O trânsito das ruas e as vielas do pensamento insurgem obscuras na algibeira do acaso. Nenhum negrume, verme encaixotado, se alarga na dimensão do horizonte. Este, linha que costura a infâmia do vir-a-ver, surpreende o mais atento encarnado de fábulas e objeções; pega o repentino momento de aclaramento das ideias e zapt: o espanto toma o poeta e convoca o nascimento trágico de ser!
Para além das ontologias des-dizentes o poema se coloca firme ante a voz. O alumbramento da fala encara o silêncio no anteparo da razão... Esta, coitada, esvai-se em conceitos e deturpações subjetivas... Um caso de poema perdido, uma sala ocupada de nada: o ventre livre e cheio de nascividade.
O poeta atende ao chamado e se põe a falar: canta o canto musal em plenitude de memória. Mnemosýne e Musas numa orgia de versos, gestos e silêncio. Thaumadzein!... E o poeta irrompe em mundo! A poíesis coloca-se no incesto do dizer, pois doa e retira a fala de sua boca num aletheiamento inesgotável de sagrado e profano: circulares movimentos de velo e desvelo: consumação.
Consuma-se a fala na linguagem, consuma-se o rio no mar... nos consumamos em ser o que somos no apelo ao sagrado:
A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
(PESSOA, Fernando. “Dos poemas inconjuntos”. Poesia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1970, p. 66)