31 de janeiro de 2008

Virgílio de Lemos na singularidade ambígua do entre-ser

Virgílio de Lemos é o poeta moçambicano em cuja insularidade avultam seus escritos. O sagrado se mostra em disputa com o entre-caminhar do interstício velado na entridade vida-morte.

Comumente, sua questão maior é envolta pelo que se chama heteronímia, ou seja, o fato de se cindir em outros poetas que repercutem seu diálogo com o silêncio do poetar pensante. Assim, temos Duarte Galvão, Lee-Li Yang e Bruno dos Reis.

Ao primeiro, Duarte Galvão, prefiro não reconhecê-lo como mero heterônimo de um criador ortônimo, dando-o reconhecimento pela inaugurabilidade de sua presença. Sua densidade poético-ontológica muito se evidencia; seu operar poético não se restringe às questões sociais. Este poeta integra a universalidade do mundo enquanto manifestação inaugural do tempo, portanto, como história. Seu teor poético-filosófico se instaura numa moçambicanidade que floresce num habitar mundificante do extra-ordinário:


METAMORFOSE*

(Ao Zé Craveirinha, Rui Knopfli e Américo Nunes)

Larvas de vulcão

ionizados plasmas

mamíferos corrosivos

de erosão

cabeças de heresia

pernas de verbos

e línguas de audácia

ensaiam

gestos mágicos

almofadados

de possessão

e tragédia.


Isolado

um berimbau de penas

- memora musical -

perturba

voraz

teu reino submarino

tua música

de segredos.

Primavera de coragem

margem

de desencanto.

(Duarte Galvão, Lourenço Marques, 1962-63. Figura no livro inédito “Entre Muros” e no “Eroticus Moçambicanos”, publicado no Rio de Janeiro com organização da Profª Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco)


Em se tratando da macaense Lee-Li Yang, temos uma orgíaca relação em que mar e terra se fundem no agir poético de versos que clamam um acontecimento mnemônico. Seu corpo vigora na acontecência do diálogo com a ausência presentificada no poetizar, isto é, sempre em um duplo, Lee-Li con-voca Duarte Galvão. Noutras palavras, em si, sua poeticidade se manifesta dialogalmente, cuja dor de amar se dá no enlace com a ausência de Duarte Galvão e a presença do mar corporificado, como vemos no seguinte poema:


QUATUOR DO MEU INDICO

Para Reinaldo Ferreira, Manuela Arraiano, Pi Matos, Marcos Leal e Virgilio de Lemos.

1.

é nua sobre a cama que te espero noite e

enquanto o diabo me nao liberte

nao me perca e se perca –

meu fragil coraçao de anjo e bruxa

reclama a quatro patas teu vendaval

de caricias e loucuras teus

clarins de guerra.

2.

Nem estou inquieta nem morro de tédio

nenhum estuario de obsessoes

me inspira

nesta minha perseguiçao do que nao sei

mas adivinho

caudais das chuvas de fevereiro e

março erros e omissoes amores e

desilusoes.

3.

Na furia da paixao estrangulo

o louva-a-deus sonambulo entre

minhas coxas em busca do tempo

perdido e solitaria radiosa e

bela deixo que esta minha

simplicidade no poema

me supreenda.

Que outros vestigios que outros

sinais da minha elegancia

macaense laurentina meio inglesa

osmose entre uma mulher e

um mar-so-poesia.


O terceiro poeta é Bruno dos Reis. Embora não tenha livro publicado, seus escritos se encontram perdidos em publicações avulsas ou ainda guardadas no ineditismo. Entretanto, tenho o privilégio trazer ao conhecimento dos leitores um haicai (haiku) que nos coloca diante de um pensador ciente da entridade que é estar vivo, na quase submissão ao inesperado do acontecer:


Tua sensibilidade e teus impulsos sao quartos vazios

onde inda nao entraste : osmose entre amor e morte !

Foge a regras e astucias : simples e polido teu diamante!


Bruno dos reis 1956 Durban pedaços de papel !


Percebemos um poeta-pensador que singulariza sua diferença na identidade que é a permanência do ser no estar-sendo. Não indo, neste momento, tão a fundo em sua poética, temos o suficiente para podermos observar na imagem-questão do diamante a experiência daquele que pensa e se lança no não-saber, proveniência de todo saber. Diamante enquanto palavra é composto pelo prefixo grego diá-, que significa entre e por -mante, vindo do grego mántis, significando aquele que advinha, que profetisa. Dito isto, temos que a imagem-questão do diamante nos revela aquele que pensa radicalmente imerso no velamento do que se desvela, na medida em que se entrega ao não-saber, ao vazio, ao nada enquanto originários de sentido, enquanto lógos, linguagem.

Este pequeno texto é apenas parte de um estudo que venho desenvolvendo acerca da poética de Virgílio de Lemos. Que, enquanto ele-mesmo, também profetisa no sentido cosmogônico desta palavra. Isto é, pondo-se na aurora do viver, se re-configura a cada verso que dinamiza as entre-vias do caminhar poético, uma vez que re-configurar é estar junto (-con-) na figuração enquanto fingere (-figurar, dar figura a partir da terra enquanto doadora do que se molda originariamente) da coisa que se põe (re-, do latim res):


NO DELÍRIO DA UTOPIA (forma de interrogação)

1.

Eu, Virgilio, nao serei o unico

Poeta

A demitir-me da utopia:

Dela nao prescindo!

Meu desafio horas que sao vida

Na fugosidade de acordados

Sonhos.

Nao serei Kafka Cavafy nem Pessoa

E Drumond, nem mesmo

Rimbaud

Nao serei o unico poeta que

Se interroga, desorientado, sou e

Serei Orientes no entardecer

Vampirizando a noite

Volupia da melancolia

Alegorizando savanas, cidades e

fundos do mar!

2.

Almas

Do vazio e do absurdo,

jovens kamikazes

embriagados por mil e uma noites,

religiosos euforizantes

cristos crucificadas almas

assexuados profetas

do crime sem horizontes

nem limites.

3.

Luz cega da noite

Mais branca que a alma

Sem pernas e sem braços

Mais branca que

fronteiras sem muros,

Cristos do absurdo

Obscuros cerebros

Do Nada

nodoas clandestinas

na grafia dos quartos sem luz

nem sol,

nas parabolas e lendas de

nossas avos

noite adiante

à luz da lua e à luz

das velas

quando era a mùsica

do silêncio

que nos embalava

o primeiro sonho !

4..

Novos kamikazes anjos

no delirio da utopia

sem morada utopia

musical, farsa

de absurdos no fascinio

da morte !

Inocentes estilhaçados

nos campos de arroz

nos bairros da lata

onde vivem os que sofrem miséria

Silencio das revoltas sem nome

Que negam a mortifera loucura

Dos fundamentalismos

Tenham as côres

Que tiverem.

Vozes

Na transformaçao dos limites

Avidos silencios que se vestem

de gritos inchados de solidao e

tragedia.

Delatores e déspostas

Se dao as maos

Nos arranjos que o medo

autoriza

Sem lugar para almas puras

E sublimes.

No riso da noite, anonima

a solidao é

Um kamikaze no delirio

Do seu sonho!

Raros Orpheus buscam

Nos escombros

Enigmas: misterios e

Magias!

A musica é a alma

Do desejo

Que em teu corpo escreve

Suas primeiras notas!

Sangue e alma talvez premissa

adiada de Whitman e

Garcia Lorca!

Virgilio de Lemos Napoles / Procida 10 a 16 de Outubro 2007

(Para Marco Luchesi, Livia Apa, Jessica Folconi, Elsa Morante)


Enfim, este texto é apenas o prenúncio de um estudo ao qual me dedicarei num caminho fundamentalmente hermenêutico. Nas leituras que seguirão, a interpretação será o movimento que aguardará o thaumádzein, ou seja, o espanto com o qual me lançarei em diálogo com a originariedade do pensamento grego. Assim, a travessia se dará na simultaneidade do leitor-autor de uma poesia densamente concretizada na e pela linguagem. Esta como doadora da manifestatividade de entes da poíesis, no fulgor do agir vislumbrado nas pausas e entrelinhas de cada verso.

*Todos os poemas citados respeitarão a escrita e pontuação utilizada pelos poetas mencionados.

7 de janeiro de 2008

Atravessamento (pequeno silêncio de uma grande ausência)

Transitável como o infinito em transe, o momento é o do repensamento.
Travessia.
A cisão que desune o nunca unido é agora o irremediável...
Finalmente o irreversível desfaz sentido
E é na refeitura do descaminho que trilho agora às escuras...

A poesia nunca fez tanto sentido
A flor que floresce só por florescer nunca esteve tão flor,
Tão sem-saber.

E agora?
Passou e sempre passará...
Atravessamento:
Pequeno silêncio de uma grande ausência.

Fábio Santana