8 de maio de 2009

Um caso de poema perdido

O trânsito das ruas e as vielas do pensamento insurgem obscuras na algibeira do acaso. Nenhum negrume, verme encaixotado, se alarga na dimensão do horizonte. Este, linha que costura a infâmia do vir-a-ver, surpreende o mais atento encarnado de fábulas e objeções; pega o repentino momento de aclaramento das ideias e zapt: o espanto toma o poeta e convoca o nascimento trágico de ser!


Para além das ontologias des-dizentes o poema se coloca firme ante a voz. O alumbramento da fala encara o silêncio no anteparo da razão... Esta, coitada, esvai-se em conceitos e deturpações subjetivas... Um caso de poema perdido, uma sala ocupada de nada: o ventre livre e cheio de nascividade.


O poeta atende ao chamado e se põe a falar: canta o canto musal em plenitude de memória. Mnemosýne e Musas numa orgia de versos, gestos e silêncio. Thaumadzein!... E o poeta irrompe em mundo! A poíesis coloca-se no incesto do dizer, pois doa e retira a fala de sua boca num aletheiamento inesgotável de sagrado e profano: circulares movimentos de velo e desvelo: consumação.


Consuma-se a fala na linguagem, consuma-se o rio no mar... nos consumamos em ser o que somos no apelo ao sagrado:


A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.


Basta existir para se ser completo.


(PESSOA, Fernando. “Dos poemas inconjuntos”. Poesia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1970, p. 66)

2 comentários:

Tânia Souza disse...

"Consuma-se a fala na linguagem, consuma-se o rio no mar... nos consumamos em ser o que somos..."

Por estas e tantas que gosto do que escreve! Hei ficar perdida na paisagem de cada despalavra daqui..

iap disse...

Chego através do nome deste que gostei, chego também porque me procura no "sonico". Não tenho o seu contacto, mas através deste:

http://inezandradepaes.arteblog.com.br/206837/CONSINTO/

Podemos contactar,
Inez Andrade Paes