Numa postura de escutaatenta ao que o poema nos diz e nos incita a pensar, observaremos jáemsuaforma a ambigüidade da negação. Ou seja, ao mesmotempoemque o mesmo ajuíza emseutítulo a conformidade do pensar retido ao formato, as questões levantadas porele esfumam taiscertezas.
A palavraretórica conceitualmente nosleva ao entendimentotanto do bemfalar premeditado a umfimquanto à verborrágica desmedida da redundância. Desta maneira, o poema ambigüiza o caráterconvencional do enunciadocom a desfeitura de seusentidocomum, poisquandonos debruçamos na estrutura tripartida do poema, lançamo-nos na dimensão do desencascamento porele explicitada. Isto é, retiramos a “pele” do convencionalparanos entregarmos à fala do poemaemtrêsmomentosmuitobem demarcados: a linguagem; o corpo; o pensamento. No desenrolar deste pequenotexto, observaremos maiscalmamente os movimentosaqui cogitados.
1: a linguagem
Semsaber o que seja o canto, os pássarossimplesmente cantam. Corporificam no desentendimento de ser a plenitude de seucorposonoro: “todo su entendimiento es su garganta”. Não há razãoque determine o cantar, postoqueestenão precise de conhecimentospréviospara se realizar.
Neste primeiromovimento, a rupturacom o sentidocomumque o títuloabarca é explicitada quando a necessidade de umconhecerracional é postaabaixo. Esteconhecerracional é sempre posposto à coisa mencionada, haja vista a insurgênciaempíricacomofundamento do sabermoderno. A adequação de umenunciadocomsuadescriçãoperfeita convoca a verdadeenquantomecanismomaniqueísta, isto é, não há ambigüidadeentrecerto e errado. Estessãosempre a fronteira previamente estabelecida pelarazão.
A negaçãoque o poema eleva é o da ambigüidade, na medidaemque o não-saber não é uma meranegação ao saber, ou seja, não é ummovimento esvaziante de sentido. Muitopelocontrário, o não-saber é o que propicia a sapiência. Poissaberalgo é morar na sua anterioridade, é ouvir o silêncio no qual residem todas as palavrasaindanão ditas. A excessividade do silêncio doa todo o cantar e, no canto, o silêncio se fundamenta veladamente. A linguagem atravessa o homem (Cf. Heidegger: 1995); só há canto porque, antes, há linguagem e esta inaugura a fala a cadamomento de suaenunciação. Assim, canto e silêncio acontecem exatamente no mesmoinstanteenquantomovimentocircular de velamento e desvelo.
2: o corpo
Neste segundo mo(vi)mento, o poemagalga uma outraetapa do desencascamento do racional.
A fim de situarmos nossadiscussão, pensemos o sentido de pele: é aquiloque encobre o corpo e se ajusta à suamovimentação. Alarga-se, encolhe-se, sua, recebe o corte e sangra. Não age sozinho, mas segue o movimento do que se velasobsuaproteção. Contudo, pensando numa instânciatátil, se não fosse seuabrigo, o corpoorgânico se esfacelaria. O poemaconjunta a tradição da formalidadecom a dinâmica da acontecência poética, isto é, os doisversos do segundomovimento acabam com a dureza de uma estrutura calcificada e a entregam à tensão de uma constantemovimentação.
Se pensarmos na modernidade hispano-americana, poderemos perceber que a forma “no es prisión” não se restringe a umdesenhoestático, mas se desenha a cadatraço rabiscado. Então, podemos tambémdialogarcom o fato de que tal modernidade se funda numa oposição antiopositiva, exatamentepornão se polarizar antagonicamente, mas se imiscuir na ambigüidade dos opostosquenão se contradizem, e sim, complementam-se.
3: a clareira do saber e não-saber
Neste últimomovimento, a circularidade poética se faz evidente ao retomar a questão da primeiraestrofe. A claridadenão é o saberracionaltípico de uma era iluminista. Esta tradição é desfeita no jogosemânticoentre a claridade do cristal (a razão) e a insuficiência de sua substância ao conhecer (o pensamento).
Se pensarmos peloviés do saberempírico, a suficiência se dá quando uma medida previamente estabelecida é satisfeita; quando a adequaçãoentre uma coisa e seuenunciado se acoplam perfeitamente. Maisainda, quando a retórica se fundamenta na verborragiaredundante de conceitos.
A imagem do cristalcomo representatividade racional é questionada no momentoemquenão ocorre a adequação: “No es claridad paramisuficiente”. A insuficiência se dá na necessidadeimanentementehumana de sempresabermais. E estesabernãocomoacúmulo de conhecimento, mascomo experienciação do imprevisto.
A claridade da água é contraposta à claridade do cristalparaavultar a dinâmica supramencionada. Isto é, a primeiranos diz o trânsito; o sentidoreferente à duplainsurgência do que se mostra na luz e volta a se velar na escuridão. Eis a inconstância do poético quandoemseudizeroriginário (a poiesis) congrega o agirprimordial. Ou seja, “o alcance, o sentido e a essência do agir. A esta os gregos denominaram poiesis” (Castro: 2005, 23).
Neste poema temos a desfeitura do convencional na simplicidade de trêsmovimentosque, na particularidade de cadanúcleo – o canto (linguagem), a corporeidade da forma e o saber (claridade) –, engendram a grandiosidade do pensamento poético.
Referências bibliográficas
CASTRO, Manuel Antônio de. Heidegger e as questões da arte. In: ______ (org). A arteemquestão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1995.
PAZ, Octavio. Retórica. In: Condición de nube, 1944.
Doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Publicou ensaios sobre teatro e seus estudos sobre o poeta moçambicano Virgílio de Lemos em diversos periódicos. Ministrou cursos de extensão na UFRJ, cujos temas abordados giraram em torno de poesia, arte e pensamento. Em 2016, coordenou o projeto de extensão "Poéticas - Projeto de Capacitação de Professores e Formação de Leitores Literários", pela UNIRIO, no qual ministrou todos os cursos que compuseram o projeto. É autor do livro "A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos" e coorganizador do livro "Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento".