3 de abril de 2015

Palavras sopradas para Clarice Lispector

Está no ar na Obvious Magazine um texto meu, intitulado "Um sopro de palavras para Clarice Lispector", que nasceu do impacto que o livro Um sopro de vida, da mesma autora, causou em minhas palavras. Por ora, deixo a chamada do texto, e quem quiser conferir na íntegra um pouco dessa vertigem, é só acessar aqui: http://lounge.obviousmag.org/verbo_inverso/2015/03/um-sopro-de-palavras-para-clarice-lispector.html

Do início da leitura do romance Um sopro de vida, de Clarice Lispector, nasceram palavras encantadas por dúvidas. Um olhar tornou-se vários e o arrebatamento deu-se repentino. Aqui se encontra um momento de morte, um instante-já onde a vida se torna palavra e devires.

Matéria

*Este é um dos 121 ensaios que compõem o livro Convite ao pensar.


Das quatro causas aristotélicas – material, formal, final e eficiente – para a constituição das coisas no âmbito dos entes, ou seja, na dimensão do que é insuficiente para sua própria existência, a causa material diz respeito à matéria pelas quais tais coisas são criadas. Exemplificando, temos a madeira (matéria) extraída para se construir (causa final) uma cadeira (forma). E quem executará tal tarefa (causa eficiente) será o marceneiro. Portanto, a cadeira não existe por si. Foi necessária a intervenção técnica do homem para suprir aquilo que a natureza (phýsis) não é capaz de fornecer. E ainda é preciso dizer que natureza não é só isso que aparece aos nossos olhos e constitui uma paisagem ou a fonte material para um objeto. O sentido grego empreendido pela phýsis é mais amplo e foi esquecido desde sua tradução para o latim natura, de onde temos “natureza” enquanto o que está circunscrito ao limite de nossos olhos. Phýsis não está apenas no que aparece, mas na antecedência do que surge. É o surgimento em sua ação originária.
A tensão entre matéria (hylé) e forma (morphé) estabelece o caráter primeiro da constituição dos entes, principalmente no que diz respeito à relação entre serventia e inutilidade de uma coisa. Queremos dizer com isso que tal tensão empreende uma relação interna na realização de uma coisa, haja vista que tanto o fim a que se determina uma produção coisal quanto aquele que a produz caracterizam sua ambiência externa por não estar presente na composição elementar de um ente.
Matéria diz aquilo que está na antecedência de um produto, na condição para realização de uma serventia. À matéria se confere o caráter de constância, na medida em que trata do repouso concernente a uma coisa. Mais ainda, essencializa-se naquilo que aparece, ou seja, tanto exerce o caráter primordial de habitação silenciosa do vir a ser de uma coisa quanto confere a essa coisa as características que a determinarão como algo específico: “Aquilo que dá às coisas o que é constante e é seu cerne, mas que ao mesmo tempo também causa o modo de seu afluxo sensível, o colorido, o sonoro, a dureza, o maciço, é a materialidade das coisas” (HEIDEGGER: 2010, p. 61).
A implementação formal de uma matéria está em íntima relação com o objetivo a que tal construção se refere. Ou seja, ninguém constrói uma cadeira pura e simplesmente para que ela exista. Há aí uma intenção, um fim, uma finalidade (causa final) a ser cumprida. Portanto, junta-se à tensão entre matéria e forma o objetivo a ser cumprido, o télos. E a essa palavra grega normalmente se atribui o sentido de finalidade, considerando o desgaste metafísico, na dimensão entitativa, a que foi submetida. Contudo, télos em seu sentido originário diz a plenitude de realização: “o télos, o sentido de toda ação, é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor de sua plenitude. Atitude, como a consumação de todos os sentidos das ações” (LEÃO: 1992, p. 156).
É possível pensar que matéria é a base para qualquer composição artística ou para criação de qualquer objeto, prevendo aí o aspecto de inutilidade ou serventia. Porém, conforme podemos observar em A origem da obra de arte, de Martin Heidegger, isso seria uma postura digna de desconfiança, pois o caráter de obra da obra de arte não pode se reduzir a uma conceituação determinante, considerando que a questão da matéria ocupa o que o pensador chama de terceiro conceito de coisa: “O constante de uma coisa, a consistência, consiste no fato de que uma matéria está reunida com uma forma. A coisa é uma matéria formada” (HEIDEGGER: 2010, p. 61). Daí, por se tratar de um conceito, algo limitado num enunciado, a obra perde sua vigência inaugural para se instalar nos limites de uma conceituação. Contudo, da mesma maneira que não se pode determinar um conceito que solucione uma indagação, também não se pode descartá-lo, pois se incorreria no mesmo problema, mudando apenas o ponto de vista. É uma questão paradoxal, sem dúvida alguma, e é exatamente nessa tensão inequívoca que a matéria prevalece, sendo a constância e a mudança perspectivada de sua enunciação na aferência tanto ao que dá suporte para uma obra de arte acontecer materialmente quanto à superação ou aparição em primeiro plano da materialidade da obra para que esta opere enquanto fundadora do real. E é nessa dimensão paradoxal que se pode afirmar que a matéria é um “princípio de criação” (Cf. CASTRO: 2011).
Matéria não é só essência, ela também se dissimula nas características de uma aparência. A partir do que aparece, entramos em contato com a estética fornecedora de sutilezas e nuances, com o que determina a singularidade presencial de uma coisa. Aqui, estética é colocada a partir de seu sentido originário, provindo de aísthesis, portanto, a abertura para a qual nos dispomos em receber a realidade i-mediatamente (Cf. FOGEL: 2007, p. 43) na pele, com nossos sentidos, que são – em primeira instância – a porta sensorial que nos liga ao que nos toca.
Trazendo a matéria ao centro nevrálgico de sua constituição, uma vez que habita a tensão vigente em seu desdobramento essencial na realização de uma coisa. Essa coisa também pode ser o homem, quando o que está em jogo é o princípio de criação a que se submete. Submeter-se à criação não quer dizer pôr-se como autor de uma obra, pois isso seria vestir-se da ilusão autossuficiente do humano enquanto suprassumo da realidade, ou seja, a realidade estaria em suas mãos.
O princípio criativo do homem está no fato de ele mesmo ser uma obra em deveniência, sendo a incursão histórica de sua exegese no inesperado de seus passos. A apropriação destinal do humano diz sua atuação na paisagem do real, tendo em vista que a obra de arte é o modo não de responder ou de assumir uma autoria, mas sim de, independente da vontade do homem, pô-lo como o aberto para a realização de mundo no operar da arte. E nesse operar, a matéria aparece no luzir de sua tensão com o real.
O homem ao se humanizar interpreta-se concretamente. A matéria subsiste e se instala na ação silenciosa de instauração de mundo pela obra de arte. Se toda matéria necessariamente ocupa uma forma, também necessariamente impõe a dúvida de sua constituição poética, seja desaparecendo num utensílio – dando espaço à sua utilidade – ou aparecendo na inaugurabilidade da obra de arte. A necessidade de outrar-se é própria da matéria, portanto, inerente ao homem.

Referências bibliográficas

CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança”. In: Travessia Poética. 2011. Disponível em: http://travessiapoetica.blogspot.com.br/2011/01/aprender-com-danca-prof.html. Acesso: 20 nov. 2013.
FOGEL, Gilvan. “O desaprendizado do símbolo (a poética do ver imediato)”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, nº 171, pp. 39-51, 2007. Trimestral.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. “O problema da ‘Poética’ de Aristóteles”. In: Aprendendo a pensar. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1992.

Referência do ensaio no livro

PESSANHA, Fábio Santana. “Matéria”. In: CASTRO, Manuel Antônio de et al. (orgs.). Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.