Texto originalmente publicado no site Obvious Magazine, em: http://lounge.obviousmag.org/verbo_inverso/2015/01/uma-cisao-se-abre-nas.html
Uma cisão se abre nas mãos de um colecionador de regras
gramaticais para fazer jus ao nascimento do poema. O estratagema das rupturas
infesta preceitos, rasga normas, fecunda absurdos, dá margens ao homem voltar a
ser palavra.
O poema é tirano: cria reviravoltas no interior do céu e
conclama o poeta aos rabiscos na pele da semântica. Seja rascunho, mar, folha,
papel ou terra, o poema nasce na velocidade do inefável. O sol é risco luminoso
no parapeito da frase encantada por escórias, o poema é glória. O contrário de
sua trama funda “desencontrários” na escrita arredia que foge ao ritmo, ao
empenho de ser forma fria de métricas e lúcidos porvires.
Paulo Leminski, poeta dos encantos tonais, mora nesse lastro.
Sua palavra é cura, cuidado no
nascedouro do verbo. No encontro com sua dicção, deixa-se ser linguagem e se
confunde nos idos dos poemas. Sua casa é voz, sua cama é foz por onde espumam elocuções
desencontradas de acertos linguísticos. O poeta reclama sua fala no vislumbre
do verso encostado em absurdos. E confessa:
desencontrários
Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
(Leminski,
2013, p. 190)
A palavra não obedece. Quanto mais recebe ordens, mas urge
parafernálias sintáticas. Seus escombros habitam fundos, sua rima exige cores.
Mandar a palavra rimar é o mesmo que pescar no avesso do mar, quando peixes
lançam anzóis para o fundo do infinito à procura do sentido humano da queda. O
humano não tem reza, é fúria e correnteza. E disso a palavra sabe, disso o
poeta desconfia, mas insiste! Manda a palavra rimar, e ela desobedece!
Fala-se de tudo: “em mar, em céu, em rosa,/ em grego, em
silêncio, em prosa.” O poeta hesita ao se enfiar nesse labirinto de sentidos.
Leminski tenta, imerge-se poemático... e insiste! Persegue a sílaba, e ela
mostra seus trejeitos: “parecia fora de si”! No silêncio de sua presença, a
palavra se desconstrói, reinaugura-se em sua estrutura, inventa o lugar de suas
tramas por onde o poeta persiste em errar, e erra por desmando de coerências.
Poetas são serem imprecisos, dormem nos interlúdios das
canções, abraçam o pôr do sol a cada entardecer verbal. O verbo é um insulto
aos cabrestos normativos porque repercutem ocasos em suas entranhas. E apesar
de tantos entretantos, os poetas obstinam-se! Existem no meio do caminho de
cada pedra drummondiana, habitam os interstícios vegetais quando prendem o
homem na prática do limo barriano, voam Galáxias
em Campos de palavras, a fim de monumentar o voo linguístico do poema.
Leminski, tomado pela linguagem, sendo outrado por silêncios e
desvãos, insiste! Atravessado pela voz do verbo, não desiste: “Mandei a frase
sonhar/ e ela se foi num labirinto.” A frase não sonha o sonho ordenado... Pura
ilusão essa intenção de pôr rédeas no ritmo solene da palavra quando ela se
deriva em encantamentos! A frase sonha o sonho desencontrado, reinventa o
caminho por onde passam os risos dos lábios que ainda não nasceram. Torna o
tempo o andor das sagradas mãos, estas que se desenham espalmadas no infinito e
por cujos dedos resvalam labirínticos versos. Veios por onde deságuam o
prelúdio de uma nova imaginação.
A frase ida num labirinto reconduz a terra à fertilidade. Cada
pé enterrado rediz o passo rumo ao seu desencontro, e este é errância palavral,
escombros litúrgicos onde joelhos se corrompem sãos. Mas o “pauloleminski/ é um
cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau a pedra/ a fogo a pique” (Leminski,
2013, p. 102), por isso não cansa, não desanima e insiste: “Fazer poesia, eu
sinto, apenas isso.” Seu destino é ser estância, sua margem o predestina para
correnteza, e vai galgando palavra por palavra até limiar o sumo, até descascar
o sentido turvo de uma ideia. Sentir, apenas isso, é ser o que se inventa por
imagens e imaginações, e disso o Pessoa – outro poeta de desencontros vários –
muito bem sabe, conforme vemos no poema “Isto”:
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(Pessoa, 1980, p. 104)
Tal qual o terraço alçado por cima daquilo sobre o qual não se
empreende certeza, Leminski se ergue frontalmente palavral, marginal (de margem,
no sentido mais guimarãesrosiano possível), e sua crise semântica vai desobedecendo
ao que se chama imposição da ordem natural das coisas.
“Sinta quem lê!”, o comando foi dado pelo mestre do outrar-se –
Fernando Pessoa – quando este se desdobrava identitariamente ao ser guiado pelo
silencioso abismo da linguagem. Também desencontrado de identidades, Leminski
colabora com o desafio de ser turbilhão constante, invencionando letras no
emaranhado sintático da língua.
O desencontro dos contrários – “desencontrários” – redesenha a
imagem do rigor. Aquilo que se evoca e ordena diverge do chão nos chamamentos
rotineiros. É preciso ser torto para cair direito, é necessário perder-se nas
próprias ordens para encontrar-se poeta, e sentir... Ser o sentido incoerente
das coisas na ambiguidade de horizontes, pois nascer poeta não é fácil... Ser o
destino para o que se nasce é mais difícil ainda, mas Leminski insiste!
Tomado pela poesia, esta lhe sopra aos ouvidos: “Dar ordens a
um exército,/ para conquistar um império extinto.” A ordenança é um imperativo atado
às suas vestes, é um ato que reitera o mandar e desmandar; requer a prestação
de contas com seu interlocutor, ainda que este seja uma invenção mal formulada.
No entanto, tudo que se extingue é poesia, e se extingue porque morre, porque é
vivo. Mas não morre para acabar, e sim para continuar na transitoriedade do que
amanhece e se põe ao longe. O longe não é o que está lá, distante dos olhos,
mas isso que bate aqui, no peito da palavra; ser onda no mar que quebra
inconstante nos olhos de quem sente e vê. Ver é ser mais que aparência, é
habitar a imagem que se funda no interior do olhar, no corpo que se irradia a
cada gesto, e gesto se remete a gestar: fecundar existências.
Podemos ousar e pensar que a conquista de um “império extinto”
seja isso que fomente a imagem da inutilidade poética. Afinal, poesia serve
para quê? E que bom que não seja útil para nada, pois se extinguiria (no solene
sentido conceitual de não voltar a dar as caras) após findar sua necessidade
prática. E o Leminski, fazendo as vezes de ensaísta, ratifica essa ideia:
Quem
quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa.
Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na
diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia
produza um lucro ideológico (2012,
pp. 86-7).
Lucrar com o poético seria o mesmo que promover o alistamento
para exércitos bastardos de seus próprios colhões. Não há o que dizer da
palavra feita para acabar: a poesia é restolho de fim, um fim fértil para
nascimentos; e os poetas disso sabem muito bem. Vivem na contínua nascedura de
suas falas, na intermitência de horas raras para o nada.
Referências
ANDRADE,
Carlos Drummond de. “No meio do caminho”. In: Antologia Poética. 16ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
BARROS,
Manoel de. “Protocolo vegetal”. In: Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010.
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. 2ª ed. revista. São Paulo: Ed. 34, 2004.
LEMINSKI,
Paulo. Toda poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
______.
“Inutensílio”. In: Ensaios e anseios
crípticos. 2ª ed. ampliada. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
PESSOA, Fernando. O Eu profundo e outros eus: seleção poética. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”.
In: Primeiras estórias. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1974.