Meus amigos, como divulguei aqui em meu blog, no dia dez de fevereiro ocorreu a defesa da minha dissertação de mestrado, intitulada A hermenêutica do mar em Virgílio de Lemos. Como é de praxe, os vinte minutos iniciais cabem a quem está sendo avaliado, portanto, preparei o texto abaixo para pronunciá-lo no momento adequado e, gostaria então, de compartilhá-lo com vocês. Fiquemos então com um pequeno momento do que ocorreu em minha defesa:
"Comecemos pelo poema com o qual termino minha dissertação. Este fez parte do projeto original do livro Para fazer um mar, que estudei em minha dissertação, mas acabou não entrando no conjunto de poemas que compõem tal obra. Quando terminava meu trabalho, ganhei de presente do poeta Virgílio de Lemos, em cuja obra me debrucei. É interessante começar assim, pois instauramos uma circularidade... Só uma pequena explicação a quem, porventura, não esteja a par de algumas referências moçambicanas: Ibo e Ouamisi são duas ilhas de extrema importância na poética e na vida do Virgílio de Lemos. A primeira foi onde o poeta nasceu, portanto, o lugar de onde ele nunca saiu, mesmo estando em qualquer outra parte do mundo. E isso percebemos em seus poemas. A outra ilha, Ouamisi, pela qual o poeta transitou, também deixou de ser apenas um lugar para ganhar permanência nos versos virgilianos, e ambas fazem parte do arquipélago das Quirimbas, situado ao norte de Moçambique. Portanto, feitas essas brevíssimas elucidações, é melhor começar minha fala a partir do poético, isto é, pelo poema que nos abre e nos encerra o diálogo, sem obviamente cravar aí um ponto final, fato que, na verdade, apenas inicia uma outra esfera dialógica:
"Comecemos pelo poema com o qual termino minha dissertação. Este fez parte do projeto original do livro Para fazer um mar, que estudei em minha dissertação, mas acabou não entrando no conjunto de poemas que compõem tal obra. Quando terminava meu trabalho, ganhei de presente do poeta Virgílio de Lemos, em cuja obra me debrucei. É interessante começar assim, pois instauramos uma circularidade... Só uma pequena explicação a quem, porventura, não esteja a par de algumas referências moçambicanas: Ibo e Ouamisi são duas ilhas de extrema importância na poética e na vida do Virgílio de Lemos. A primeira foi onde o poeta nasceu, portanto, o lugar de onde ele nunca saiu, mesmo estando em qualquer outra parte do mundo. E isso percebemos em seus poemas. A outra ilha, Ouamisi, pela qual o poeta transitou, também deixou de ser apenas um lugar para ganhar permanência nos versos virgilianos, e ambas fazem parte do arquipélago das Quirimbas, situado ao norte de Moçambique. Portanto, feitas essas brevíssimas elucidações, é melhor começar minha fala a partir do poético, isto é, pelo poema que nos abre e nos encerra o diálogo, sem obviamente cravar aí um ponto final, fato que, na verdade, apenas inicia uma outra esfera dialógica:
Ibo e Ouamisi
Da voragem das vagas
amor
eu serei os grãos de sal
de tua ausência
De teu corpo de sol
a luz
que faz e desfaz intemporal
o teu silêncio!
Virgílio de Lemos (1959)
Logo no início da minha dissertação, na página 17, escrevo o seguinte: “esta dissertação pede acalento de poesia, querendo ser o salto inconsequente nos braços dos poemas, tentando ser corpo com eles.” Devo dizer que esse foi o pensamento que norteou minha escrita, ou seja, pensar poesia significar ser com a poesia. Explicando melhor, não vi outra possibilidade de trabalhar com poemas senão deixar que eles me penetrassem. Isto mesmo! E se passa pela cabeça de vocês algum sentido erótico a partir do que falei, estão certos!
Era preciso ser lascivo, promíscuo! Dar a cara a tapas para os poemas, deixar que me comandassem, que guiassem minhas mãos sobre os teclados do computador. Mãos essas que teclavam e tocavam o corpo, o da poesia e o meu.
Por mais teorias que viessem ao diálogo, por mais letras que debulhassem minha caótica imaginação, meu corpo gritava para ser poesia e os poemas que chegavam aos meus olhos se abriram para que eu entrasse. Cada penetração era um gesto único, impossível de se repetir, de se reescrever, de se redizer. O momento singular de cada verso morava no instante em que seu brilho me escolhia como companhia. Cada volta sinuosa de uma palavra bem colocada, cada melodia de um verso torto gerava uma sinfonia de dissonâncias, às vezes difíceis de acompanhar.
O canto de um poema é algo sagrado para o qual se necessita devoção. Seja esta impura, profana ou dadivosa, são facetas de um mesmo: possibilidades múltiplas de um poema se dar, de acontecer virginalmente naquele oportuno instante. Talvez fosse o “instante-já” de Clarice Lispector, dando face à violência fugidia do presente quando se tenta captá-lo numa moldura; talvez fosse o caixote de uma onda, que nos surpreende ao nos arrastar para seu seio; talvez fosse o istmo entre canto e silêncio, dança e repouso, pálpebra e escuro.
O desafio estava proposto. Um calafrio aguardava minha queda para o profundo do mergulho. Para fazer um mar, este é o nome do livro sobre o qual me debrucei, este é o indício de uma obra que continua ainda a se realizar, este foi o sussurro que me rodeou em suas linhas e me teceu em versos. Sim, uma tessitura de nomes, palavras, frases e sintaxes que buscavam seu baque primordial, que me faziam questionar pelo meu próprio, ou seja, pelo que nunca poderia deixar de ser. Ser com a poesia, lançar-me à deriva de instituições ou identidades, códigos ou desajeitos de afirmações.
O mar se renova a cada onda, e assim, como ouvi de uma poeta certa vez: “uma nova onda é sempre antiga, é sempre a que vimos pela primeira vez.” Com isso, qualquer tentativa de se delinear o tempo em categorias lógicas se esvai, qualquer esforço de reter a realidade em nossa vontade está fadado à efemeridade conceitual. Então, tendo o mar como referência maior de meu trabalho, o estudo dos cinco sonetos que abrem o livro já mencionado de Virgílio de Lemos — o Para fazer um mar —, além de outras questões que compõem meu itinerário de diálogos poéticos, tiveram como horizonte os movimentos das marés se tornando unidade com o corpo.
Para que todos entendam como “organizei” meu trabalho, vamos imaginar o seguinte: uma paisagem belíssima, com ondas se chocando nas pedras e deserta na faixa de areia; mas ainda próxima à cidade, de modo que a cada passo que damos em direção à água o som das buzinas vai se distanciando e o das ondas aumentando. Chegamos bem perto da praia, arregaçamos nossa roupa até acima dos joelhos e deixamos, devagar, as marolas tocarem nossos pés, lambendo cada detalhe de nossos dedos, calcanhares e tornozelos. Esse é a hora da contemplação, quando nos encontramos em “maré enchente”, pois não deixamos de lado nada que antecedeu este momento, e sim trazemos tudo veladamente conosco. Portanto, estamos em preparação para o mergulho, contemplando o mar e nos colocando em exercício de escuta aos poemas. Conforme escrevi em minha dissertação: “Aqui encontramos o momento em que o corpo toca a superfície das águas, portanto, a queda na qual corpo e mar se dão a conhecer. Eis o instante em que a pele recebe o apelo do mar para ser penetrado e se erigir em turbilhões. Assim, penetrar é penetrar-se: o sagrado se faz presente.” Chamo de “maré enchente” porque a contemplação é uma preparação para a iminência do mergulho.
Na segunda parte, temos os ritos de submersão, ou seja, estamos em “maré cheia”. Aqui os cinco sonetos são interpretados. É onde corpo e mar estão em cadência de unidade. No sumário, escrevo o seguinte: “a hermenêutica do mar se realiza em consonância com as questões evocadas pelos poemas. Não sabemos mais quem é o corpo e quem é o mar, uma vez que estão fundidos na realidade que inauguram. Cada soneto é mais uma investida no que se encontra velado em seus versos”.
Passamos em seguida para “Vazante”, isto é, quando a altura da maré diminui, logo, o período entre a maré cheia e a baixa. Aqui se dá o retorno à praia. Portanto, saímos da água e trazemos “para a areia um corpo embebido de horizonte, no qual o sal, o sol, o tempo e a história fazem um”. Aqui penso questões pertinentes à poética virgiliana e trago outra possibilidade de trabalho. A saber, uma pesquisa por dados mais técnicos que dizem respeito à gestação de outros escritos, assim como dou referências de estudiosos que se dedicam à obra do nosso poeta.
Por fim, “Baixa-mar” é quando termino meu trabalho. Trago o poema “Ibo e Ouamisi”, este que li no início de minha fala, e me detenho a pensar as ilhas do Ibo e Ouamisi. Na verdade, encontro-me em transe poético por estar no princípio de um trabalho que não se esgota por aqui. A circularidade poética se faz presente, pois ao trazer um poema que encerra a dissertação, na realidade, ele concentra o início de todas as movimentações empreendidas neste trabalho. Conforme escrevi na página 165: “o que temos em Para fazer um mar é um verdadeiro percurso labiríntico pelas vielas da memória, pelos imprevistos de uma sintaxe poética em cuja referência está o salto abissal num azul infinito: o horizonte que risca o limite entre céu e mar.”
Esta foi a postura que adotei em meus escritos, ou melhor, assim penso que deve ser o trabalho com poesia seja dentro da academia ou — e o mais importante — na percepção da vida, do mundo que nos rodeia. Pois um olhar poético não é um ponto de vista abstrato ou dependente de averiguação teórica, um olhar poético é a decisão de se saber vivo, de se saber parte de um todo.
Penso numa promiscuidade mútua na qual o tempo se instala de maneira muito própria: poesia que roda na ciranda junto com o poeta, o poema e o leitor. E numa roda, a coisa necessária a se fazer é rodar, traçar o círculo no qual princípio e fim fazem um. Assim, trabalhar com poesia é uma investida de salto, uma queda à procura do que somos, e somente assim, um trabalho faz sentido. Não adianta atachar perspectivas prontas nas leituras que fazemos, de nada serve uma crítica que não faça referência ao nosso próprio, pois criticar está muito longe de apenas valorar, criticar é estar junto e discernir, fazendo parte de uma unidade que se quer sempre em tensão com o que está sendo, portanto, uma unidade instável, que se refaz a cada lampejo de realidade.
Algo que sempre pensei enquanto escrevia era que precisava ser tocado para escrever. Pois antes de ser um trabalho acadêmico, esta dissertação é um trabalho de vida, ou seja, cada ponto, cada vírgula, palavra, frase, linha ou página é um pouco do que sou. A cada capítulo completado, uma reflexão se dava não por eu saber mais ou menos a respeito do assunto tratado, mas porque mais um degrau rumo a mim mesmo fora alcançado. Não faz sentido um trabalho que não nos seja íntimo. Do contrário, seria apenas um acúmulo de papel e tinta, talvez com um pouco de ranço intelectual, mas que não leva ninguém a lugar algum. Não sei se levei alguém a algum lugar, mas eu, certamente, me aprofundei junto com as questões levantadas. Pois se foram percebidas é porque também eram minhas.
A partir da esquerda, os professores que compuseram minha banca examinadora: Drª. Cinda Gonda, Dr. Manuel Antônio de Castro e Dr. Antonio Jardim |
Não conseguia escrever uma linha sequer quando me punha a tentativas mais, digamos, técnicas. Mesmo assim, insistia, e fazia um pouquinho. Mas, depois que me cansava das horas perdidas, fechava os olhos e, aí sim, me punha a escrever. E aqui conto um segredo: havia momentos em que eu esquecia do poema ao qual me dedicava, do Virgílio, da faculdade, do mestrado e simplesmente me deixava planar com as palavras. Quando me sentia melhor, disposto a uma leitura mais acirrada, seja do poema ou de outro livro que se fizesse pertinente com a discussão travada em determinada etapa, lia o que havia escrito e conseguia me inspirar a continuar. Então, a partir daquele pequeno voo dentro de minha imaginação, a dissertação voltava a fluir. E depois percebi que nesses instantes de fruição, eu estava sendo o que eu conhecia.
Trabalhar um mar que não existe, que está sempre sendo feito, tal qual nosso corpo. É cansativo se empenhar em chão tão nebuloso, tão inconstante, tão indizível. Uma sensação permanente que me impregnava era essa: que realmente eu não poderia fazer de outra forma, pois a partir do momento em que eu me sentisse aliviado por encontrar um porto seguro, meu trabalho teria morrido. Poesia e porto seguro são palavras que não combinam. Trabalhar com poesia é estar o tempo todo se equilibrando na beira de um abismo. Só que, ao contrário do que o seguro senso comum defende, devemos nos jogar de peito aberto nessa queda. Só rasgando o mistério do abismo é que conseguimos chegar mais perto do que nunca será alcançado. A questão é: escolhemos isso ou fomos escolhidos para isso?"