De dentro da palavra,
comecemos: eco-logia: oîkos-lógos:
habitação-linguagem. Correntemente, considera-se em ecologia o sentido
empregado em função da lógica funcional de tal palavra: ciência que estuda a
interação entre os seres vivos e seu meio. Contudo, tal acepção é própria de um
entendimento metafísico que observa a superfície executante do que já se
cristalizou como o estudo científico ou político, ainda que esse último traga
já esmaecido o verbo pelomai, de onde
nasce o sentido de pólis enquanto lugar histórico: “o espaço no qual, a partir do qual
e para o qual acontece a história” (HEIDEGGER: 1999, p. 175).
Da junção etimológica
das duas palavras gregas, conforme já vimos, prefigurou-se a estagnação
conceitual do que a palavra ecologia aparentemente apresenta: “estudo da casa”.
Desse modo, a fim de reinaugurar o que essa palavra diz em seu cerne, é preciso
pensar essencialmente tanto oîkos
(casa) quanto lógos (linguagem), no
intuito de se perceber o que elas desencadeiam.
A partir de uma leitura
poético-hermenêutica, reinventamos a
significação de oîkos, quando o
sentido de “casa” se amplia no de habitação, dando-nos a presentificação de
morada; e lógos, que possui
incontáveis traduções, reinventa-se poeticamente quando nos abrimos em escuta
para o sentido de linguagem.
Podemos pensar que ecologia
é a linguagem de nossa habitação mediante uma incursão profunda no chão de onde
brota nossa história, tomando como referência o lógos. Nessa perspectiva, o lógos
determina o sentido da palavra ecologia, trazendo ao diálogo a compreensão de
sua atribuição moderna, avultando o sentido cartesiano que emoldura o lógico
dentro da ambiência tecnológica de acepção da realidade. Queremos dizer que a
partir de Descartes a percepção da realidade foi dividida em instâncias
antagônicas. Daí, o lógos foi “amparado”
pela razão científica que o relegou ao estatuto do que confere verdade – no
sentido de certeza incontestável – a qualquer experiência, mesmo que
contraditoriamente o próprio lógos
seja a condição de possibilidade para que a razão – como determinação da
verdade – se torne referência para o que seja realidade e o que certifica
veracidade a determinado fato ou circunstância. Por isso, dizer que ecologia é
linguagem da habitação significa o modo de compreensão ecológica a partir do lógos moderno, considerando que “o
‘lógos’, o sentido orientador moderno, é cartesiano” (FOGEL: 2009a, p. 66).
Então, o lógos moderno instaura um
modo de assumir nossa morada diante de uma determinação cindida da realidade, na
qual a racionalidade da razão norteia a direção de nossos passos.
Somos seres históricos,
isto é, se história é a acontecência temporal de nossa existência enquanto
seres de entridade (não só nascemos no “entre” – assumindo nossa posição entre
vida e morte – como somos a legítima vigência êntrica, uma vez que encenamos a
i-mediatez de nossa própria fronteira humana, ou seja, somos aquilo que nos
parece e aparece assim como o outro de nós mesmos, o que fica velado no que
aparece), então exercemos a cultura dos desavisos ao lavrarmos a terra com o
arado de nossos pés. Fincamos nosso lugar no espaço do real e nos realizamos enquanto
éthos.
Éthos
diz a morada, a incumbência do homem em ser humano frente à própria assunção
mortal. O cultivo de sua essência poética grafa a história de sua estância,
pondo-o no e enquanto limiar histórico, na travessia de seus atos. E a isso
chamamos agir. A ação do homem não supõe a objetividade premeditada de suas
atitudes, e sim o salto na queda de sua constituição transitória. Assim,
ecologia apresenta outra possibilidade de compreensão de seu significado
quando, diferente do que dissemos acima, agora entendemos tal palavra a partir
de oîkos, no sentido de habitação.
Com essa viragem, ecologia passa a significar “habitação na linguagem”.
O que parece simples
inversão de ordem nas palavras, na verdade muda completamente o sentido que
ecologia desencadeia. A habitação na linguagem é a condição inerente a qualquer
um de nós, independente de nossa ciência, uma vez que somos a promessa de um
verso na composição poética do real. Por isso, por sermos a realização
histórica da linguagem, somos “possibilidade para possibilidade” (Cf. FOGEL:
2009b, p. 42), o aberto no qual o real se realiza, concedendo-nos a condição de
acrescentarmos à composição histórica do tempo nossa produção técnica, isto é,
transformando a matéria natural num produto de nossas mãos.
Ecologia, então, se
torna verbo. E toda palavra que encena a movimentação cíclica da realidade é
verbal, pois verbo diz mudança e permanência na essência de sua originariedade.
Esse verbo conjuga a ambiguidade de tanto nos localizar no meio da linguagem
que habitamos quanto institui a consumação do oco, ou seja, da inerente
possibilidade do vazio, da fecundação de nossa boca no útero da palavra, e toda
palavra é simultaneamente salto e queda. Ecologicamente, habitamos a desmedida,
a suprema instância para o absurdo, sendo ao mesmo tempo a violência do impacto
e a insurgência da trajetória ao baque empreendido pela iminência palavral do
homem em ser um oco:
o homem é um oco (!), um buraco
(!), quem vem a ser o que é, a saber, homem, à medida que faz, que realiza, que
age, melhor, à medida que, em fazendo, realizando, agindo, se faz e, assim, vem a ser – vem a ser o que é, a saber, homem
(FOGEL: 2009b, pp. 37-8).
E essa ambiguidade,
essa possibilidade de sermos minimamente dois – o que sou e não sou –, está no
sentido de ecologia enquanto habitação na linguagem, isto é, enquanto a
dimensão ontológica do homem em ser cultivo para o nada, em ser o buraco e sua
ocupação na averbação institutiva do seu próprio, este que é ambíguo e
inacessível, ainda que vigente na proximidade de sua pele. O homem é a
integração entre equilíbrio e desordem e, por isso, é ecológico, ou seja, habita
a linguagem. A ecologia é uma reinvenção do incessante cultivo humano, do
aspecto impuro do chão propenso a céu. Portanto, perfaz o escrutínio da voz que
diz o nada, que canta a sonoridade radical da terra no intervalo urânico da
palavra, quando qualquer senso de sustentabilidade, na verdade, suscita o
cuidado ao que lhe diz respeito intimamente.
Ser íntimo é ser
inteiro na condição fronteiriça da humanidade, da ecologia tanto como habitação
na linguagem quanto como linguagem da habitação, pois independente da
referência que tomemos para tentar compreender tal palavra – ecologia –, de um
modo ou de outro o que se realiza é um percurso para o profundo do cuidado –
Cura – daquilo que somos e estamos sempre em vista de ser. Habitamos o chão que
nos habita e fundamos o zelo por nossa morada sempre que atentamos àquilo que
nos toca e nos mundaniza na integração com o poético. Essencialmente, ecologia
diz nossa morada quando habitamos nossa própria condição humana, quando
cultivamos a terra que somos.
Referências bibliográficas
Referências bibliográficas
CASTRO, Manuel Antônio de. “Poético-ecologia”. In: ______ (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2009.
FOGEL, Gilvan. Que é filosofia – Filosofia como exercício de
finitude. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009a.
______. “Notas sobre o corpo”. In: CASTRO, Manuel Antônio de
(org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2009b.
HEIDEGGER, Martin. Introdução
à metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. 4. ed. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
Referência do ensaio no livro
PESSANHA, Fábio Santana. “Ecologia”. In: CASTRO, Manuel Antônio de
et al. (orgs.). Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2014.