Meus amigos, resolvi postar aqui no blog meu ensaio, originalmente publicado na revista dEsEnrEdoS. Estejam à vontade para comentar!
O
HOMEM E SUA CONDIÇÃO DE MARGEM
Fábio Santana Pessanha
Mestre em Poética – UFRJ
“faço poesia
não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais
profundo do homem”
Clarice
Lispector – Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres
O homem está mais para
margem que acervo bilíngue de vagabundos. No panorama dos seus pés moram as
vias que o conduzem ao encontro marcado com seu próprio desenredo. A cada passo
dado, é impresso no chão o risco de se criar esteiras de caminhos e presságios
de infinito. Seu rastro é sua alcunha quando eleito magnífico miserável de
imensos veios.
Um convite para uma fala
poética foi feito, e aceito! A partir da envergadura do que se disse acima,
aliado a futuros devaneios, devo então pensar o homem, e me pergunto como. Afinal
de contas, por mais que se trace um rigoroso itinerário antropológico, qualquer
precisão pensada ensaia de antemão sua condição obsoleta. Então, qual é a
saída?
A poesia! Pensar o homem
pela via do poético, ou melhor, de dentro de sua própria insignificação, compreende,
creio, dar as mãos ao salto na iminência da queda. O poético nos leva a cair,
sempre, ao fundo de nós mesmos. Por isso, daremos as mãos à poesia, àquilo que
se perde no desvio de sua voz: os poemas; pois seja em verso – com ouvidos à
tradição – ou no desalinho musical da prosa – que, na verdade, é tão poético
quanto qualquer estruturação classicamente versificada –, os poemas são
gracejos letrais da movimentação intrínseca da realidade, e nós somos sua
realização. Assim, proposta essa ciranda de absurdamentos linguísticos, podemos
ficar à vontade para a desenvoltura do labor que ora se cria e manifesta. Com
isso, vamos à primeira queda:
Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares
nenhuns.
Até que não me achei – e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um
bulbo.[1]
Se o empenho de toda obra de
arte é a humanidade do homem, o compromisso da obra poética não se mostra indiferente
a essa questão. Penso que um poema, ao ser lido, se realiza como um gesto de
abrigo do nosso próprio abraço, um abraço que toma o infindo corpo carnal no
interior dos braços e recolhe o metal dos ventos nos voamentos de palavra.
Assim, de forma alguma falarei do sentido exato do poema citado e dos outros
que forem aqui tratados. Portanto, que fique realmente claro, deixarei me
conduzir por sua correnteza e carnadura.
Então, sem mais demora, e em
atenção ao poema, somos testemunhas de que o silêncio foi aumentado com um
nascimento. Sendo o homem seu próprio mundo: origem e morte, estabelece-se uma
autofecundação poética. Como assim? Desesplico: para toda voz arada no campo da
linguagem há uma potencial mudez na multiplicação de todas as bocas ao relento.
O homem encena sua condição de margem sendo outro e ele mesmo no precipício de
sua identidade. Com isso, eleva-se do escuro canto de seu estômago o vazio
repleto de encantos, habitantes nos desamparos de seus lábios. Aumentar o
silêncio designa a iluminura da epopeia existencial humana, quando o sentido da
aparência do homem resvala pelo anúncio de sua imagem ao espelho. O espelho só
me entrega à dúvida.
Nascer e aumentar o silêncio
anuncia o quanto de completude compõe o homem. E completude aqui quer dizer:
instante no qual anverso e reverso se comprazem na unicidade de seu parto. Se
concluir algo fosse fácil, até ensaiaria dizer que a dicotomia não perderia
feio para ambiguidade, pois no horizonte de nossas vistas mora o brilho e o
escuro como deveniências de uma mesma costura.
Ainda que seja muitíssimo
tentador ver nesse “aumento” o sentido de soma, na verdade, muito mais do que
isso, pode-se enxergar aí o alumbramento da intensidade revelada na morada do
silêncio: o nada. Passo a pensar, então, que o homem é um complexo formado
entre o nada e o silêncio, e o que sobra recai na materialidade da pergunta que
faz a si mesmo enquanto parte integrante da paisagem do real. O desenho dessa
“conclusão” fica assim: estou naquilo que vejo porque vejo com o corpo,
participando da nomeação desestrutural da realidade; esta que está na
antecedência do que toco tanto quanto procede à sensação do choque, do embate .
Não seria esse prolongamento existencial que Riobaldo suscitou quando, em Grande Sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, disse: “– ‘Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...’”?[2]
Da mesma maneira que em Manoel de Barros o “silêncio foi aumentado”, em Rosa o
“mundo tornou a começar”! Todos esses começamentos indiciam a insistência
poética habitante no homem. Portanto, creio que o homem é seu próprio
desconcerto.
Nessa estância de prolongamento
do silêncio, do mundo, do existir, encontro ainda em Manoel de Barros, no Livro sobre nada, a seguinte passagem:
“Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu
acompanho...”.[3]
Acompanhar algo diz morar na realização desse mesmo algo, estar junto não
apenas na companhia, e sim na composição de um espaço que se cria pela
conjuntura de pele e olhar: ver! Então, ver é ser aquilo e com aquilo que nos
chega pela visão, significando ser muito mais do que simples ocorrência visual
de um de nossos sentidos físicos, pois aquilo que nos toca a pele, se
acolhemos, metabolizamos, tornamos parte de nosso sangue, compomos corpo.
No transcurso dessas
imagens, lembrei-me também de que no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, há um
momento, dentre vários, em que Lóri se encontra totalmente desorientada por se
ver radicalmente imersa na vida, percebendo que aceitava em pleno amor o amor
de Ulisses. Impregnada desse acometimento, “parecia-lhe que mil corações
batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa”,[4]
e daí, sendo apossada pelo direito de ser toda sua dúvida, dor, imprecisão,
sangue e carne em flores ou uivos em desfecho de horizontes, ofertou ao tempo
uma frase primordial e que retoma a questão que, nesse momento, nos aproxima em
leitura: “Como prolongar o nascimento pela vida inteira?”.[5]
Não podemos pensar que essa
pergunta toca na mesma questão que vimos em Manoel de Barros, quando ele traz a
lume o silêncio aumentado por um nascimento? Ou em Rosa, quando Riobaldo é
enfático ao assinalar que o mundo torna a começar com o nascimento de uma
criança? Com tais questões, podemos ainda indagar: como aumentar a pausa no
grito que sustenta escombros de palavras? Como entrever na cara o tapa de um
amor perdido? Como mergulhar na vida, não sendo apenas um personagem social que
diariamente acorda, caga, toma café, estuda, trabalha, come uma puta, vai
dormir e, no outro dia, repete tudo igual? Como, no prolongamento de nosso
nascimento, conseguirmos nos outrar na imensidão que somos? Como aumentar o
silêncio no singelo gesto de um princípio quando, na realidade, nascemos a cada
instante?
Tais perguntas não servem
para serem respondidas. Elas devem ocupar cada canto de nossos ouvidos,
impregnando-se em nosso corpo para nos entregarmos à dúvida maior de nossos
olhos: o reflexo visto no espelho. E ainda, nos braços de Clarice, chegamos num
ponto crucial, quando fazemos nossa a fala de Lóri: “Eu existo, estou vendo,
mas quem sou eu?”[6] E
a poesia responde com a:
Elegia
de Seo Antônio Ninguém
Sou um sujeito desacontecido rolando
borra abaixo como bosta de cobra.
Fui relatado no capítulo da borra.
Em aba de chapéu velho só nasce flor
taciturna.
Tudo é noite no meu canto.
(Tinha a voz encostada no escuro.
Falava putamente.)
Estou sem eternidades.
Não tenho mais cupidez.
Ando cheio de lodo pelas juntas como
os velhos navios naufragados.
Não sirvo mais pra pessoa.
Sou uma ruína concupiscente.
Crescem ortigas sobe meus ombros.
Nascem goteiras por todo canto.
Entram morcegos aranhas gafanhotos na
minha alma.
Nos lepramentos dos rebocos dormem
baratas torvas.
Falo sem alarmes.
Meu olhar tem odor de extinção.
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.
Eu pareço com nada parecido.[7]
Só a poesia pode responder
porque não afaga com dizeres simplórios a necessidade de audições pedintes de
esquadros, de correção; a poesia instaura o verdadeiro lugar da resposta: o mergulho
no ensimesmado de entulhos e personalidades nos quais quintais de pessoas
ressoam o desígnio de suas perdições. Poesia, atrevo-me a cogitar, é ser ação
agindo dentro e fora de oscilações e realidades. E nessa resposta repleta de
braços, uma infinda enumeração é feita. Contagens de absurdos para
fundamentações acerca do e com o nada. Um desnome não é a negação do nome, e
sim o aprofundamento na nomeação, considerando aqui algumas falas gramaticais que
designam o prefixo “des-” também como partícula intensiva, em vez de apenas
funcionar como marca de negação, ou seja, causa fundo-de-poço nos nomes em que
se junta: casamento de substantivo com ancestrais de verbo.
No poema acima, é possível
observar as ruminações, derivações, da condição humana em ser margem e poesia.
Cada verso é um lance para o destino do absurdo, sendo este – o absurdo – imagem
emblemática de sustos e contradições. Tal questão, pelo encaminhamento torto de
minhas falas, não tem a ver com a estética tradicional, pautada por normas ou parâmetros,
cujo empenho está em aferir a veracidade daquilo que faz ou não parte da
realidade. Ora, tudo faz parte da realidade, inclusive o que ainda não existe!
A realidade do real conserva simultaneamente o inóspito e a habitação, uma vez
que realidade significa o cerne (-idade), a concentração do real; portanto, na afluência
de um nome é revelada uma aparência que, por sua vez, vela, é latência do
impronunciável.
Ser um sujeito
desacontecido, sem eternidades, que não serve pra pessoa está no âmbito da mais
radical existência, pois congrega nos seus passos a calamidade vigente no furor
de ser nada em permanência de vozes e outroras. Assim, com o mergulho na
identidade de um ninguém, especificamente, do Antônio Ninguém, ao visitarmos um
pouco mais da poética de Manoel de Barros com o poema “A disfunção”,[8]
somos testemunhas de que os poetas têm “Mania de comparecer aos próprios
desencontros” – seja linguístico ou presencial. No entanto, se falávamos
especificamente do homem, e agora trago à nossa dança um verso que fala de
poetas, pergunto: seriam, então, poetas todos os homens?
Exatamente! Pois essa é a
condição de margem do homem!
Contudo, é preciso observar
que ser poeta não é ser qualquer-um. Não basta enumerar cantigas em poste ou
desanuviar a correlação entre triângulos e cossenos! Também não basta manter a
cara amassada depois de acordar ao meio-dia e se dizer atônito com a relevância
das auroras. O homem é poeta, creio, quando se concentra em próprio desassombro
e reinstala a morte de seus dias a cada olhar lançado ao vazio – e posso dizer
isso por não se tratar de uma afirmação científica de cabalidade irrevogável,
uma vez que eu não sou nem científico e nem irrevogável. Ser poeta talvez seja
a contradição da lua em contorno de verão ou estar de acordo com a obscenidade
do vento em lamber os corpos que quiser, quando bem entender... Enfim, por mais
divertido que seja a enumeração de absurdos semânticos, não é com um enunciado
que encabrestaremos um poeta, pois este é a vigência da inconstância habitante
na humanidade do homem. Assim, repito: o homem está mais para margem que acervo
bilíngue de vagabundos, e a vagabundagem primordial, talvez, seja o aceno do
real em se permitir língua e pintura nas paredes da linguagem, nos estames de
ensolarados prados onde o homem se poetiza na medida de sua morte, na medida em
que se abre para a escuta do seu silêncio.
Não percamos nosso norte: o
homem está para margem, é uma entidade do poético em risco de incumbências
lexicais; um aumentador de silêncio quando prolonga o cerne do real ao se
desdobrar em nascimentos. O homem é poesia em escritura de pele, tinta, voz e
calafrio, um “sujeito desacontecido” se procurando em “lugares nenhuns”. Um ser
achante repleto de esquinas e deus-lhe-pagues que caminha sempre em pé de curva
a nascentes de abismos. Então, o elencamento alardeado no poema “Elegia de Seo
Antônio Ninguém” desfila uma série de desacontecências com as quais o ente de
pés cravados no chão de cimento se estranha, pois, como aceitar todas as
indecências semânticas propostas se quase sempre necessitamos fazer a barba para
apresentações litúrgicas ou primamos por comportamentos equidistantes de
comedimentos sociais?
A condição de margem do
homem manifesta o sepulcro das nomeações condicionantes de regras. A morte mora
em seu peito e a vida é seu desvelo, com isso, na ambiguidade de sua andança,
experiencia poeticamente um lugar de habitação, uma vez que o lugar se dá na
medida de sua ocupação. Lembrando o que diz Heidegger em seu importante ensaio
“... poeticamente o homem habita...”, “Poesia é deixar-habitar, em sentido
próprio”[9]
e, sem resvalar num sentido onde o que se diz se torna um manual a ser
empregado no exercício de nossos dias, mais à frente, no mesmo ensaio, temos
que “[...] um habitar só pode ser em poesia porque, em sua essência, o habitar
é poético. Um homem só pode ser cego porque, em sua essência, permanece um ser
capaz de visão”.[10]
Sem cismas ou dedos, tais dizeres nos encaminham a pensar que o homem é poesia
e só se desdobra em poema porque essencialmente, naturalmente, é um ser
poético. E isso significa: um ser de margem que constrói à medida que é
construído pela violência do rio, de seu período de existência na paisagem do
real.
Lembrando o poema com o qual
iniciei essa queda, e com o qual convido quem se disponibilizar a cair, leio: “[...]
eu era torto / [...] Passei anos procurando por lugares nenhuns”. A partir
desses versos, sou levado a crer que a tortuosidade não é algo à parte,
estranho ao desígnio do homem em se apropriar de sua condição de margem. E
digo: só porque o homem é margem é que é capaz de se perceber rio e se perder
em seu próprio curso. Sua andança encena o desenho de um eterno labirinto,
duradouro durante a música que o atravessa e o fecunda porque também é
silêncio. E, ainda no poema, o mesmo termina assim: “Até que não me achei – e
fui salvo. / Às vezes caminhava como se fosse bulbo.” Diante disso, divido o
que pensei: cada passo dado no meu caminho encurta a aproximação com aquilo que
não sei tanto de mim quanto do meu destino. Meu horizonte não se põe diante de minha
presença como imagem que guarda a alvorada e o ocaso do sol, meu horizonte sou
eu e me limita no instante agoral do tempo, da imprecisão habitante no calor de
minhas mãos e que queima a pele quando cismo em agonias de posse. Sou margem
porque sou homem e sou homem porque a poesia mora em mim: sou um acervo
bilíngue de vagabundos porque estou mais para margem!
E agora em atenção ao último
verso, caminhar como se fosse bulbo diz se embrenhar na terra e habitar a escuridão
silenciosa do existir. Considerando que existir é ser no aberto acolhedor de
infinitos, então esse enterrar-se aponta o singular movimento de ser verso e
procissão de um homem só. O conjunto da unidade se apresenta na orquestração
audiúnica de uma procura feita no empenho de perdição. Procurar é se perder,
pois alinhava no gesto de outrar-se a originariedade caminhante e desbravadora
da visão. Ver é ser sempre pela primeira vez, destituindo o hábito que engessa
a recepção daquilo que vemos e recebemos do real. Vemos aquilo que somos porque
essencialmente somos o que vemos e, só por isso, somos capazes de ver, ou seja:
sou a imagem que chega aos meus olhos e só percebo numa coisa aquilo que
identifico como a morada do meu nome. Meu nome é nunca, e sou sempre verso a
ser escrito; encontro-me quando não me procuro porque toda procura enseja
perdição.
É preciso dizer algo acerca
da vagabundagem e sua predileção por coisas tortas e restos de enunciados:
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando
beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os
tolos.
Charles Chaplin monumentou os
vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do
chão mijadas
de orvalho.[11]
A nobreza do empobrecimento
é alcunha de despertencimentos! Elabora no poético uma colheita de escombros e
rascunhos. Tudo é feito com material compreendido de chorume, repleto do fedor
de ser acontecência penumbral, risco de se perder o estame fulcral de
compêndios, empreendendo em luxúrias verbais.
Se pensar o sentido de
margem no homem quase sempre pode se resvalar para contextos sociais,
socioeconômicos, de forma alguma trago esse cheiro em minha palavra. Ainda que
seja possível tal diálogo, aqui não é lugar para obtenções estatísticas, cuja
mortandade não passa de mero levantamento numérico. Creio que tal empenho
apenas alimenta a possibilidade de o homem se perder em seu próprio canteiro,
exumando a ossatura para sempre guarnecida no código genético de seu passado
historiográfico. O homem é seu desconcerto e se conjuga andrajo de vestimentas
palavrais! Está mais para margem que acervo bilíngue de vagabundos!
Pelo poema acima, somos
iniciados na grandiosidade do ínfimo! Compomos o arsenal prolífico de imagens
que encenam a necessidade de se olhar para dentro daquilo que não se sabe do
próprio umbigo. Eu sou homem, poeta, portanto, sou meu convite à morte! Sou o
restolho da colheita que suja o chão na imundície dos meus passos; sou o
descompasso do meu caminho, minha morte e minha alegria em me sentir vivo,
compondo pôr do sol.
A palavra que ora se
entranha em meu corpo e se despede de minha boca faz de minha fala um
infortúnio arcaico de semeaduras tântricas. Sou palavra em escuta poemática,
quando preservo no útero do meu verbo a elocução que funda e fecunda meu olhar
para aquilo que vejo e, portanto, que sou. Hei de monumentar os insetos com
esta doença de grandeza! Assim diz o poema e assim manifesto amém! Tal como
Cristo, São Francisco, Vieira, Shakespeare e Charles Chaplin, sou capaz de
monumentar o mísero porque sou mais um verso escrito no poema que leio a cada
dia de minha existência.
A vagabundagem me toma e me
penetra! E que se entenda: não me refiro ao sentido comum, tão incrustado nos
ouvidos alheios. Minha vagabundagem é a mesma que habita o conluio entre verso
e luz, poesia e ação, digerindo e estando presente no acontecimento fecundo do
nada: o mistério humano no qual o homem se percebe nascido para margem.
O poema diz: “Charles
Chaplin monumentou os vagabundos” e, com isso, podemos pensar que a errância do
homem o nomeia andor que carrega em seus braços o vigor poético em ser abismo e
vertigem. O vagabundo se tornou monumento, mas não se trata de um vagabundo
qualquer. Tal movimentação poético-semântica só é possível porque o poema, na
verdade, explicitou a latência da indolência, da preambulação maldita presente
nos andrajos sociais; e tal situação foi desvista e reinventada na composição
poética da palavra.
A poesia nos deixa
reinventar nossa condição de margem, e não é isso que realmente somos, pretexto
poético para saltos mortais no abismo do humano? O homem está mais para margem
que acervo bilíngue de vagabundos, e assim tenho dito para cada um nos durantes
dos meus dias.
Referências
BARROS, Manoel de. Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “... poeticamente o homem habita...”. Ensaios e conferências. Petrópolis:
Vozes, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ROSA, João Guimarães. Grande
sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
[1] Quinta parte do poema “Cadernos de
apontamentos”, p. 275-6.
[2] ROSA: 2006, p. 468.
[3] BARROS: 2010, p. 336.
[4] LISPECTOR: 1998, p. 131.
[6] LISPECTOR: 1998, p. 131.
[8] BARROS: 2010, p. 400.
[10] 2001, p. 179.
[11] BARROS: 2010, p. 343.