Ao revisitar meu livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a
poética de Virgílio de Lemos, lembrei-me de uma imagem que sempre mexeu
comigo: “o grito mineral da carne”, presente no poema “Ouamisi”, do poeta
homônimo. Na leitura que fiz, percebi também o sentido da questão da memória
sendo trabalhada, imiscuindo-se na imagem do corpo, forte presença na poética
virgiliana. Então, abaixo reproduzo a leitura que fiz de tal imagem e convido
quem quer que seja a partilhar comigo sua leitura:
O “grito mineral da carne”, bela
imagem poética que inflama na voz a exorbitância do corpo. Cava o cerne da
carne, expurgando o arrebatamento de um bramido subterrâneo. Berro este que é
atroz, que costura com dura mineralidade o que perfura e circunferencia fendas
de sangue e voz: sumo que se consuma no entoar bravejo do nascimento: ilha. Sua
força poética nos leva às profundezas da terra, onde não é possível discernir
origem e originado. Nesta passagem, filho e mãe estão unidos pelo grito, são a
reunião da progenitora com sua cria numa fala imprecisa – ‘Será que posso falar
[...]’ –, cuja vida é o furor do que explode e emana em existência. O grito
mineral da carne é o clamor da terra embebida de sangue e cravada de pele, da
pele da história de quem suou e remexeu o chão nas culturas, de quem pisou e
deixou suas pegadas na memória telúrica, de quem morreu e teve sua vida
renascida nos frutos da colheita. Colher é ser histórico na medida em que não
há revisita a fatos passados, e sim acolhimento daquilo que se apresenta no ato
de uma experiência. Afundar as mãos na terra não é olhar para trás e imergir em
recordações, mas trazer para a presença aquilo que se dá no exato momento de
sua evocação, e esta é nossa relação com um poema: de presença. Memória é fundamentalmente
presença do que se vela.
Assim se finaliza a segunda
estrofe: “Será que posso falar de omnipresente osmose / entre o sagrado e o
grito mineral da carne?”, pondo em questão a fala imprecisa que ressoa ao se
perguntar pelo mistério entre o sagrado e o corpo, pois o grito mineral é
também presença de corpo em gosto e cheiro de palavra. A osmose é um “entre”
que se encaminha perenemente (permanência) num equilíbrio sempre buscado, porém
nunca conquistado, haja vista o poema ser um corpo vivo em crescimento
(mudança). A osmose terminaria junto com a morte do corpo, quando o poema não
desencadeasse mais realidade alguma, quando não fosse a própria presença da
memória. O mistério de irrupção da ilha habita a errância de um corpo que reúne
em si o imprevisível de nomeações. Pisar numa terra cuja descendência se
presentifica para além da codificação genética aponta à multiplicidade de
vivências. Mais ainda, a terra não figura apenas como chão inerte, mas como
solo de onde brotam as experiências de vida, o inalcançável e sempre presente
no aceno de cada filho seu (Pessanha, 2013, pp. 106-7).
Também deixo o poema
completo, pois seria muito injusto não partilhá-lo todo. Assim, cada leitor
fica livre para se deixar levar por seus próprios caminhos, pelo corpo da
interpretação.
Ouamisi
Será desta luz d’equinócio o
manto verde azul
quem te confere teu ar de canto
singular?
Será que o mistério vem mais da
luz iridescente
que de tua alma errante em busca
da vertigem?
Etiópia Sudão Novo Mundo e Extremo
Oriente
escravos e canelas, baixelas de
prata bordados.
Será que posso falar de
omnipresente osmose
entre o sagrado e o grito mineral
da carne?
Efebos e mulheres, conquistadores
e naus
entre o simulacro de uns, de
outros a firmeza,
neste santuário de almas, a
génese irrompe
como se o génio da memória e da
paisagem
se beijassem na imediatez do que
reclamo
e do oceano imprevisível,
nascesses tu, ilha.
(Virgílio de Lemos, 2001, p. 17)
Referências
LEMOS, Virgílio de. “Ouamisi”. In: Para fazer um
mar. Maputo: Instituto Camões, 2001.
PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um
estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2013.