abstrai-se abstrai-se a cama
vazia abstrai-se o luto
abstrai-se o lampejo dos
seus pelos nos meus da minha
pele na sua fala-se às
escuras ama-se às avessas
moldam-se os lençóis nas curvas
de um corpo que não mais está
aqui que deixou um rastro
de presença na memória do
meu toque que acorda na fúria
de um pesadelo repentino
que deixa o dia anoitecido
nas horas de inverno abstrai-se
abstrai-se a abstenção cala
a forma fugaz da mão que afaga
a quentura vazia de um
lugar antes preenchido sente
a névoa oblíqua da presença
que um dia foi um corpo pesado
sobre o meu que um dia foi a
partilha de segredos a
olhos entreabertos pelo sono
que um dia foram as horas
de um filme interminável no
apartamento vazio abstrai-se
relevam-se os braços quando
não há mais pescoço para se
envolver as mãos quando não
há mais dedos para se enroscarem
em figuras indizíveis abstrai-se
o dia em que noites eram fuga
em que tardes eram ilhas
no meio de tantas palavras
ditas de tantas falas frias
abstrai-se abstrai-se o
firmamento das horas dos
instantes do fogo que ardia
lento durante nossas bocas
abstrai-se a lembrança de uma
abstração do que poderia
ter acontecido dos cabelos
que deixaram de amanhecer
largados em meu ombro que
não desceriam mais pelo meu
peito até o lugar em que serão
apenas um monte juntado
ao lixo abstrai-se abstrai-se
abstrai-se abstrai-se a
“celebração de tudo que é
incompleto”
fábio pessanha