Acontecerá nos dias 4 e 5 de novembro, no Fórum de Ciência e Cultura (campus da UFRJ na Praia Vermelha, Urca – Rio de Janeiro), a IV Feira Poética.
Sob coordenação da profª. Maria Ignez de Souza Calfa, tal evento fará a reunião do Departamento de Arte Corporal e o Laboratório de Arte-Educação da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ com o grupo de pesquisa do NIEP – Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Poética, vinculado à Faculdade de Letras da UFRJ, num diálogo em que a poética do cotidiano será encenada pela dança realizada entre corpo e palavra.
Para quem estiver pelo Rio de Janeiro, é uma excelente oportunidade de tanto apreciar o diálogo entre a Dança e a Poética, como também de refletir, de pensar o sentido de corpo, de palavra, de poesia, de dança, de ser, neste ensurdecedor apelo à técnica por qual estamos passando em todas as esferas das artes e da humanidade.
Caros amigos, foi ao ar o sexto número da Revista Eletrônica de Estudos Literários – REEL, uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Nesta edição, participo com o ensaio “A poética de Virgílio de Lemos na pós-modernidade”. Este texto é parte da minha pesquisa acerca da obra do poeta moçambicano citado. Quem quiser conferir, é só acessar o link acima, além de, claro, visitar a revista!
Tratando de outra publicação, também estão disponíveis para download os textos das comunicações que compõem o “VI Painel/ I encontro Regional do Insólito Ficcional: o insólito e seu duplo”. Participei do evento com o ensaio “Homem: corpo insólito”, este que disponibilizo abaixo. Mais tarde, postarei também o ensaio mencionado primeiro. Boa leitura para todos!
Homem: corpo insólito
... o corpo é uma encruzilhada na qual teorias e experiências se concentram na ambiguização de seu trânsito. Alvo de toda sorte de inflexões e reflexões, sacraliza-se nos mais diversos discursos litúrgicos tal qual se profana pela concupiscência da carne dos homens de realidade mediada.
A via crucis do corpo é o martírio da separação biológica e espiritual. Nesta trajetória, fazem-se vigentes manifestações acaloradas, pautadas em certezas científicas ou filosóficas (ainda que na perspectiva retórica da metafísica). Neste ínterim, o corpo se reduz a objeto de estudos, tornando-se mero corpus sem a devida atenção etimológica, ou melhor, elevando o sentido de coletividade material que sua etimologia permite.
Na tradição sofístico-literária, o corpo está desincorporado de si, afastado do apelo ao sagrado, da fundamentação no mistério de ser. Assim, para que nos aproximemos destes sentidos, é necessário galgarmos pelo poético. É preciso darmos ao corpo a atenção da escuta. Desta maneira, incorporar-nos para que sejamos corpo, isto é, para que sejamos aquilo que vivemos e somos.
Com dúvidas e imprecisões, traçaremos um caminho no qual evocaremos o corpo e seus desdobramentos. Portanto, um encaminhamento de duplicidade ensejante da cisão corporal em constructo biofisiológico e abismo misterioso do humano.
A fluidez é o movimento da linguagem que permite a dança pelos significados das palavras. O mais estranho é que embora tentemos introduzir um texto, esta introdução se parece com uma tentativa de adivinhar os rumos que a linguagem traçará em sua incursão e como o corpo será experimentado por sua espontaneidade. O melhor é matar esta introdução, finalizando nela o que há de tentativa adivinhatória acerca das linhas que se seguirão daqui em diante. Afinal, a linguagem é corpo. A assunção da ruptura do gesto em alinhavar cores, movimentos e vazio dá infinitudes tanto à “corporização” da linguagem quanto à “linguagização” do corpo. Então, o que importa não são os extremos impostos em uma coisa e em outra, mas o horizonte no qual a linha que costura corpo e linguagem se instaura.
O corpo fala aos moldes de vazio, no entanto o mais interessante é que o vazio não tem molde algum. Dar forma ao vazio é esgotá-lo de sentido, enchendo-o de falácias e estruturações plausíveis de conforto. Aquele típico de uma resposta bem dada que encerra uma pergunta. O fato é que se houve tal sensação confortável, a resposta não foi de fato uma res-posta, mas um algo responsivo de cunho aniquilatório, pois empreende a calcificação do pensamento na paragem adequativa entre uma dúvida e sua resolução. Ora, se responder é um movimento de recolocar continuamente uma questão, não podemos conceber o confortável senso responsivo, e sim, a angustiante empreitada de ser e estar em vivência.
A angústia é o desconforto do corpo em se entranhar mortalmente na vida. Uma ciência de desequilíbrio, cuja feição corresponde ao enaltecimento de uma falta, de uma ausência que fere, de uma necessidade de voltar a se ter o que jamais se teve. Temos a estranheza de algo que nos é muito próximo, porém que se ausenta nesta proximidade. E isto nos oprime porque aprendemos a estender as mãos e voltar com elas cheias, seja do objeto de desejo ou do afago de quem nos ama. Mas e quando as mãos voltam vazias? O que fazer quando nos encontramos sós e estendemos nossos desejos ao estéril? Angustiamo-nos.
A carne do corpo se fere e transfere sua dor à construção de uma forja lúdica. Aqui, troca-se o metal pela substância do nada, ou melhor, pela tentativa de consubstanciar o nada em equívoco material. É como se déssemos nomes com a tentativa de agarrar na nomenclatura a totalidade de uma coisa, pois se chamamos pelo martelo queremos agarrá-lo completamente em seu nome, queremos sua materialidade acoplada da funcionalidade a um só golpe de chamamento. Queremos sua imagem preenchida de corporalidade tátil a ponto de nos fundirmos no ato de quebrantamento.
A necessidade de possessão é maior quando no nome queremos um alguém ou a nós mesmos por completo: “[...] eu havia me transformado na pessoa que tem meu nome. Eu acabei sendo o meu nome” (LISPECTOR: 2009, p. 24). A vontade do corpo físico clama a ignorância da possessividade, queremos a completude do gesto em cada aceno em vez de deixá-lo livre à novidade de se ganhar o vazio. Este sim, fértil, doa ao gesto o silêncio, a dança, o afago livre de imposição. Um corpo que ama, um pássaro pousado no dedo: livre para voar ou sempre retornar, conforme nos narra Rubem Alves em seu livro O Retorno e Terno (1994). Entendemos que retorno não significa volta a um contexto anterior, mas viagem rumo à interioridade que o homem faz ao se escutar: pro-cura.
A evocação da certeza impele uma estrutura óssea na qual podemos nos encostar. Quando assim fazemos, deslocamos nossa força ao anteparo esquelético, criamos uma bengala macabra. Ficamos tão encostados e necessitados desta sinistra estrutura que pensamos não poder andar sem sua ajuda. Deste modo, todo nosso planejamento futuro leva em conta a coluna vertebral de nossa deficiência em sentir dor, em ser incerto. Incorporamos a ossatura da dor na medida em que damos a esta o estatuto da dificuldade física e sensorial. No entanto, a dor não está restrita à superficialidade dos sentidos, pois é por ela que se levantam os membros e se põem a rodopiar no eixo do não-compreendido. Heidegger ainda nos aponta uma possibilidade de se pensar a dor, ou seja, enquanto corte reunidor que, à medida que irrompe, traz para si o lugar e momento do rasgo. Portanto, a dor “traça e articula o que no corte se separa” (2003, p. 21), dando ao corpo a musicalidade de um improviso, ao repentino modo de acolher na desfeitura do correto um pouco das inúmeras possibilidades de se abismar e se desfazer de plangente ossatura. O salto neste abismo se torna mortal, excessivo de vida genuína: cria um corpo autêntico, ou seja, repleto de mortalidade, defeitos, imprecisões. É cáustico e sonoro, doce e efervescente, entalhado a partir do que não se pode ver do horizonte entre vida e morte.
O corpo se impõe em meio à desorganização da vida. Esta é inclausurável, não se atendo ao contorno de uma forma. A displicência do formato conjuga em suas linhas a certeza desapropriada do viver. A vida é transitada na morte como um trançado poético em que a circularidade entre ambas não espera a vez de quem se apresenta primeiro. Ao contrário, imergem simultaneamente no instante próprio de seu acontecimento. O real simplesmente se manifesta: um instante inequívoco com a duração de um lampejo inexequível pela razão. Neste clarão, rasga-se a ordem cronológica, trazendo para a fenda instaurada a simultaneidade entre início e fim como unidade. Nesta, o desdobrar de vida e morte se faz presente e perene naquilo que foi, é e será.
A realidade é um desajustamento do real, mas que se conjunta na harmonia complexa das oposições complementares, ou seja, vigora na entrância do que se desdiz e, nesta negação, afirma aquilo que se apresenta sem os moldes de adequação dos enunciados, sem a suposta verdade equivalente ao que seja verdadeiro atributivamente.
A fim de não nos perdemos na eloquência de uma língua encharcada de linguagem, observamos nossas colocações acerca da incomensurabilidade do real, compartilhando com a aflição da narradora de A paixão segundo G.H.:
Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que foi sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização? (LISPECTOR: 2009, p. 11).
A insólita condição da vida se manifesta nos pequenos gracejos do viver, pulsa desorganizadamente como envios de um real que não mira um alvo, apenas se lança na sua própria trajetória. Só temos que ter cuidado em não pensar no trajeto como percurso dado ou incrustado no chão após sua passagem. Eis um caminho que rasga o não-visível com sua força de acontecimento, deixando um rastro já desgastado em seu trânsito. É como um navio que corta o oceano, sendo o desenho de sua passagem tomado pelas águas.
O real se realiza no sendo do ser, na vivência da vida. Tal fato amedronta por não trazer consigo um manual de ações possíveis de convivência com o não-saber. Viver o que se vive é diferente de se viver o que se pensa que se vive, pois a vigência do sendo rapta a notoriedade do já estabelecido. A margem do inabitual instaura quedas em curva, posto o desaprender contínuo do sendo enquanto está sendo.
Cair, por si só, nos conduz ao mistério do obscuro. Porém, quando esta queda encurva, até mesmo a certeza do cair é desfeita. Logo, viver o que se pensa que se vive é uma incursão à ilusão protetora da realidade mediada por saberes, aquela na qual teimamos em permanecer velados do tempo sem medida, do destino imprevisível – uma vez que destino é o que está sendo na singularidade de cada momento. Já, viver o que se vive é radicar a vida na imediatez da realidade, do sendo-vida sem intercâmbios de ações controladas.
Ver aquilo que se mostra sem a claridade de um anteparo lógico encrava o homem na sua farsa de se projetar em todas as coisas. A intolerância de não se ver no seu redor o oprime por lhe retirar o poder de criação e de seu desdobramento na criatura resultante. A vida é sempre outra além do que se pensa ser, pois aquilo que se pensa da vida costumeiramente é um artifício próprio do descontentamento com a desmedida do real. De uma certa maneira, o que nos é facultado ver da vida é comparável à porção de água que retemos em nossas mãos quando as mergulhamos num rio, portanto, uma parcela delimitada da realidade.
O rio flui constante, repentina e inauguralmente em cada lugar de seu curso; logo, ele é a permanência tensional entre a fonte e a foz não só nos lugares onde nasce e deságua, mas em todo seu corpo fluvial. Ao desaguar no mar, o rio se plenifica, pois é tanto mais rio quanto o mar o possibilita ser.
“Por que é que ver é uma tal desorganização?”, indaga a narradora, inserindo-nos na proximidade de seu questionamento. A desorganização do ver conjuga naquilo que se vê a coisa mostrada e nossa relação com tal aparição. Então, o ver é a ambiguidade que traz para a presença do que se mostra a desorganização do real em se dar prontamente como improviso de si mesmo. Tal improvisação carrega o inabitual de uma apresentação originária simultaneamente àquilo que nos é peculiar de reconhecimento pelo nome, forma ou ideia. Na tensão desta ambiguidade mora nossa dificuldade de recolhimento com o que nos é exterior, com o que foge de nosso colo e resvala por nossos dedos quando tentamos agarrá-lo pelo conceito do visível.
Por vivermos em constante divergência com o que somos, vingamos pela impossibilidade de se responder ao questionamento inerente ao homem. Assim, vivemos na tentativa constante de nos sabermos, sempre perguntando o que é o homem, o que é isto – ser homem? Atropelamo-nos nas perguntas que fazemos e na ausência responsiva das mesmas, por isso nos angustiamos. A mesma angústia colocada pela narradora acima é também a nossa. Depositamos na visibilidade das coisas o conforto tão necessário à manutenção de nossa dor diária de estarmos vivos em morte. Queremos uma organização que suplante a intermitência do real, que nos responda: por que é que ver é uma tal desorganização?! Por que é que não damos conta do que a nós se improvisa, carregando-nos para o âmago de seu dilaceramento? Por que sentimos dor e nos angustiamos por não reter no dizível o não-dizível? Afinal, somos homens e possibilitamos existência às coisas, ou melhor, no que o real se possibilita enquanto realidade no âmbito do humano, existimos nas coisas desdobrando-nos nelas, portanto, concedendo-lhes existência.
Somos homens, por isso não temos a menor ideia do que isso signifique, exatamente porque estamos em vigência de ser. O humano é uma tentativa de procura ao essencial do homem, lá onde reside a ficção de uma célula-matriz. O corpo é uma reorganização da desorganização do humano em ser homem, uma questão que se prolonga além do alcance de seus (nossos) braços e concepções de mundo(s). O trecho do poema abaixo nos diz isso muito bem:
Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?
E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta
nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?
[...]
(ANDRADE: 1983, pp. 205-6)
“Mas que coisa é homem” que fala, normatiza, pensa, raciocina e se coloca abaixo do nome? Que homem é seu nome? Que nome dá ao homem o estatuto de sua humanidade?
O nome é um corpo no qual o homem se alinhava com a palavra. A palavra é corpo. A geografia da escrita do nome incorpora no homem a rasgadura de ser e não-ser. A cadência de seus passos costura no chão que pisa a lágrima sentida no calo de seu calcanhar. Assim, o corpo da palavra ganha gesto, voz e nome: um chamamento lançado no escuro de uma sala sem janelas, sem ar que respire as dúvidas de saber o que se é: corpo?
Não há geografia que meça a linha por onde a humanidade se conforme. Pois a humanidade não tem linha, só abstração. Nem o homem tem linha por não caber em uma sujeição: sujeito é coisa inventada para ter quem dê nome ao inominável. Mas a geografia esconde a terra por onde o homem pensa em nascer e se nomear, encorpar-se mediante a disputa das nominações: quem será a primeira cadeira, árvore, uva, maçaneta, peça de xadrez?
Sendo metafísico ou fábula, a questão que se coloca é a da transitoriedade. O homem é sempre outro junto e além de si mesmo, é o próprio limite de si com aquilo que ainda não conhece de seu avesso. A linha que tange seu corpo é regida pela surpresa de uma ruptura iminente. O traçado livre de mãos ausentes, de disciplina enrijecedora deixa aparecer a simplicidade de um corpo nu que fala com sua pele, que sente com seu acaso. Uma fabulação de silêncios que ultrapassam a fronteira dos signos, das cascas de palavras encucadas de trejeitos normativos. O corpo é uma tal pergunta que sempre se renova no desconhecido de suas curvas, entrâncias e mistérios de gozo.
O homem sem mundo é corpo sem asco, é pele sem vazio, poro que descama sílabas no balbuciar da infância. O corpo irrompe em mundo ao lançar-se mundanamente no antes de todo instante. Não se dá conta do que seus olhos não alcançam, mas recolhe no lançamento de seu olhar o mundo que se ilumina à sua vista. Sente o que lhe é oferecido e encorpa em si tanto o mundo captado pelo que sente quanto a impossibilidade do que não sente. Então, a diferença não é resultado de estatísticas divergentes, mas o que concede na intimidade de cada coisa aquilo que lhes seja próprio.
Sumindo o mundo, some o corpo, o homem. Não porque temos uma relação de criação unilateral na qual vigora uma patriarcalidade dominante, mas porque no mundo temos uma mútua doação em que cada um se preserva como é. Tal conservação concentra na diferenciação dos entes o ser que lhes concede vigência. É um mesmo vazio que se dá, porém que se singulariza no enlace com a diferença própria de cada um. Diferença então é o limiar de reunião do que se difere e iguala enquanto entrelaçamento do que seja essencial em cada coisa. Em vista disso, podemos pensar que “[...] sentir é apenas um dos estilos de ser” (LISPECTOR: 2009, p. 99).
Por outro lado, o calabouço das sensações limita o sentir na delimitação dos sentidos, e isso é o que dá certeza à vivência: a instituição do presente como tátil. Só existe o que se dá ao toque, o que cabe no conhecimento do gosto, do cheiro... A prisão do corpo carnal agarra o mundo no exagero do sensório. Nele, o prazer do orgasmo é do tamanho do mundo que cabe no seu arrebatamento físico, e isso não parece suficiente. Daí a evocação do poema em prol do corpo, do homem, do nome.
Como não perder o nome em meio a tantos nomes? Como não ser homem depois de tantos homens? Como é ser e saber que (ou o que) somos enquanto estamos sendo? Como não tentar responder a pergunta que interrompe nosso sono, que ardilmente acalenta nossa fome, que atrapalha nosso sexo? Como não ser o que se é quando já somos o que não-somos na vigência do sendo? Como não cair em redundâncias? Como não fazer um parágrafo ou um texto inteiro só com indagações a respeito da impossibilidade de se responder a cada coisa interpelada?
“Como se faz um homem?”
Fazer um homem é criá-lo, e “criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (LISPECTOR: 2009, p. 19). Logo, o homem é uma incerteza, um ocaso de possibilidade do real. Nesta instabilidade, é construção contínua e modo de retenção do que se lhe apresenta. É um entre que conjuga em seu corpo a vida e a morte: um espaço de transição entre o ordinário e o extraordinário. Não tem a realidade a seu dispor, ela que o tem. Contudo, não é uma relação de confecção escultural e sim um engalfinhar-se de momentos, de matéria e (im)probabilidades.
O risco de se ter a realidade aponta o lampejo do ser, a fagulha que rasga o vazio, atravessando a tênue percepção do factível. A realidade é mais do que nossos sentidos alcançam, portanto, mais do que a medida de nossa visão ou densidade de nossa audição. A realidade é trânsito que se desapega do estático para se fundar no extático, ainda que confundida com a solidez do cotidiano mal interpretado; é a impossibilidade de ser abrangida numa definição. Neste caso, qualquer tentativa de fazê-lo é já uma investida passada, radicada na derrota de um ensaio conceitual, antes mesmo de sobressaltar a voz e ganhar a fala.
O fazer do homem homem é uma propulsão desejosa de paradas e nomeações. Não depende de um sujeito que abocanhe a autoridade sobre tal. Não é um deus repleto de atributos e nem tampouco as conjecturas cósmicas que alcunham sua autoria e responsabilidade. O homem é uma constante na qual fincar seu início é perdê-lo em meio às diversas tentativas de figurá-lo maquinalmente. Como se a busca pelo seu protótipo respondesse definitivamente à questão “como se faz um homem?”. Deste modo, cremos que:
Não há, não pode haver o primeiro homem, porque a natureza súbita ou i-mediata da vida, o acontecimento inaugural, quer dizer, sua estrutura de salto e, então, de círculo ou de circularidade, impõe que homem seja sempre já contaminado, sempre já poluído, isto é, sempre já constituído, determinado ou singularizado. Portanto, sempre já contaminado ou poluído de vida, do ou no viver que é o sempre já concreto, realizado, exposto (FOGEL: 2009, p. 44).
O homem é um corpo insólito. O corpo é sempre um risco de se ter o homem. É neste jogo que ocorre a permanência do humano, pois sem saber sua origem e possível fim, o homem se estabelece contínuo pela sua inconstância. Expõe-se na vicissitude de quedas irrompidas como improvisos de sua vivência, ou seja, é a própria teatralização da realidade em ser várias num só instante.
O corpo é completo em cada parte, não há constituição sistêmica ou partições residuais de funcionalidades que o situe especificamente: “eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede – sou cada pedaço infernal de mim” (LISPECTOR: 2009, p. 64). O corpo se arrisca em ter o homem em sua corporeidade, uma vez que este é já um rabisco de realidade, um traçado contínuo do ser no seu desdobramento de permanência. Uma morte constante que plenifica a vida em sua perseverança: a não-paragem de morrer é um viver incessante. Morre-se vivendo para que se viva morrendo. A redução deste alumbramento do real decorre da importância dada ao visível, coisa que já vimos se basear na limitação orgânica dos olhos. Um corpo que apodrece sua carne é tido como limitado em seu prazo de validade física, no entanto, sua vida é continuada nos vermes que devorarão sua carne:
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
(ANJOS: 1994, p. 209)
O corpo não é carne amolecida, apodrecida nos escombros de sua desvivência. Enterrar um corpo morto é possibilitar a efervescência de vida, é dar a este mesmo corpo a possibilidade vivificadora dos vermes e radicalizá-lo no terreno de sua nascividade. Pois, a terra é o berço da morte, a mãe que nos traz à vida, o útero no qual a experiência de todo um universo reside. Portanto, enterrar um corpo é crivá-lo e cravá-lo de nascividade.
O homem é um corpo irregular desde sua gênese, a simetria de sua errância é a incondicional permanência do incoerente. Ressignifica-se a todo momento, tentando comportar a realidade no seu real inventado, isto é, sua ilusão subjetiva o coroa como senhor de si mesmo, assenhoreando-se como detentor do inalcançável. Sem tautologia alguma, o mundo é o seu mundo e deste se pensa ou, pelo menos, tenta-se o total domínio: “Pare o mundo/ Que eu quero descer” (SEIXAS: 1976, faixa 6). O domínio do mundo é a retenção da realidade à sua (nossa) vontade, um enclausuramento às avessas, pois quando se pensa o gozo da liberdade a portas abertas, na verdade, nos trancamos na cela de nós mesmos: um corpo carcerário com grades de ossos e cama de adiposidade. A latrina... São nossos ouvidos e boca.
O corpo é sensação, percepção, captação do que nos atravessa os poros. Mas não só. É também o acúmulo do nada, um vazio gestante sempre prestes a acontecer. Assim, é algo ainda não nascido em sua própria caminhada de mortal-avivamento. A possibilidade de ser outro em si mesmo assinala sua liminaridade. Às vezes não sabemos se é corpo ou homem, se é morte ou vida, vazio ou inteiro. Entretanto, embora não saibamos, podemos nos deixar possuir por este não-saber e trilhar a passagem do não-visível ao visível. Assim, sabemos não-sabendo o que seja corpo, mais ainda, o que seja homem.
O corpo é uma questão. Eis uma afirmação que traz em sua positividade a negação de seu próprio enunciado. Pois, questão é o que sempre se redimensiona, que galga a perene travessia de ser, é um sendo. Portanto, se um sendo é sempre algo a ser e que está sendo, logo, a questão é a constância de um porvir. Um desdito afirmado em seu dizer, um não-dizer que se diz ao se encobrir no chão recoberto pelo pé durante uma caminhada. O corpo é então a certeza de uma incerteza que se incorpora na assunção do que não-é. Percorrer o corpo ao tentar pensá-lo é aceitar sua radicalidade enquanto questão. É não saber o homem, apenas conhecer um pouco da parcela do que nos chega pelos sentidos ou por nossa disponibilidade de abertura ao acolhimento do que se é.
Homem e corpo se fundem na praticidade de uma nomenclatura, porém sua proximidade os distancia no abismo de se perguntar pela essência de cada um. Cada pergunta nos conduz a uma queda sem fim, daí o temor em adentrar a questão, mais ainda, de nos deixarmos tomar por ela. Mesmo assim, como somos insistentes, sempre perguntaremos: como se faz um homem?
Referências
ALVES, Rubem. ORetorno e Terno. Campinas: Papirus, 1994.
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Especulações em torno da palavra homem”. In: Antologia poética. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
ANJOS, Augusto dos. “O deus-verme”. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
FOGEL, Gilvan. “Notas sobre o corpo”. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
HEIDEGGER, Martin. “A linguagem”. In: A caminho da linguagem. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. “Eu também vou reclamar”. In: SEIXAS, Raul. Há Dez Mil Anos Atrás. São Paulo: Universal, 1976.
Doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Publicou ensaios sobre teatro e seus estudos sobre o poeta moçambicano Virgílio de Lemos em diversos periódicos. Ministrou cursos de extensão na UFRJ, cujos temas abordados giraram em torno de poesia, arte e pensamento. Em 2016, coordenou o projeto de extensão "Poéticas - Projeto de Capacitação de Professores e Formação de Leitores Literários", pela UNIRIO, no qual ministrou todos os cursos que compuseram o projeto. É autor do livro "A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos" e coorganizador do livro "Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento".