No empenho de interpretarmos o poema “Cultivo una rosa blanca”, de José Martí, faremos uma breve contextualização do modernismo hispano-americano, tendo como referência e diálogo o poeta já mencionado. Então, é com este intuito que acreditamos ser interessante conciliar um breve contexto histórico pelo qual José Martí era atravessado.
José Martí é natural de Havana. Mais conhecido por sua militância em prol da independência cubana, elevou sua imagem como figura importante dos movimentos libertários. Desta ambiência, podemos ressaltar que sua produção artística se deu em função do papel de destaque que desempenhava na independência cubana.
Martí, ainda pelos anos da adolescência, apoiou a Guerra dos Dez Anos (1868-1878), cuja relevância enseja a luta pela soberania de Cuba. Anos mais tarde, redige as bases e o estatuto do Partido Revolucionário Cubano, cuja proclamação ocorreu em 1890.
Apesar de sua produção girar em torno dos assuntos de sua militância (haja vista a publicação do folheto “O Presídio Político em Cuba”, no qual denunciava o período em que passara enquanto preso), destacou-se como precursor do movimento modernista hispano-americano. Sua obra o dimensiona num universo de vasta produção literária, posto que seja escritor, orador, poeta, cronista, jornalista, educador.
Então, é com o enfoque no literário que agora nos dirigimos ao dialogarmos com o poema “Cultivo una rosa blanca”.
CULTIVO UNA ROSA BLANCA
Cultivo una rosa blanca;
En julio como en enero,
Para el amigo sincero
Que me da su mano franca.
Y para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo,
Cardo ni ortiga cultivo
Cultivo una rosa blanca.
O modernismo hispano-americano é caracterizado por seu dinamismo, pelo senso de ruptura com o que vigorara até então, gerando uma sociedade em que seu componente humano se encontra em conflito constante. Assimila os diferentes movimentos estéticos, fato este que se expressa na variabilidade expressiva das obras de arte de tal época. No poema em questão, observaremos estes traços manifestos.
Atendo-nos ao título, percebemos a palavra-chave do poema: “cultivo”. Este cultivar é o ponto de reunião histórico em que se refletem as tensões pátrias[1] do povo cubano na luta pela independência e entre a permanência de gestos que, em sua simplicidade, compõem a complexidade de um manancial de atitudes estéticas. Isto é, este verbo é o anverso e reverso de uma estrutura poética que, em sua composição, recolhe a essência dos movimentos de ruptura ao congregar, no caso do poema, as facetas múltiplas de um mesmo gesto.
Temos duas estrofes que aparentemente se opõem. Entretanto, quando nos demoramos um pouco mais em sua leitura, percebemos que toda contradição é desfeita no âmbito da ambigüidade. Em outras palavras, esta ambigüidade não é sinônimo de confusão lógica. Ao contrário, indica-nos a efervescência da assimilação das vanguardas em transe, na medida em que o poema ressalta a impossibilidade de uma simplória leitura dos significantes.
O primeiro verso é a repetição do título acrescida de uma especificidade de sentido. Ou seja, nele temos a imagem da “rosa blanca”. Esta é cultivada tanto para “el amigo sincero” quanto para “(...) el cruel que me arranca / El corazón con que vivo”. Então, a “rosa blanca” é a metáfora que diz a reunião dos opostos no movimento de absorção das diferenças culturais. Mais ainda, tal imagem abarca a dupla possibilidade de tanto suplantar o subjetivismo romântico quanto apontar para o multiculturalismo moderno. Um outro verso que aponta para o duplo domínio dos opostos que se assimilam é o segundo verso[2] da primeira estrofe. O interessante dele é percebermos como a preposição “En” e a conjunção comparativa “como” centralizam o movimento de trânsito. Os termos “julio” e “enero” (meses do ano) ficam em segundo plano, na medida em que as classes de palavras citadas desfocam deles o núcleo de tal movimentação por trazerem, de fato, a idéia de trânsito.
O verbo cultivar torna a aparecer nos últimos dois versos do poema: “Cardo ni ortiga cultivo / Cultivo una rosa blanca”. A inversão aqui proposta e a repetição do verbo em questão ressaltam a ironia crítica ao se perspectivar a paz para além de uma simbologia corrente: a rosa branca. Mais do que uma representação corrente de concórdia, a imagem da rosa funde a tradição e a vanguarda, uma vez que “desloca” o significado do significante. Isto é, retira do senso comum a significação de paz transmitida pela cor branca da rosa para ironizá-la mediante a transitoriedade da modernidade hispano-americana. Vale ressaltar que a ironia de que tratamos aqui não se reduz ao sentido comum do dicionário, no qual tange a relação de ênfase aos contrários. Enviesamo-nos pelo sentido grego de ironia, ou seja, de crítica questionante.
Enfim, ao fechar o poema com um verso homônimo ao título, percebemos a circularidade poética que incita a dinamicidade de tempos não recolhidos ao marasmo de padrões pré-formados. Se ser moderno é estar em movimento, como já disse Marshall Berman, eis uma maneira de mostrar como a produção poética de José Martí compõe, ou mesmo funda, um período caracterizado pela expansão espacial, pela crise das oportunidades e pela constância de movimentos, só para citar algumas das características do modernismo hispano-americano.
Pequena bibliografia
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CRUZ, Jacqueline. Esclava vencedora: La mujer en la obra literaria de José Martí. In: Hispania. Volume 75, nº 1, março de 1992. Visitado em 14/09/2008. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02494943103138163754491/p0000003.htm#I_6_
Homenagem a José Martí. Visitado em 14/09/2008. disponível em: http://www.unb.br/ceam/nescuba/homenagem2.htm#_ftn1
[1] Referência direta ao sentido de terra tanto como morada essencial (telúrica) quanto como pátria.
[2] “En Julio como en enero”