Eis o texto:
O AMOR ORIGINÁRIO: RE-UNIÃO NO LOGOS
Fábio Santana Pessanha
Bacharelando Português-Literaturas / UFRJ
Apelar para o “isto” na questão “que é isto – o amor?” é se dizer sem ortodoxia, sem resposta certa, sem certeza. Noutras palavras, é tentar penetrar a discórdia na harmonia do que é certo, estático, estagnado. A harmonia é a disponibilidade de um ser para com o outro. Portanto, é amor. Sendo assim, qualquer possibilidade de estagnação é desfeita quando a harmonia entre dois seres se dá no movimento constante do “entre” para o qual o “isto” aponta. Harmonia não é sinônimo de passividade, mas sim, o vigor da correspondência ao apelo da linguagem. O que é isto – o amor? Aqui não se responde o amor, questiona-o na dimensão do “isto”, ou seja, o “isto” é o amor sendo questionado e neste “sendo”, o amor carrega toda a dinâmica de um acontecimento. Neste sentido, é algo que não se extingue, mas que se perpetua em todo percurso do amar. Então, o “isto” é o amor além de uma caracterização que sempre parte de uma fonte externa no discurso corrente.
O “isto” que, para nossa ocidentalidade contemporânea, gramaticalmente é um pronome demonstrativo, revela aquilo que se quer evidenciar, ou como redunda a definição, o que se quer demonstrar. Logo, figura-se um gesto de desvelamento ao se apontar para aquilo que se queira visto. Numa outra acepção, o “isto” é um caminho, é a vereda na qual erramos na medida em que desde já estando dentro, ratificamos o adentrar num percurso de pro-cura do que nos é próprio. Por este viés, o suposto pronome demonstrativo “isto” larga sua indumentária conceitual que o fixa apenas em demonstrar algo e passa a tangenciar a possibilidade da posse, não como aquisição, mas referente ao que desde sempre possuímos. Então, revela-se a proximidade entre aquilo que aponta e aquilo que já se tem. Assim sendo, já se ter não é uma acomodação material que objetifica sua posse, mas é uma possibilidade, um caminho onde o que é próprio só se torna propriedade na medida em que se consuma um caminhar. Logo, é um próprio que se apropria quando nos lançamos à pro-cura do que é nosso, mas que tal propriedade só se dá enquanto movimento. Posto que o apropriar-se é um gesto contínuo. Daí que a aproximação entre demonstração e posse se dá na tensão, na identidade da diferença de cada um. Pois, o “isto” ao demonstrar nos rouba da inércia e nos lança no agir da pro-cura.
Pensando o “isto” enquanto amor no fragmento 123 de Heráclito de Éfeso, ou seja, em “Physis kryptesthai philein”, ao questionarmos “o que é isto – o amor?”, lançamo-nos na questão derradeira de nosso existir. Somos entes recolhidos no ser do homem enquanto buscamos nossa humanidade. Como vivos mortais encerrados num organismo corporificado, atentamo-nos à escuta do amor enquanto proveniência. Posto que somos seres liminares e amamos descalços do jugo cristão do amar. Não amamos porque obedecemos a uma ordem ou porque assim foi escrito. Não. Amamos porque nos movemos desde sempre no amor, na medida em que este nos antecede e nos abraça ao iniciarmos nosso ciclo de existência terrena. Assim, “philein” reúne o que somos e não somos na harmonia da correspondência ao Logos, no íntimo do paradoxo enquanto ensinamento recíproco desfabulado de antíteses e na originariedade advinda dos seres vigentes no e oriundos do amor. Pois quem ama se encobre enquanto amante à espera do ressurgimento do outro. Temos então que o amor não seja só a originariedade de todo existir como seja também a densidade do entre-dois-seres. Este “entre” nos revela a reciprocidade, isto é, a condição de dois seres se amarem na conservação das diferenças de cada um. Já que cada ser é único e, portanto, estabelece de forma completamente inaugural seu diálogo com a linguagem. Cada diálogo é uma possibilidade de fala, logo, de correspondência enquanto ente ao ser que o recolhe. Tal correspondência é, portanto, a dis-posição à voz do ser em cada ente, uma vez que a voz do ser instaura a abertura determinante da reciprocidade do ente ao ser.
Na tradução de Emmanuel Carneiro Leão para o citado fragmento 123 de Heráclito, temos: “Surgimento já tende ao encobrimento” (HERÁCLITO, 1980: 137). Neste caso, podemos entender o amor, “philein”, como “encobrimento”. Isto é, como retraimento para algo que logo surgirá. Então, o que provocará a manifestação de tal surgimento? Como poderemos percorrer este caminho que nos parece proposto por uma tensão entre encobrimento e descobrimento?
Quanto ao surgimento do que antes se velara, o importante não é saber a causa, e sim experienciar a dinâmica de tal tensão, posto que seja primordial ao acontecimento do amor. Neste sentido, apenas saber a causa significa tomar uma posição de afastamento da questão quando, em vez de questionar em seu ínterim, estaremos vigendo nas relações comuns da dialética, ou seja, partindo de um determinado conceito para desaguar no desenvolvimento de outro que teria por fim explicar o início. Fugiremos, portanto, deste jogo que nada tem a nos oferecer além do exercício da retórica. Assim, não nos é possível determinar o fator responsável por aquilo que surgirá. O que devemos fazer é nos deixarmos possuir pela questão.
Considerando a tradução do professor Carneiro Leão, “surgimento” e “encobrimento” são o mesmo em desdobramentos diferentes, posto que toda tentativa de surgimento já é um esforço ao encobrimento. O que nos permite este pensamento é o verbo “tender”, já que este indica um movimento inconcluso, que ainda está por alcançar uma determinada meta. Por isso, um esforço, um movimento que está em andamento, que tensiona um percurso. Tanto o surgir como o encobrir vigoram no tempo (“já”), quando se descarta a via cronológica de acepção temporal. Daí que o princípio do surgimento já está completamente tomado pelo esforço do encobrimento, posto que surgir é uma tendência do encobrir.
Logo acima, foi mencionado que “philein” enquanto amor é encobrimento. Então, num diálogo com o pensamento grego e com a tradução do fragmento 123 de Heráclito feita pelo professor Carneiro Leão, é possível entender este encobrimento como o recolhimento de todo ente no ser, haja vista a dinâmica do entre-surgir-encobrir em íntima ligação com um acontecimento que nos é radicalmente humano: nascimento já tende à morte. Somos seres-para-a-morte na vigência do amor como a unicidade para a qual somos convocados. Exatamente isto: somos con-vocados. Recebemos o chamado para estarmos juntos em correspondência ao Logos, por isso amar é também uma escuta em que, mais uma vez, devemos deixar de lado a coerência da lógica metafísica ao nos livrarmos da adequação auditiva restrita pelo sistema físico de nosso corpo humano. Então, devemos ficar atentos à diferença que pode parecer muito sutil, mas se torna gritante à medida que no aproximamos, ou seja, devemos nos atentar à diferença entre “corpo humano” e “corpo-humano”.
Em “corpo humano” temos duas palavras de classes distintas em que uma se subjuga a outra, ou seja, temos um substantivo (“corpo”) que vigora como núcleo à espera de qualquer determinação ou caracterização promovida, por exemplo, por um adjetivo (“humano”). Este é o sistema gramatical comum no cotidiano da racionalidade binária em que observamos sua funcionalidade atrelada aos pares opositivos e aos sistemas comparativos de adequação, isto é, cria-se um modelo, um paradigma responsável pela nomenclatura de uma sentença. Assim, quando uma dada seqüência vocabular se enquadra em tal modelo, esta passa a vestir a indumentária terminológica de tal paradigma eleito. Logo, é um sistema que reduz o pensamento ao raciocínio da acomodação conceitual.
Em “corpo-humano” não temos mais duas palavras antitéticas ou duas classes gramaticais que se relacionam subordinativamente. Temos a expressão da ambigüidade na medida em que “corpo” e “humano” se fundem enquanto eclosão significativa livre da pré-formatação paradigmática. Assim sendo, “corpo” se lança para além do caminho unidirecional do substantivo enquanto conceito gramatical e vai dialogar com a originariedade do pensamento grego: corpo é “hypokeimenon”, é aquilo em torno do qual se reúnem as características de uma coisa, sem recair num somatório de feições. Logo, é a essência, o fundamento como fonte sobre o qual se pensará o que origina em articulação com o que é originado. Entretanto, ao passar pela tradução latina, tornou-se aquilo que entendemos hoje como sujeito, como aquele que age (Cf. HEIDEGGER, 2006: 11-12). Da mesma forma, “humano” é o que é na tensão com “corpo”. É a ruptura da hierarquização do antagonismo dialético, pois tanto funda quanto é fundado pelo corpo. “Corpo-humano” é a desmedida do contorno ideal de uma definição, uma vez que se embriaga do pensamento poético na habitância do “entre”, posto que, separadamente, não é nem corpo e nem humano, mas o são na concrescência da inaugurabilidade poética.
Enquanto corpo-humano que sempre pro-curamos ser, amamos. Entretanto, o que é isto – o amor? Como questão primordial, aponta para a proveniência do que somos quando nos permite extrapolar o fio-condutor de todo perguntar. Daí que devemos sempre perguntar pelo “isto”, portanto, dialogar com o pensamento grego. Ou seja, como Heidegger nos clarifica, ir além da satisfação responsiva de uma dúvida que pergunta apenas o que seja alguma coisa, posto que “A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente” (HEIDEGGER, 1989: 15). Neste sentido, perguntar “o que é isto - ...?” é uma aproximação do “tí estin” grego. Sendo o amor o “isto” para o qual caminhamos, não procuramos apenas um amor romântico que satisfaça nossos desejos espirituais ou físicos conforme a separação metafísica que nos é tão comum, mas o amor que nunca se dirá por completo já que é infinito e doador de nossa origem: Logos.
Em se tratando do amor no vigor dialético, Platão nos presenteia com “Fedro”. Eis um diálogo em que o amor se entrega ao “páthos” como divisor de águas, ou seja, este é negado num determinado momento e logo depois é louvado, pondo a loucura como dádiva dos deuses olímpicos. Todavia, como podemos observar, há dois caminhos que se opõem: um negativo e outro positivo. Então, de posse dessa leitura, não seria propenso ao esvaziamento o entendimento meramente dialético de tal obra? Queremos dizer com isso que devemos ter muito cuidado para não cairmos nas malhas do corriqueiro “Platão acadêmico”, inventor dos mundos ideal e inteligível. Daquele que opõe poetas e filósofos num discurso simplório, alvo de filosofices. Portanto, devemos retomar a questão: o que é isto – o amor? O que é o “isto” enquanto amor?
O “isto” enquanto amor nos parece uma permanência, já que no fluir do amor, o “isto” é toda possibilidade de pensá-lo para além de uma estagnação metafísica. Neste pensar, entregamo-nos por completo. Experienciamos e sentimos o amor na radicalidade do seu não-ser, ou seja, a dinâmica de sua tensão é a vigência do amar. Não amamos só quando queremos alguém, até porque este querer é uma apropriação do outro, anulando-o como ser. Por isso, damos voz às palavras do professor Manuel Antônio de Castro (Titular de Poética da UFRJ) proferidas em uma de suas aulas: “Todo amar é uma renúncia. Esta renúncia é deixar o outro ser e não tê-lo”. Assim, dialogamos com Platão quando, em “Fedro”, percebemos o “entre” do amor. Em outras palavras, em tal obra nos é oferecida uma dentre várias vias de leitura, ou seja, o amor num arrebatamento do “páthos”. Neste sentido percebemos o vigor do entre-amar quando se dá enquanto desmedida de um querer (paixão erótica) e se retrai enquanto silêncio do ente em dis-posição à voz do ser: “a loucura inspirada pelos deuses” (PLATÃO, 1986: 53). Esta loucura é o entusiasmo, sendo que este não ocorre só mediante o pensamento grego ou na fluência do mesmo enquanto filosofia. Entusiasmamo-nos em nossa abertura ao apelo da linguagem, ao sermos poetas enquanto nos entregamos a um questionamento, quando deixamos o outro ser o que é numa relação amorosa – uma vez que este amor é amplo e nos abarca na divergência do existir. Então, ao considerarmos o entusiasmo em sua origem etimológica, entendemos se tratar de uma possessão divina (“enthousiasmós: o ser inspirado por deus”), possessão esta para a qual devemos estar sempre abertos em vez de nos obliterarmos em vazias subjetividades. De outra maneira, o “isto” do amor conduz na liberdade do aberto a coletividade harmônica da correspondência entre seres. Deparamo-nos com um caminho não redutivo às verbosidades de cunho sentimental em que o amor é a resposta a um querer que convoca o outro à liturgia das emoções, ou seja, o amor se dá como um fechamento à escuta na surdez de uma necessidade orgânica. Nesta perspectiva, amar é sufocar o outro com a rotina da satisfação física.
Como dissemos acima, o diálogo com “Fedro” nos leva ao “entre” do amor. Então, em vez de aceitarmos comodamente um amor opositivo na densidade do “páthos”, encaminhamo-nos à leitura subtrativa do rotineiro. Isto é, mais do que aceitar uma modalidade patológica – insensatez racional “versus” delírio divino – o “isto” do amor nos chama a trilhar a complexidade do que é e não é do amor, portanto, do “entre”. Só este percurso nos direciona para a plenitude do amor, não que exista apenas uma via de acesso ao mesmo. O que queremos enfatizar é que só singrando no com-plexo do amar é que experienciamos a radicalidade daquilo que nos possui, uma vez que com-plexo nos remete à palavra latina “plex” (dobra), indicando-nos as dobras, as flexões ou os desdobramentos do amar (Cf. JARDIM, 2005: 82). Ao percebermos o com-plexo, abrimo-nos aos desdobramentos do amor enquanto ação e retraimento da luminosidade amorosa.
Se pensarmos em desdobramentos, inevitavelmente traremos à discussão a questão do principiar, posto que para que algo se desdobre, antes e em todo seu percurso, é principiado. Daí que o principiar não é aquilo que se apaga no intervalo entre o começo e o fim, e sim a proveniência originária do próprio caminho enquanto pro-cura. A culminância do princípio é o “telos”, o que não significa ter a busca chegado ao fim, pois o “telos” só se dá como objetivo na convergência do princípio. Isto é, a única coisa que resta ao fim é começar novamente e este recomeço é o contínuo percurso do princípio. Então, o começo é o que se apaga no caminho enquanto o princípio é a clarificação deste caminho na pro-cura do “telos”. Poderíamos, neste caso, pensar que nosso telos é o amor?
Quando o amor nos apraz e nos direciona à plenitude da felicidade, sentimo-nos completos, satisfazemo-nos na humanidade a que pertencemos por estarmos sendo o que somos. Com isso, entendemos essa felicidade além de uma satisfação subjetiva em que o corpo em êxtase seria o apogeu do sentir. Para sermos o que somos, devemos nos colocar abertos ao recolhimento no ser e atentos à voz da linguagem, na medida em que ao procedermos desta forma nos apropriamos do nosso destino enquanto pro-cura do ser que somos.
Deixar o destino nos percorrer não significa entrarmos em letargia, mas agirmos em abraçá-lo à medida que por ele formos abraçados. É também uma escolha, isto é, não tem a ver com o sentido de espera passiva dos acontecimentos ou com a vontade de cada um, mas com o caminhar na trilha que se abrilhanta a nossa frente e se obscurece na proporção de nossos passos, portanto, tem a ver com o habitar do entre-escolher-e-ser-escolhido. O destino tanto mais se manifesta quanto mais se retrai enquanto nos entregamos na ambigüidade do viver. E mais, este viver é a dinâmica da vida se doando poeticamente a nós: entes recolhidos no ser, posto que o sentido poético da vida está na inaugurabilidade que vigora em todo crepúsculo. A cada noite que se espraia guardiã dos mistérios intimidados pelo dia e a cada dia que consome a soturna presença das sombras, revela-se a novidade do originário, a potência essencial de tudo aquilo que não se calcula, haja vista o desvínculo da atitude racional. Desta maneira, aqui retomamos “physis kryptesthai philein”.
Physis é a densidade máxima da vida em cada momento de nossa existência, uma vez que “Existir vem do latim ex-sisto que diz elevar-se para fora de, elevar-se acima de” (JARDIM, 2005: 56). Deste modo, é-nos evidenciado o sentido de mudança contínua, posto que estamos vivos e nos damos poeticamente. Logo, amamos.
Kryptesthai é a permanência daquilo que se move, daquilo que muda. No entanto, como relacionar mudança com permanência, já que nos parece uma relação um tanto paradoxal numa primeira leitura?
Uma coisa muda, porém continua sendo a mesma num desdobramento que não cala o princípio. Por exemplo, o homem enquanto ente nomeado e identificado como tal não deixa de sê-lo ao envelhecer. Eis aí o velar-se. Kryptesthai é o retraimento da vida no caminho de sua iluminação, já que potencializa tudo aquilo que virá a ser. Então, só permanecendo enquanto silêncio é que poderá se dar como revelação da vida.
Articulando o que fora agora dito tanto sobre physis quanto sobre kryptesthai, ou seja, sobre a mudança contínua e a permanência daquilo que muda, desaguamos em philein, no amor. O amor é o sentido mais radical da ambigüidade entre mudança e permanência, uma vez que revela nossa condição de pro-cura do apropriar-se do que somos enquanto buscamos nossa humanidade. Philein é o amor que reúne as diferenças, que nos excede na tensão entre surgimento e encobrimento enquanto vida e morte. Portanto, pensar o amor enquanto “isto” na dimensão do diálogo com o fragmento 123 de Heráclito; com “Fedro”, de Platão ou com Heidegger no ensaio “Que é isto – a filosofia?” é uma possibilidade de pensamento sobre aquilo que não se esgota ao nos realizarmos humanamente: o amor.
Referências bibliográficas
HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a Filosofia? Tradução de Ernildo Stein. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
________. A origem da obra de arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. Mimeo. 2006.
HERÁCLITO. Fragmentos – Origem do Pensamento. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980.
JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005.
PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
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