13 de janeiro de 2009

Interpretação do poema "Retórica", de Octavio Paz



Retórica


1

Cantan los pájaros, cantan

sin saber lo que cantan

todo su entendimiento es su garganta.

2

La forma que se ajusta al movimiento

no es prisión sino piel del pensamiento.

3

La claridad del cristal trasparente

no es claridad para mi suficiente:

el agua clara es el agua corriente.


Numa postura de escuta atenta ao que o poema nos diz e nos incita a pensar, observaremos em sua forma a ambigüidade da negação. Ou seja, ao mesmo tempo em que o mesmo ajuíza em seu título a conformidade do pensar retido ao formato, as questões levantadas por ele esfumam tais certezas.

A palavra retórica conceitualmente nos leva ao entendimento tanto do bem falar premeditado a um fim quanto à verborrágica desmedida da redundância. Desta maneira, o poema ambigüiza o caráter convencional do enunciado com a desfeitura de seu sentido comum, pois quando nos debruçamos na estrutura tripartida do poema, lançamo-nos na dimensão do desencascamento por ele explicitada. Isto é, retiramos a “pele” do convencional para nos entregarmos à fala do poema em três momentos muito bem demarcados: a linguagem; o corpo; o pensamento. No desenrolar deste pequeno texto, observaremos mais calmamente os movimentos aqui cogitados.


1: a linguagem


Sem saber o que seja o canto, os pássaros simplesmente cantam. Corporificam no desentendimento de ser a plenitude de seu corpo sonoro: “todo su entendimiento es su garganta”. Nãorazão que determine o cantar, posto que este não precise de conhecimentos prévios para se realizar.

Neste primeiro movimento, a ruptura com o sentido comum que o título abarca é explicitada quando a necessidade de um conhecer racional é posta abaixo. Este conhecer racional é sempre posposto à coisa mencionada, haja vista a insurgência empírica como fundamento do saber moderno. A adequação de um enunciado com sua descrição perfeita convoca a verdade enquanto mecanismo maniqueísta, isto é, nãoambigüidade entre certo e errado. Estes são sempre a fronteira previamente estabelecida pela razão.

A negação que o poema eleva é o da ambigüidade, na medida em que o não-saber não é uma mera negação ao saber, ou seja, não é um movimento esvaziante de sentido. Muito pelo contrário, o não-saber é o que propicia a sapiência. Pois saber algo é morar na sua anterioridade, é ouvir o silêncio no qual residem todas as palavras ainda não ditas. A excessividade do silêncio doa todo o cantar e, no canto, o silêncio se fundamenta veladamente. A linguagem atravessa o homem (Cf. Heidegger: 1995); canto porque, antes, há linguagem e esta inaugura a fala a cada momento de sua enunciação. Assim, canto e silêncio acontecem exatamente no mesmo instante enquanto movimento circular de velamento e desvelo.


2: o corpo


Neste segundo mo(vi)mento, o poema galga uma outra etapa do desencascamento do racional.

A fim de situarmos nossa discussão, pensemos o sentido de pele: é aquilo que encobre o corpo e se ajusta à sua movimentação. Alarga-se, encolhe-se, sua, recebe o corte e sangra. Não age sozinho, mas segue o movimento do que se vela sob sua proteção. Contudo, pensando numa instância tátil, se não fosse seu abrigo, o corpo orgânico se esfacelaria. O poema conjunta a tradição da formalidade com a dinâmica da acontecência poética, isto é, os dois versos do segundo movimento acabam com a dureza de uma estrutura calcificada e a entregam à tensão de uma constante movimentação.

Se pensarmos na modernidade hispano-americana, poderemos perceber que a forma “no es prisión” não se restringe a um desenho estático, mas se desenha a cada traço rabiscado. Então, podemos também dialogar com o fato de que tal modernidade se funda numa oposição antiopositiva, exatamente por não se polarizar antagonicamente, mas se imiscuir na ambigüidade dos opostos que não se contradizem, e sim, complementam-se.


3: a clareira do saber e não-saber


Neste último movimento, a circularidade poética se faz evidente ao retomar a questão da primeira estrofe. A claridade não é o saber racional típico de uma era iluminista. Esta tradição é desfeita no jogo semântico entre a claridade do cristal (a razão) e a insuficiência de sua substância ao conhecer (o pensamento).

Se pensarmos pelo viés do saber empírico, a suficiência se dá quando uma medida previamente estabelecida é satisfeita; quando a adequação entre uma coisa e seu enunciado se acoplam perfeitamente. Mais ainda, quando a retórica se fundamenta na verborragia redundante de conceitos.

A imagem do cristal como representatividade racional é questionada no momento em que não ocorre a adequação: “No es claridad para mi suficiente”. A insuficiência se dá na necessidade imanentemente humana de sempre saber mais. E este saber não como acúmulo de conhecimento, mas como experienciação do imprevisto.

A claridade da água é contraposta à claridade do cristal para avultar a dinâmica supramencionada. Isto é, a primeira nos diz o trânsito; o sentido referente à dupla insurgência do que se mostra na luz e volta a se velar na escuridão. Eis a inconstância do poético quando em seu dizer originário (a poiesis) congrega o agir primordial. Ou seja, “o alcance, o sentido e a essência do agir. A esta os gregos denominaram poiesis” (Castro: 2005, 23).

Neste poema temos a desfeitura do convencional na simplicidade de três movimentos que, na particularidade de cada núcleo – o canto (linguagem), a corporeidade da forma e o saber (claridade) –, engendram a grandiosidade do pensamento poético.


Referências bibliográficas


CASTRO, Manuel Antônio de. Heidegger e as questões da arte. In: ______ (org). A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

PAZ, Octavio. Retórica. In: Condición de nube, 1944.

2 comentários:

fernanda disse...

porra, fábio, você é foda! já interpretou justo o poema que eu peguei aqui em fundam!

vou roubar.

Fábio Santana Pessanha disse...

Não dava para não interpretá-lo! Este poema é muito bom!