, de onde nasce o sentido de pólis enquanto lugar histórico: “o espaço no qual, a partir do qual e para o qual acontece a história” (HEIDEGGER: 1999, p. 175).
Da junção etimológica das duas palavras gregas, conforme já vimos, prefigurou-se a estagnação conceitual do que a palavra ecologia aparentemente apresenta: “estudo da casa”. Desse modo, a fim de reinaugurar o que essa palavra diz em seu cerne, é preciso pensar essencialmente tanto oîkos (casa) quanto lógos (linguagem), no intuito de se perceber o que elas desencadeiam.
A partir de uma leitura poético-hermenêutica, reinventamos a significação de oîkos, quando o sentido de “casa” se amplia no de habitação, dando-nos a presentificação de morada; e lógos, que possui incontáveis traduções, reinventa-se poeticamente quando nos abrimos em escuta para o sentido de linguagem.
Podemos pensar que ecologia é a linguagem de nossa habitação mediante uma incursão profunda no chão de onde brota nossa história, tomando como referência o lógos. Nessa perspectiva, o lógos determina o sentido da palavra ecologia, trazendo ao diálogo a compreensão de sua atribuição moderna, avultando o sentido cartesiano que emoldura o lógico dentro da ambiência tecnológica de acepção da realidade. Queremos dizer que a partir de Descartes a percepção da realidade foi dividida em instâncias antagônicas. Daí, o lógos foi “amparado” pela razão científica que o relegou ao estatuto do que confere verdade – no sentido de certeza incontestável – a qualquer experiência, mesmo que contraditoriamente o próprio lógos seja a condição de possibilidade para que a razão – como determinação da verdade – se torne referência para o que seja realidade e o que certifica veracidade a determinado fato ou circunstância. Por isso, dizer que ecologia é linguagem da habitação significa o modo de compreensão ecológica a partir do lógos moderno, considerando que “o ‘lógos’, o sentido orientador moderno, é cartesiano” (FOGEL: 2009a, p. 66). Então, o lógos moderno instaura um modo de assumir nossa morada diante de uma determinação cindida da realidade, na qual a racionalidade da razão norteia a direção de nossos passos.
Somos seres históricos, isto é, se história é a acontecência temporal de nossa existência enquanto seres de entridade (não só nascemos no “entre” – assumindo nossa posição entre vida e morte – como somos a legítima vigência êntrica, uma vez que encenamos a i-mediatez de nossa própria fronteira humana, ou seja, somos aquilo que nos parece e aparece assim como o outro de nós mesmos, o que fica velado no que aparece), então exercemos a cultura dos desavisos ao lavrarmos a terra com o arado de nossos pés. Fincamos nosso lugar no espaço do real e nos realizamos enquanto éthos.
Éthos diz a morada, a incumbência do homem em ser humano frente à própria assunção mortal. O cultivo de sua essência poética grafa a história de sua estância, pondo-o no e enquanto limiar histórico, na travessia de seus atos. E a isso chamamos agir. A ação do homem não supõe a objetividade premeditada de suas atitudes, e sim o salto na queda de sua constituição transitória. Assim, ecologia apresenta outra possibilidade de compreensão de seu significado quando, diferente do que dissemos acima, agora entendemos tal palavra a partir de oîkos, no sentido de habitação. Com essa viragem, ecologia passa a significar “habitação na linguagem”.
O que parece simples inversão de ordem nas palavras, na verdade muda completamente o sentido que ecologia desencadeia. A habitação na linguagem é a condição inerente a qualquer um de nós, independente de nossa ciência, uma vez que somos a promessa de um verso na composição poética do real. Por isso, por sermos a realização histórica da linguagem, somos “possibilidade para possibilidade” (Cf. FOGEL: 2009b, p. 42), o aberto no qual o real se realiza, concedendo-nos a condição de acrescentarmos à composição histórica do tempo nossa produção técnica, isto é, transformando a matéria natural num produto de nossas mãos.
Ecologia, então, se torna verbo. E toda palavra que encena a movimentação cíclica da realidade é verbal, pois verbo diz mudança e permanência na essência de sua originariedade. Esse verbo conjuga a ambiguidade de tanto nos localizar no meio da linguagem que habitamos quanto institui a consumação do oco, ou seja, da inerente possibilidade do vazio, da fecundação de nossa boca no útero da palavra, e toda palavra é simultaneamente salto e queda. Ecologicamente, habitamos a desmedida, a suprema instância para o absurdo, sendo ao mesmo tempo a violência do impacto e a insurgência da trajetória ao baque empreendido pela iminência palavral do homem em ser um oco:
                                                                          
o homem é um oco (!), um buraco (!), quem vem a ser o que é, a saber, homem, à medida que faz, que realiza, que age, melhor, à medida que, em fazendo, realizando, agindo, se faz e, assim, vem a ser – vem a ser o que é, a saber, homem (FOGEL: 2009b, pp. 37-8).

E essa ambiguidade, essa possibilidade de sermos minimamente dois – o que sou e não sou –, está no sentido de ecologia enquanto habitação na linguagem, isto é, enquanto a dimensão ontológica do homem em ser cultivo para o nada, em ser o buraco e sua ocupação na averbação institutiva do seu próprio, este que é ambíguo e inacessível, ainda que vigente na proximidade de sua pele. O homem é a integração entre equilíbrio e desordem e, por isso, é ecológico, ou seja, habita a linguagem. A ecologia é uma reinvenção do incessante cultivo humano, do aspecto impuro do chão propenso a céu. Portanto, perfaz o escrutínio da voz que diz o nada, que canta a sonoridade radical da terra no intervalo urânico da palavra, quando qualquer senso de sustentabilidade, na verdade, suscita o cuidado ao que lhe diz respeito intimamente.
Ser íntimo é ser inteiro na condição fronteiriça da humanidade, da ecologia tanto como habitação na linguagem quanto como linguagem da habitação, pois independente da referência que tomemos para tentar compreender tal palavra – ecologia –, de um modo ou de outro o que se realiza é um percurso para o profundo do cuidado – Cura – daquilo que somos e estamos sempre em vista de ser. Habitamos o chão que nos habita e fundamos o zelo por nossa morada sempre que atentamos àquilo que nos toca e nos mundaniza na integração com o poético. Essencialmente, ecologia diz nossa morada quando habitamos nossa própria condição humana, quando cultivamos a terra que somos.

Referências bibliográficas


CASTRO, Manuel Antônio de. “Poético-ecologia”. In: ______ (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
FOGEL, Gilvan.  Que é filosofia – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009a.
______. “Notas sobre o corpo”. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009b.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

Referência do ensaio no livro

PESSANHA, Fábio Santana. “Ecologia”. In: CASTRO, Manuel Antônio de et al. (orgs.). Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.

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