12 de fevereiro de 2016

Quando somos instantes num poema inacabado...

*Texto originalmente postado em minha página Verbo In-Verso, na Obvious Magazine.

O que diferencia uma frase usual de um verso? O que dá o estatuto poemático a uma construção verbal, desencadeando realidades, paisagens multiformes no universo das existências que povoam nossos olhares? Respostas são sempre imprecisas e efêmeras, o que interessa é o mergulho no questionamento e a brincadeira (muito séria!!!) de sermos um poema escrito a cada instante...
Um poema nos desafia à leitura de nós mesmos. E não nos enganemos, não é só uma elaboração métrica, classificada na medida de palavras certas. Um poema é perdição e abismo, salto para o infinito entre nuvens e calabouços... Instala mundo, sendo ação e meio do caminho para o existir.
Octavio Paz fala do ritmo como aquilo que determina a diferença entre uma frase prosaica – como ele chama o escrito comum – e uma frase poética: “a função predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal baseada no ritmo” (2012, p. 63). O poeta mexicano conduz o foco a uma concentração em que as palavras se erguem pela cadência de sua musicalidade ao se juntarem poematicamente. Nessa perspectiva, o ritmo dá sentido à palavra quando esta encena o devir para cujos rumos os caminhos ainda não foram delineados. No entanto, essa não é uma conclusão, algo cabal, e sim um encaminhamento para pensares. De dentro de um poema brotam virtudes e desimportâncias, dignas de explosões nucleares e escavações sem meio de chegada. Um poema é um fundo sem poço...
O desencadeamento musical de um texto dá margens para libertinagens de sentidos. Nesses empenhos, a natural degustação do paladar se reinventa para experimentações variadas, seja no âmbito da aparência, seja no da silenciosa recriação de nascividades. O poeta, ao dar as mãos à linguagem e ao absurdo das coisas, torna-se um inventor de inutilidades palavrais, e nessa habitação se coloca inteiro. Daí, ao ter em si um conjunto de frases, estas são rearranjadas numa harmonia própria, cujo ritmo já lhes era existente, precisando apenas ser desvelado.
Foi exposta a imagem do poeta, mas poderia ser qualquer um que fosse tocado pelo poético, principalmente se pensarmos com o poema “Glossário de transnominações que não se explicam alguma delas (nenhumas) ou menos”, de Manoel de Barros, que poeta é um “Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu / Espécie de um vazadouro para contradições” (2010, p. 182). Assim, não é necessária a excelência da alcunha de um nome que projeta afazeres letrais e linguísticos, mas basta uma verdade de existência na observância para os próprios vazadouros. A brincadeira verbal no arranjo musical de uma frase está para todo aquele que se escuta. E nessa autoescuta mora a poesia de amanheceres imagéticos, digna das mãos – calejadas ou não – por flores e cores tanto táteis quanto silenciosas.
Há um risco de humanidade em cada escrito que erigimos. Também há uma excessividade latente em todo verso que se firma corporalmente. O poema é um corpo inteiro, dotado de ritmo, morte e transbordamento. Por esse excesso, chega às pessoas e cada uma é tocada singularmente, dançando com as palavras num ritual que entremeia tanto a arrumação de sentidos quanto a inefável invenção de destinos.

Referências

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naif, 2012.