No dia 17 de novembro
apresentei um rascunho de ideias para minha tese de doutorado, cujo tema é a
palavra poética, inventada a partir dos poetas Manoel de Barros e Paulo Leminski.
Dessa tensão, muitas curvas farão pouso em minha escrita e cataclismos frasais serão desinventados... Enquanto o
trabalho é feito, deixo abaixo o pequeno texto que levei para conversar com os colegas
da mesa no simpósio.
A
PALAVRA POÉTICA EM MANOEL DE BARROS E PAULO LEMINSKI
Fábio
Santana Pessanha
Manoel de Barros e
Paulo Leminski: duas poéticas entrelaçadas por absurdos. Dois universos sobre
os quais o debruçamento crítico exige permanência e paciência. Isso porque são
realidades que se criam pela brincadeira com e sobre as palavras, quando estas
são as meninas que sapecam nuvens nos ensolarados dias das certezas normativas.
A partir da tensão
poemática que vejo existir na produção dos dois poetas, pensei em fazer um tipo
de biografia da palavra, considerando o que Leminski escreveu em seu ensaio
“Arte inútil, arte livre?”, que diz o seguinte: “Cada palavra tem sua história,
sua biografia, sua etimologia. Seu uso deflagra uma constelação de
subsignificados e sentidos que, em cada idioma particular, tem certo desenho
próprio e intransferível” (2012, p. 46). Já em Manoel de Barros podemos
observar a atenção e a peculiaridade de seu olhar em relação às palavras numa
entrevista que ele concedeu à sua filha Martha Barros para o Correio
Brasiliense:
O
senhor não fala em público. Por quê?
Porque eu gosto de ser recolhido
pelas palavras. E a palavra falada não me recolhe. Antes até me deixa ao
relento. O jeito que tenho de me ser não é falando; mas escrevendo. Palavra
falada não é capaz de perfeito. E eu tenho orgulho de querer ser perfeito
(1990, p. 317).
Como pudemos perceber,
o enfoque se concentra na palavra escrita. Nessa que podemos usar formão para
retirar excessos, retorcer, entortar até que uma realidade nova exerça sobre
nós o domínio para encantamentos não palpáveis. É um processo tenso e difícil.
Uma vez que haja empenho em se trabalhar a palavra, vamos só até onde nos é
permitido, já que não conseguimos dominar seu voo, tampouco o sentido dela na leitura
do outro, ainda que insistamos nesse feito.
Essa biografia da
palavra à qual me referi quer dizer que ao concentrar meu foco na poética de
Barros e Leminski, será feita uma fabricação de palavrares, tendo em vista o
poema como experiência, e não apenas como objeto de análise. Diria que o
processo é o inverso: não serei eu quem darei cara e endereço analítico aos
poemas, destrinchando sua forma, contando suas peripécias, relegando-os a um
dilema já inventando ou tido como insolúvel pela crítica; e sim que aprenderei
com ele – poema – toda a dúvida que sua incomensurável história puder me
conceder. Não se trata também de expressionismo ou subjetivismo arraigado, mas
talvez de um processo de transposição, de atravessamento onde o excesso
intelectual não tenha – espero! – a posição central. Desse modo, a expectativa
é que poema, poeta e leitor convergirão para um lugar de mutualidade inequívoca
e que por essa leitura a palavra poética seja quase surpreendida, e quase
porque palavra não é coisa agarrável, tampouco elucidável num estame fixo. Sua
ambiguidade nos permite pegá-la, torcê-la e até montá-la, mas isso que pegamos
da palavra já é obsoleto no que dela se perdeu e se reinventou nos descaminhos
da linguagem. Obviamente, a palavra dá as caras para as teorias, literárias e
linguísticas, mas sempre encontra um jeito de escorrer pelos dedos de quem
tenta encabrestá-la.
O que acabo de dizer
quase entra em contradição com o já mencionado acima a respeito do uso do
formão na escultura palavral, na retirada de seus excessos, e isso graças à
ambiguidade existencial da palavra poética. Ainda que escrita e palpável por
nossa visão, a palavra poética mora no seu declive para arranjos dos mais
diversos. Então, objetivando a conversa para o teor da minha pesquisa, apesar do
contraponto entre verso gráfico e verso sonoro apontado por Paulo Henriques
Britto, ou seja, a distinção entre “a disposição de palavras impressas numa
linha com começo e fim definidos” (2014, p. 33) e o “trecho contínuo de poesia
que, lido em voz alta, tem um começo e um fim definidos” (idem),
respectivamente – importantes para o enriquecimento interpretativo de um poema
–, o meu enfoque recairá no sentido transversal da palavra que um poema suscita,
no caso, referenciando-me aos poemas de Barros e Leminski. Assim, considerando
essa referência, a pintura que o poema tatua em meu ver será corporalmente
trazido para o desafio de uma tese que ora começa a dar seus primeiros passos,
a qual pergunta por aquilo que se chama poema numa época em que a crise de
versos se torna cada vez mais evidente, dada a produção poética contemporânea,
quando o poema se excede na perda de expressividade ao tentar parecer um texto
em prosa, ainda que essa questão já se mostre desde Baudelaire, com a
publicação de seu Pequenos poemas em
prosa e em Mallarmé com o texto “Crise de versos”.
Tanto em Manoel de
Barros quanto em Paulo Leminski é possível encontrar características desse
poema inexpressivo, mesmo que cada um tenha uma pegada bem singular. Assim, o mato-grossense-do-sul
– com sua versificação justaposta e surrealizante pelo uso de incríveis imagens
– e o curitibano – pela precisão do verso, contenção e concentração da forma em
poemas curtos, além do abuso de haicais, sendo até assemelhado a um samurai
pela leitura de Leyla-Perrone Moisés (Cf. Leminski, 2013) – apresentam uma
interessante tensão ao trazer facetas múltiplas, onde o primeiro é extremamente
expressivo na estruturação de seus versos enquanto o segundo alarga sua escrita
por uma infinidade de técnicas, desde a densa expressividade até o uso não
verbal de construção poética com a colagem de imagens e outras estruturas
tipicamente concretistas. Então, arrisco em dizer que essa inexpressividade não
é o aspecto central de suas poéticas, e sim características que podemos
perceber tendo em vista as discussões atuais sobre o corte do verso e da
intenção (ou falta dela) poemática contemporânea, tal qual é possível perceber em
poetas como Marília Garcia, Marcos Siscar entre outros. Acredito que mesmo
tendo no bojo de suas produções esses lampejos de cortes não tradicionais de
versos, são poemas ainda bastante expressivos, principalmente os de Manoel de
Barros, cuja vitalidade imagética sobressai e ganha o leitor no susto e,
talvez, na vontade que esse leitor até inconscientemente tenha de se tornar seu
próprio verso. E aí o verso deixa completamente o estatuto das discussões
especificamente poemáticas para abranger um sentido mais verbal, poético-ontologicamente
falando, considerando o caráter originariamente grego dado à poesia – poíesis – ou seja, de criação, como Waly
Salomão costumava dizer em sua tentativa de resgate desse sentido primeiro de
poesia (Cf. o documentário Pan-cinema
Permanente, de Carlos Nader, 2007).
Insistindo com minha
questão, esta que deu origem à ideia da tese, pergunto: o que diferencia uma
frase usual de um verso? O que dá o estatuto poemático a uma construção verbal,
desencadeando realidades, paisagens multiformes no universo das existências que
povoam nossos olhares?
Penso que um poema nos
desafia à leitura de nós mesmos. E não nos enganemos, não é só uma elaboração
métrica, classificada na medida de palavras certas. Um poema é perdição e
abismo, salto para o infinito entre nuvens e calabouços, pois instala mundo,
sendo ação e meio do caminho para o existir.
Octavio Paz fala do
ritmo como aquilo que determina a diferença entre uma frase prosaica – como ele
chama o escrito comum – e uma frase poética com os seguintes dizeres: “a função
predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias. O
poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal baseada no ritmo” (2012, p.
63). O poeta mexicano conduz o foco a uma concentração em que as palavras se
erguem pela cadência de sua musicalidade ao se juntarem poematicamente. Nessa
perspectiva, o ritmo dá sentido à palavra quando esta encena o devir para cujos
rumos os caminhos ainda não foram delineados.
O desencadeamento
musical de um texto dá margens à pluralidade de sentidos. Nesses empenhos, a
natural degustação do paladar se reinventa para experimentações variadas, seja
no âmbito visível da aparência, seja no da silenciosa recriação de
nascividades. O poeta é um inventor de inutilidades palavrais, e nessa
habitação se coloca inteiro. Daí, ao ter em mãos um conjunto de frases, estas
são rearranjadas numa harmonia própria, cujo ritmo já lhes era existente,
precisando apenas ser desvelado.
Eu trouxe a imagem do
poeta, mas poderia ser qualquer um que fosse tocado pelo poético, já que,
conforme Paulo Leminski sempre defendeu, o poeta não é só aquele que faz
versos, e sim quem se deixa tocar por um poema e ser a existência de seu
próprio verso (Cf. Leminski, 2012, pp. 132-3).
Acima, Octavio Paz foi
citado por considerar o ritmo como o quesito determinante na diferenciação
entre um texto prosaico e um poema. Contudo, o esvaziamento rítmico que toma a
poesia contemporânea brasileira, e cujos traços podemos perceber nos dois
poetas centralmente aludidos aqui, vem tensionar a discussão, ampliando muito o
horizonte dos possíveis estudos a serem realizados no percurso da tese. Com
isso, aflora-se em meu olhar o desregulamento rítmico que as poéticas de ambos
apresentam. Ficam, então, as seguintes dúvidas: se um poema difere de um texto
prosaico pela musicalidade que apresenta, o que acontece quando não demonstra
tal feitio, mas, mesmo assim, conserva sua essência poemática? E o que é isso
que estou chamando de essência poemática? O que me faz dizer que um poema é um
poema quando não denota as características próprias desse tipo de construção?
Tais perguntas são
amplas e não é de hoje que são feitas, isso é claro. No entanto, o que me
interessa aqui é perceber o quanto desse questionamento em larga escala se
personaliza nas poéticas barriana e leminskiana. Portanto, o que tento aqui
nessa pesquisa é perceber o traço, o movimento próprio de cada um dentro do mundo
que criam em suas escritas.
Há um risco de
humanidade em cada escrito que erigimos. Também há uma excessividade latente em
todo verso que se firma. O poema é um corpo inteiro, dotado de morte e
transbordamento. Por esse excesso, chega aos leitores e cada um é tocado
singularmente, dançando com as palavras num ritual que entremeia tanto a
codificação de sentidos quanto a inefável invenção de destinos.
Referências
BARROS, Manoel de. Manoel de
Barros. Organização de Adalberto Müller e apresentação de Egberto Gismonti.
Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010a. (Encontros).
______. Poesia completa.
São Paulo: Leya, 2010b.
______. “Conversas por escrito”. In: Gramática expositiva do chão – Poesia quase
toda. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1990.
BRITTO, Paulo Henriques. “O natural e o artificial:
algumas reflexões sobre o verso livre”. In: eLyra:
Revista da Rede Internacional. Porto, Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa, n. 3, 2014. Disponível em: <www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/40>.
PAZ, Octavio. O
arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Leminski, o samurai
malandro”. In: LEMINSKI, Paulo. Toda poesia.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.