Meus amigos, divido com
vocês também aqui pelo blog o meu ensaio “Disfunção lírica”, publicado na
edição nº 31 do periódico trimestral Labirinto Literário (o link leva ao blog do Labirinto, porém o periódico é distribuído em pdf, depois de feito sua solicitação). Estou aberto a comentários! Segue o texto:
DISFUNÇÃO
LÍRICA
Fábio Santana Pessanha
Eu só sei que foi
assim: a poesia me fez poente; deixou-me por do sol em céu de canela e nuvens.
Quando eu era fala burocrática, arremedava uns gestos de outrora, umas pencas
de passagens, uns compassos de música ensandecida. Mas ainda ficava a bordo do
desaviso... Agora, sou verso em mãos crentes, em coração e boca quentes de
verbo.
De tão absorto que
fiquei, acabei chegando já chegado, porém sem desbocar a coisa dada em frases e
conjunções. Mas vou contar o acontecido para que sua vista se festeje em
comunhão com todo o corpo.
Eu sempre fui dita por
boca desdentada, mas desdentada no pior dos sentidos: sem favas, manhas (mas
com muitas artimanhas). Eu era tacada certeira em alvo errado, um achado de
coisas desditas. Era uma fala parca, sem pronomes, gerúndios ou gerânios,
contudo atacava o verbo de todos os modos. Diziam para eu deixar de ser tola,
que não precisava de nada dessa coisa de efusão (confusão que era essa tal
palavra que por não ser de mim, me era estranha, nem tão clara, mas muito
cara!). Então, me achante que eu era, me fiz rogada e postulada das
clarividências dos ditos e desditos. Com gorjeios espúrios, eu era aclamada
pela certeza dos meus atos. Afinal, a fala também se desengana quando imersa
nas cinzas dos descantos, na rubra febre do comum dos dias antros. Eu era fala
na boca de erudito, amassava as curvas das palavras, rubricando nas quadradezas
das frases retas. As palavras em dentes eruditos não brincam, são sermões
consonantais ao forte sol de meio-dia. De uma infância florida com pulos e
riachos, as corredeiras da minha senda se transformaram em relatórios listados
e formatados, meus risos guardaram seus colares e meu encanto se enformou
amianto. Uma fala sem cintura, não rebolava nem entoava os eflúvios de ninfas
encantadoras; era tosca e desdenhosa, tão sem flor quanto chute descalço em
pedra despercebida. Enfim, de passagens me tornei paragem. Uma alfinetada no
estômago da palavra, cuja queda se fez arremedo de paraquedas. Mas isso foi num
então que depois de uns outroras se tornou pois sim. E já digo como foi!
Fala empapuçada de
gravata que eu era, com nós cegos, surdos, mudos, decentes e consequentes, um
dia me esbarrei com um verso em desvario. De tão desconcertada que fiquei, fui
atrás do dito cujo, achando o achado de sua repetilência. Corri atrás do seu
rastro, me fazendo desusada de olhares certos. Tive que incorrer na errância
para me aproximar da nuança de sua passagem! Que canseira me meti a atrever
cores em meu cinza! Para me apegar na poesia, fui desdentrando a certeza que me
ocorria e redesvendo a reteza dos meus passos. Dificílimo é desendireitar o
direito, quando o antes de seu pleito já fora tão esquecido, que é tido como
nunca havido! No de repente de um átimo, uma fagulha fez seu risco no meu
céu... deixei-me liso de entraves e fui percorrer o rascunho desse desalinho.
Ainda que manca de um olho só, retirei a cera dos ouvidos e me pus a escutar:
Se diz que há na cabeça dos
poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de
ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos
poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa
disfunção lírica.
1 – Aceitação da inércia para dar
movimento às
palavras.
2 – Vocação para explorar os mistérios
irracionais.
3 – Percepção de contiguidades
anômalas entre
verbos e substantivos.
4 – Gostar de fazer casamentos
incestuosos entre
palavras.
5 – Amor por seres desimportantes
tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 – Mania de dar formato de canto
às asperezas de
uma pedra.
7 – Mania de comparecer aos
próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam
por dar mais
importância aos passarinhos do
que aos senadores.[1]
“A disfunção” dessas
palavras me encantou... aí já era tarde e o perdido fez-se pronto! Duvidosa
fiquei por esse encanto, pois eu que era manca de palavras, de repente me vi
saliente em versos. Mais um outrora me ocorreu, daí pensei que isso, na
verdade, já era meu. E fiquei contente!
Ainda descrente,
demente, devente desse pranto que mentecaptou minhas vistas linguais, torta dos
confusos, me achava presente... estava mesmo era parturiente... Em que cova me
metia no desenredo desses meus dias? De nada em nada o muito me fitava há
tempos, no entanto a caolhice dos meus atos favoreceu a despresença desse fato.
Sim, eu era zarolha! E
o ferrolho dos verbais, mesmo fincando as vestes num corpo ornado em frias
calhas, finalmente destravou a tranca dos trepostos à correção e desfechou o
desassombro da fala falada, escutada e silenciada, tudo num gesto só. Era a
poesia dando sua cara ao abraço...
Então era isso! Estava
sofrendo de disfunção lírica! No enlace que tive com o poema, ele me desaguou:
“Isso é flerte de palavra que é canto, embora emboscada no recanto do nó, faz
de pó os entraves que a prendem. A palavra é lavra de gestação fecunda, não
importa o quão se afunda a boca que a detém, é mera e parca a mira do além,
pois, num aquém, ela rodopia em florido campal, dando adeus àquele mural de
solidão sem igual.”
Fiquei toda sabedosa
dessa fábula que era a verdade mais verdadeira de todos os tempos, épocas e
chuvas. Não só sofria dos sete sintomas da disfunção lírica como tive
multiplicado por incontáveis setes o ritual do palavrar. A fala que eu era,
robusta de achados e achismos, propunha a clareza dos meandros formais. Era a
etiqueta cravada na boca de quem se indispunha com o prazer de ser verbo. Eu
não era verbo, era ponto de frequência no serviço público; roupa passada e
engomada, desajeitando a brincação verbal e poesial. Fui aclamada pelo verso e
me deixei poema... daí, não teve mais jeito, verti jorrados de palavras,
aceitando a inércia; explorando os mistérios irracionais; casando anomalias
entre verbos e substantivos; incestando as palavras; amando a desimportância
das coisas; cantando as asperezas pedrais e, o melhor – não sei se mais
importante, mas o mais divertido! –, comparecendo aos próprios desencontros!
Tudo isso multiplicado por muitas outras substancialidades poemais, verbais e
corporais. Agora, eu era fala na boca de poeta!
Desses tempos que eu
era sem sal, sem curvas ou declives, ainda me lembro, mas com poucas saudades.
Toda fala que se preze tem rabicho com poesia, entretanto se esquece desse seu
recanto. A fala se engambela em seu próprio atropelo e se torna gagá de pestes
roucas, deixando a infância de sua queda para trás, nos esquecidos das
lembranças. Porém, basta um susto para que a presença se apresente! De cabelos
desgrenhados e roupas amarrotadas por sono mal dormido, a fala da poesia –
aquela da infância de outrora, colorida de repiques florais, com versos saindo
pelas ventas – vem à tona e se torna dona de sua real palavra. O poema que me
cruzou os passos deixou-me ainda mais dentro de mim, com isso fiquei ainda mais
no meu encalço para não mais me deixar sem mim.
Com as vistas
apropriadas para o imprevisto, eu que era fala desdentada, agora me pus poema
de faces variadas. Dou-me em cores, tintas, imagens e palavras. Há quem diga
que isso é papo de suporte, mas não mais suporto certas favas, pois de mim que
agora sei que sou muitas e várias, dou-me pronta até nos concertos de ataques
ornados em tintas. E estar pronto é estar andante... e sempre!
Sou palavra escrita –
tanto desenhada no grafismo dos alfabetos quanto nas incertas do pincel em
tela, muro, chão, parede ou piolho –, sou fala que vigora no incontável dos
instantes, sou rascunho que elabora horizontes, sou qualquer coisa aceita ou
desaceita porque estou no antes e depois do depois e do antes. A perda de tempo
que se perde comigo em elaborações fulcrais de títulos e constelações também
está presente no meu amém. Seja doutor ou escultor, pisante de andrajos ou
locutor das ordens dos dias, estou neles e em seus contrários. Sou
fala-poesia-escrita-corpo, e estendo meus braços nos abraços a quem não
pertenço, porque pertenço aos meus despertencimentos! E nessas andanças, topei
com outro eu que assim me cogitou:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público
com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.
diretor.
Estou farto do lirismo que para e
vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os
barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os
inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao
que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de
cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos
bêbedos
O lirismo dos clowns de
Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo
que não é libertação.[2]
A prosa da poesia é um
amalgamado de gestos pungentes, cuja lírica prosaica se entretece com enlaces,
namoros, sotaques, debates de uma prosódia irrestrita de labiais e
consonantais. O poema me diz ser um romance cujo céu se deu em versos, e cujos
versos se deram em mundos de ortofonias desusadas de correção, portanto,
desortofonias! Porém não porque antagonizam, e sim porque se embrenham, se
enfiam no dentro do som caudaloso e suculento do palavrar – que é canto e poema
–, portanto, escrita e pintura, portanto, corpo de pele crua. O correto do som
são galhos de linhas tortas, cujas rimas e métricas, parágrafos e acentuações,
se perdem – ou se acham – no mesurado sem-fim do sol.
Não me importo com as rimas.
Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao
lado da outra.
Penso e escrevo como as flores
têm cor
Mas com menos perfeição no meu
modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade
divina
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre
quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o
levantar-se vento...[3]
Dão nomes e apelidos
aos repetidos espasmos de coerência; são doenças bufônicas, estratosferas de
vertigens preocupantes de conceitos. Depois que me encontrei no perdido – ou me
perdi no meu achado – eu que era fala na boca de sem-dentes, agora me guarneço
de despropósitos. Mas despropósitos necessários à vida de um verso, este que se
extingue no depois de um sopro de aleluia.
Sou fala de poesia
falada, cantada, grifada, grafada, ornamentada, desdenhada, desenhada, pré-ocupada,
pintada nas quitandas dos mestiços esquivos de poentes, e disso me dou conta!
Eu que era tola, agora sem querelas sou por elas – aquelas de paixão latente,
porém bastante condescendentes –, as musas, de fato. Mitos, artefato de labor
lingual, gestual ou mundal, são com elas que me percebo diferente, isto é,
bastante presente no prelúdio dos meus dias, assim como no presságio das
auroras.
Eu que era preocupada
com grifes e composturas, agora ouço as desigualdades das árvores. Os poemas me
trazem a mim o propósito de ser nada, com bastante afeto, e digo isso bem
direto. Sou fala na poesia da canção, e me permito o erro de uma gramática que,
quando bem usada, nada tem de redução. Para usá-la bem, é preciso perder o medo
do confuso, ser com este o guardião do desuso ao qual o contínuo uso fez de
regras e perfeições a referência de uma moção. A língua é minha casa, o
Português o meu refrão, com ele penso, choro, amo, desfruto, gozo, sou todo eu
e muito outro. Não posso temer as incongruências, não posso correr das
regências, faço eu minha própria música, pois, esta sim, é escrita de perdição.
Ser corpo, ser palavra, ser coisa jogada ao vento tal qual voo de pássaro em
rasgação urânica: isso também é escrita, isso também é gramática, só que com
outro nome, dada de outro jeito.
De tanto lirismo
comedido me alimentei, sinto na pele a dificuldade de dizer “não” ao preciso e
correto, mas me percebi farto dele. Como rogou a mim o poema que cruzou minha
andança, “não quero mais saber do lirismo que não é libertação”! E libertação,
percebi com o rascunho dos versos, é também assunção do golpe, salto no fundo
da palavra, quando a estrutura do nome se funde, se confunde, na criação de
invencível pronome. Sim, “olho e comovo-me”, me movo com o andante perdiz do
verbo... sou fala na poesia e na escrita, pois sou rabisco e borrão, merda e
palavrão. Quero a beleza do estrondo, o gosto do escarro, o oco do nervo que me
faz gozar. Não quero mais nada que não seja a brincadeira de ser palavra, seja
lá como a palavra for!
Esse foi acontecido
daquele meu dito! Assim me fiz presente! De arrogante soco no lábio da palavra,
agora sou beijo na nuca do amor. E sem “motivo” algum me despeço já no apreço
de mais um verso, este que deságua e se multiplica em ouvidos e corações
prementes:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se
fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.[4]
[1] BARROS, Manoel de. “A
disfunção”. In: Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010, pp. 399-400.
[2] BANDEIRA, Manuel. “Poética”. In:
Estrela da Vida Inteira. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 129.
[3] PESSOA, Fernando. “XIV”. In: O Eu profundo e os outros Eus: seleção
poética. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 148.
[4] MEIRELES, Cecília. “Motivo”. In:
Viagem – Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967, p. 9.