Das quatro causas
aristotélicas – material, formal, final e eficiente – para a constituição das
coisas no âmbito dos entes, ou seja, na dimensão do que é insuficiente para sua
própria existência, a causa material diz respeito à matéria pelas quais tais
coisas são criadas. Exemplificando, temos a madeira (matéria) extraída para se
construir (causa final) uma cadeira (forma). E quem executará tal tarefa (causa
eficiente) será o marceneiro. Portanto, a cadeira não existe por si. Foi necessária
a intervenção técnica do homem para suprir aquilo que a natureza (phýsis) não é capaz de fornecer. E ainda
é preciso dizer que natureza não é só isso que aparece aos nossos olhos e
constitui uma paisagem ou a fonte material para um objeto. O sentido grego
empreendido pela phýsis é mais amplo
e foi esquecido desde sua tradução para o latim natura, de onde temos “natureza” enquanto o que está circunscrito
ao limite de nossos olhos. Phýsis não
está apenas no que aparece, mas na antecedência do que surge. É o surgimento em
sua ação originária.
A tensão entre matéria
(hylé) e forma (morphé) estabelece o caráter primeiro da constituição dos entes,
principalmente no que diz respeito à relação entre serventia e inutilidade de
uma coisa. Queremos dizer com isso que tal tensão empreende uma relação interna
na realização de uma coisa, haja vista que tanto o fim a que se determina uma
produção coisal quanto aquele que a produz caracterizam sua ambiência externa
por não estar presente na composição elementar de um ente.
Matéria diz aquilo que
está na antecedência de um produto, na condição para realização de uma
serventia. À matéria se confere o caráter de constância, na medida em que trata
do repouso concernente a uma coisa. Mais ainda, essencializa-se naquilo que
aparece, ou seja, tanto exerce o caráter primordial de habitação silenciosa do
vir a ser de uma coisa quanto confere a essa coisa as características que a
determinarão como algo específico: “Aquilo que dá às coisas o que é constante e
é seu cerne, mas que ao mesmo tempo também causa o modo de seu afluxo sensível,
o colorido, o sonoro, a dureza, o maciço, é a materialidade das coisas” (HEIDEGGER: 2010, p. 61).
A implementação formal
de uma matéria está em íntima relação com o objetivo a que tal construção se
refere. Ou seja, ninguém constrói uma cadeira pura e simplesmente para que ela
exista. Há aí uma intenção, um fim, uma finalidade (causa final) a ser
cumprida. Portanto, junta-se à tensão entre matéria e forma o objetivo a ser
cumprido, o télos. E a essa palavra
grega normalmente se atribui o sentido de finalidade, considerando o desgaste
metafísico, na dimensão entitativa, a que foi submetida. Contudo, télos em seu sentido originário diz a
plenitude de realização: “o télos, o
sentido de toda ação, é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor
de sua plenitude. Atitude, como a consumação de todos os sentidos das ações” (LEÃO: 1992, p. 156).
É possível pensar que matéria
é a base para qualquer composição artística ou para criação de qualquer objeto,
prevendo aí o aspecto de inutilidade ou serventia. Porém, conforme podemos
observar em A origem da obra de arte,
de Martin Heidegger, isso seria uma postura digna de desconfiança, pois o
caráter de obra da obra de arte não pode se reduzir a uma conceituação
determinante, considerando que a questão da matéria ocupa o que o pensador
chama de terceiro conceito de coisa: “O constante de uma coisa, a consistência,
consiste no fato de que uma matéria está reunida com uma forma. A coisa é uma
matéria formada” (HEIDEGGER:
2010, p. 61). Daí, por se tratar de um conceito, algo limitado
num enunciado, a obra perde sua vigência inaugural para se instalar nos limites
de uma conceituação. Contudo, da mesma maneira que não se pode determinar um
conceito que solucione uma indagação, também não se pode descartá-lo, pois se
incorreria no mesmo problema, mudando apenas o ponto de vista. É uma questão
paradoxal, sem dúvida alguma, e é exatamente nessa tensão inequívoca que a
matéria prevalece, sendo a constância e a mudança perspectivada de sua enunciação
na aferência tanto ao que dá suporte para uma obra de arte acontecer
materialmente quanto à superação ou aparição em primeiro plano da materialidade
da obra para que esta opere enquanto fundadora do real. E é nessa dimensão
paradoxal que se pode afirmar que a matéria é um “princípio de criação” (Cf. CASTRO: 2011).
Matéria não é só
essência, ela também se dissimula nas características de uma aparência. A
partir do que aparece, entramos em contato com a estética fornecedora de
sutilezas e nuances, com o que determina a singularidade presencial de uma
coisa. Aqui, estética é colocada a partir de seu sentido originário, provindo
de aísthesis, portanto, a abertura para
a qual nos dispomos em receber a realidade i-mediatamente (Cf. FOGEL: 2007, p. 43)
na pele, com nossos sentidos, que são – em primeira instância – a porta
sensorial que nos liga ao que nos toca.
Trazendo a matéria ao
centro nevrálgico de sua constituição, uma vez que habita a tensão vigente em
seu desdobramento essencial na realização de uma coisa. Essa coisa também pode
ser o homem, quando o que está em jogo é o princípio de criação a que se
submete. Submeter-se à criação não quer dizer pôr-se como autor de uma obra,
pois isso seria vestir-se da ilusão autossuficiente do humano enquanto
suprassumo da realidade, ou seja, a realidade estaria em suas mãos.
O princípio criativo do
homem está no fato de ele mesmo ser uma obra em deveniência, sendo a incursão
histórica de sua exegese no inesperado de seus passos. A apropriação destinal
do humano diz sua atuação na paisagem do real, tendo em vista que a obra de
arte é o modo não de responder ou de assumir uma autoria, mas sim de,
independente da vontade do homem, pô-lo como o aberto para a realização de
mundo no operar da arte. E nesse operar, a matéria aparece no luzir de sua
tensão com o real.
O homem ao se humanizar
interpreta-se concretamente. A matéria subsiste e se instala na ação silenciosa
de instauração de mundo pela obra de arte. Se toda matéria necessariamente
ocupa uma forma, também necessariamente impõe a dúvida de sua constituição
poética, seja desaparecendo num utensílio – dando espaço à sua utilidade – ou aparecendo
na inaugurabilidade da obra de arte. A necessidade de outrar-se é própria da
matéria, portanto, inerente ao homem.
Referências bibliográficas
Referências bibliográficas
CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança”.
In: Travessia Poética. 2011.
Disponível em: http://travessiapoetica.blogspot.com.br/2011/01/aprender-com-danca-prof.html.
Acesso: 20 nov. 2013.
FOGEL, Gilvan. “O desaprendizado do símbolo (a
poética do ver imediato)”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, nº 171, pp. 39-51, 2007. Trimestral.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte.
Tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70,
2010.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “O problema da ‘Poética’
de Aristóteles”. In: Aprendendo a pensar.
Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1992.
Referência do ensaio no livro
PESSANHA, Fábio Santana. “Matéria”. In: CASTRO,
Manuel Antônio de et al. (orgs.). Convite ao pensar. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.
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