26 de abril de 2010

O rio como insólito na terceira margem do homem*


Do outro lado do medo e da morte
a alma capta mais
do que se não vê

Para fazer um mar, Virgílio de Lemos

Toda leitura nos exige um aprofundamento, por isso, não devemos percorrer um texto levianamente. Muito mais do que uma varredura superficial, devemos nos aprofundar junto com o texto. Eis a dinâmica dialogal da leitura: estar junto, ler a obra a partir do que a mesma nos oferece como desafio de autoconhecimento. Então, sem o intento de separações dicotômicas, empreenderemos esta leitura. Neste texto não haverá delimitações entre uma suposta realidade real e outra “fictícia”. Procuraremos sempre o caminho do meio, o “entre” que reúne as diversas e incontáveis realidades na fulgurância e inesgotabilidade do real.
Ao ensaiarmos uma perspectiva, estamos em contato direto com a Poética, já que: “A Poética é um universal concreto que diz respeito a todas as culturas, porque diz, essencialmente, respeito ao humano do homem” (CASTRO, 2007: 12). Assim sendo, dialogaremos com o próprio dizer da obra realizado em nossa interpretação. Este tipo de conduta de pensamento não engessa um conceito, ao contrário, possibilita que haja uma renovação constante da fala do poético na obra de arte.
Em “A terceira margem do rio”, conto de Guimarães Rosa, nos deparamos com uma questão primordial: a dobra. Como assim? Ao pensarmos o título do conto, temos a proposição de um questionamento que, a princípio, parece metafísico, mas que se impõe poeticamente à medida que imergimos em sua leitura. Tal afirmação é feita em consideração à palavra “terceira”, ou seja, o caráter metafísico está no possível conceito de terceiro como aquilo que está fora, à margem. No entanto, será que realmente podemos dizer que tal enumeração indica algo de cunho exterior? Quando entendemos que a palavra “terceira” está diretamente ligada ao homem, apontamos também na direção de um sentido misterioso de ser e existir. Mais ainda, de um desdobramento enquanto acontecer poético do homem.
O modo misterioso de o homem ser não se atém ao engano ou à ficção, isto é, quando se entende ficção por uma ação voluntária de fingimento. Neste sentido, “ficção seria, pois, criação da imaginação, da fantasia, coisa sem existência real, apenas imaginária” (WALTY, 1985: 15). Muito pelo contrário, o mistério a que nos referimos diz respeito ao originário do homem, à essência silenciosa de ser e existir enquanto realização do próprio do humano. Assim,

Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e reconhece fora das possibilidades de ser, conhecer e dizer. Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar e descobrir-se no âmbito da Linguagem, do lógos (LEÃO, 2007: 33).

Daí, somos levados a encarar o homem em sua habitação na linguagem, quando, a partir desta, realizamo-nos poeticamente no sentido de ação originária do lógos. Fazemos, deste modo, uma leitura poética do homem em diálogo com a obra de Guimarães Rosa. Com isso, em uma outra dimensão de questionamento, perguntamos o seguinte: o que seria uma leitura poética? Mais ainda, em que medida esta leitura é capaz de explicitar uma íntima ligação entre o homem-humano e a “terceira margem do rio”?
Por mais que façamos perguntas, elas nunca atenderão ao que realmente queremos. E o que realmente queremos? Uma leitura com um objetivo meramente investigativo? Que desfaça qualquer dúvida interposta entre um saber e um não-saber? Em vista disto, mais uma questão se apresenta: a tensão entre saber e não-saber.
O conto de Guimarães Rosa nos revela quanto cada homem é tão próximo e distante um do outro. Somos cindidos pelo corte reunidor da di-ferença, e esta nos lança no abismo de entre-ser. Dizemos isto porque diferir não é distinguir um dentre uma generalidade de vários, mas reunir na singularidade o próprio de cada um em sua múltipla possibilidade de ser, isto é, a di-ferença nos diz o “entre”, o caminho do meio na intimidade que não afasta o brilho da humanidade da essência de cada homem. Portanto, é a mediação que entrega cada homem ao seu modo de ser em relação ao outro (Cf. HEIDEGGER, 2003). Assim, detemo-nos em uma leitura que configura um modo de se pensar o homem enquanto travessia. Eis, portanto, a leitura poética. Mais ainda, teremos uma imagem-questão concretizada no empenho da construção de uma canoa que desliza pelas águas do rio sem nunca desembarcar, sem se aportar à realidade dita comum.
A narrativa poética de Rosa colocará em evidência uma outra questão: o insólito. Não como gênero, metáfora ou tradição literária, e sim, como instauração de uma realidade própria e con-dizente com o habitual. Neste caso, habitaremos um mundo inaugural e apropriante de um olhar pessoal, cujas linhas e entrelinhas nos lançarão ao silêncio fecundo de vozes que nos falam e conosco dialogam. Portanto, uma dinâmica de retorno ao princípio, ao originário como fonte de caminhos que se cruzam e se ambiguizam no cerne do real.
A poíesis, doando-se ao momento de nossa leitura e reflexão, também se realiza enquanto movimento poético de escuta e fala. Então, pensemos: o que é isto que transfigura o sólito, o comum, e re-cria uma outra realidade? Que não se soma ou se subtrai, contudo, anda em conjunto com o corriqueiro de nossos dias? O insólito? Se afirmativo, seria esta uma resposta que responderia à pergunta, encerrando a questão? Não. Pensar o insólito enquanto divergência e ocorrência de uma realidade na riqueza do real é se ater ao vazio repleto de possibilidades, manifesto veladamente no acontecer da vida. Desta maneira, se o in-sólito se dá como movimento ambíguo entre interiorização e negação na dimensão do habitual (Cf. PESSANHA, 2008: 37); também refuta, desdiz e inaugura um outra realidade vigente na não-afirmação do banal.

A canoa: símbolo da mudança ou “entre” do insólito?

O conto se inicia com a presença do ordinário: “Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação” (ROSA, 1967: 32). Podemos, então, pensar esta ordem como o corrido dos dias, a banalidade do cotidiano que abarca todas as pessoas. Entretanto, algo ocorreu que remexeu a imobilidade da vida simples do interior: a construção de uma canoa. E não era qualquer embarcação, mas uma que suportasse o tempo do sem-fim.
A construção da canoa deu início ao desassombro de uma vida comum que, de uma hora para outra, se pôs a idealizar um modo novo de viver. Em relação ao afastamento do personagem do “pai” (doravante, a palavra “pai” virá sem aspas, referindo-se sempre ao personagem do conto), podemos compreender o atendimento ao chamado do extraordinário: “Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa” (ROSA, 1967: 33). Isto é, sem motivo aparente, tal personagem saiu da ordem estabelecida, transgredindo uma realidade que se supunha estável para abraçar um tempo que nascia no ato de sua decisão. Porém, será assim mesmo que o fato ocorreu? Será que a mudança se deu realmente no ato decisivo de mandar construir para si uma canoa? Ou esta situação já se instalara no personagem-questão com uma antecedência inominável pela racionalidade? E este, o pai, seria um evento à parte do homem? Circunscrito ao que a tradição chama de ficção? Ou está mais próximo de cada um de nós enquanto evento insólito da realização do humano no homem? Por enquanto, suspenderemos estas questões, a fim de pensá-las mais tarde.
Se virmos a canoa como símbolo, incorreremos em uma superficialidade retórica, cujo entendimento da obra se daria no funcionamento de uma narrativa de fatos fantásticos, ou seja, que se assegura na subjetividade do leitor, posto que “o Fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 1992: 100). Na verdade, perceberemos que a canoa não simboliza nada. Não serve como marcador de um acontecimento, mas como realidade que acontece no próprio tempo de sua ocorrência. Esse tempo é o do não-ver, de uma realidade inauguradora de um instante sempre-novo e nunca-sabido. Desta maneira, ao pensarmos as palavras de Gilvan Fogel, ratificamos que “o símbolo, por definição, não é a própria coisa, mas a evocação, substituição ou representação da coisa ausente” (2007: 43).
A canoa não se ausenta e nem recorre a uma presença representada. É a própria coisa se dando na inter-relação das realidades. Estas não se separam, mas se conjuntam na tensão própria das facetas do real. Deste modo, o ensejo de uma embarcação que se recolhe no silêncio do rio, refere-se ao originário do homem.  E este segue na escuridão de um caminho que não se apresenta aos seus olhos, ao contrário, vela-se no enigma do que não é conhecido e nem aceito pela perspectiva racional. Então, o mistério se revela no percurso da caminhada, já que aquilo que se mostra ao mesmo tempo em que se retira pode ser entendido como o seu traço fundamental (Cf. HEIDEGGER, 2001: 25). A canoa é a nova casa da viagem no e com o rio.
Para além de uma margem que não vislumbra a outra (Cf. ROSA, 1967: 32), encontra-se a canoa habitada por um homem. Ambos na fluência do rio, atravessados pela correnteza que é sempre outra na novidade de suas águas. Chegamos, então, à questão proposta nesta seção do ensaio: a canoa simboliza a mudança ou ela se insere no “entre” do insólito? Como vimos, ela não simboliza nada por ser a própria presença da coisa, no caso, da questão que a nós se apresenta. No entanto, traz a mudança à configuração do conto e se instala como “entre” do insólito.
O rio é, ao mesmo tempo, permanência e mudança. O trânsito de suas águas gesticula o inefável de suas margens. Estas não indicam um caminho. Em vez disso, suscitam um itinerário de dúvidas e questionamentos, na medida em que apontam ao horizonte do não-saber. Mais ainda, desdobram-se na tensão vida-e-morte enquanto incursão na travessia do homem, posto que só se dão como margem porque há um fluxo de águas que as faz margear. As margens não são margens porque delimitam o curso do rio, mas porque o próprio rio doa sua condição de permanência. É neste sentido que o “entre” do insólito se apresenta: estando na emergência de uma condição que não se restringe ao que se vê com a visão, mas que se sente com o não-ver dos olhos. O in-sólito: a quebra da banalidade na dupla regência do prefixo “in-” em negar e adentrar intensivamente o que é sólito: permanência e mudança que se refluem, transitando no que não foi delimitado. Eis a proximidade com o homem: o insólito do rio no inesperado da vida do homem-humano.
Agora podemos retomar as duas questões acima suspensas. Vamos à primeira: a mudança se deu no pedido de construção da canoa ou já pertencia ao pai? Ao se atentar ao pedido, o pai correspondeu à fala da linguagem, isto é, tal decisão não partiu de sua vontade, mas do lógos. Nunca realizamos o que queremos, mas o que já nos foi destinado, já que o sendo que somos se realiza destinalmente na caminhada do nosso caminho. Assim, apropriamo-nos do que nos é próprio. Mas o que é corresponder à fala da linguagem? Afinal, não somos nós que nos expressamos e, nesta pronúncia do que pensamos, a linguagem se realiza como fala?
A não ser que nos embrenhemos pelo discurso da linguística, cujo primeiro intento é separar a linguagem do homem ao analisá-la, este tipo de caminho não condiz com a experiência do mesmo enquanto realização da linguagem. Sendo assim, entendemos que “o homem fala à medida que corresponde à linguagem. Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que pertence ao chamado da quietude” (HEIDEGGER, 2003: 26). Ou seja, partimos da linguagem. Não estamos acerca dela e, ao nos referirmos à postura do personagem em questão, temos que sua decisão já se impunha como chamado do mistério, do lógos, e do rio enquanto lugar do não-saber, do não-ser, do vazio. Assim, não é uma mudança de um estado psicológico para outro, mas uma que permanece na conjuntura da complexidade da vida. A tensão de estar vivo é se deparar a todo instante com o acontecimento da morte. Eis o insólito se manifestando.
Se em outro momento do texto, dissemos que este conto de Rosa nos revela enquanto homens, podemos articular com tal proposição a segunda questão acima: a interpenetração entre o pai e o ser humano. Logo, considerar tal personagem como figurante de uma narrativa literária seria não se deixar atravessar pelo sentido fundamental de toda obra de arte: o de corresponder à essência do homem. E isto se dá dissimuladamente, ou seja, o verbo “dissimular” significa correntemente um tipo de fingimento, uma branda mentira. Todavia, se formos mais cuidadosos e sensíveis à fala de tal palavra, veremos que dissimular diz a dobra do sendo em ser e não-ser. Isto é, muito além de um conceito categorizante, o dissimular traz a vigência do que se oculta na afirmação de uma negatividade. Assim, o que é negativo é, também, positivo na medida em que não se induz uma escolha, mas recolhe ambos como desdobramento do que se dissimula. O não-ser do sendo funda a possibilidade de ser e não-ser, do mesmo modo que, se pensarmos nas obras de arte, estas se desdobram na dissimulação do agir fundado pelo não-agir. Em suma, pela quietude do nada em consonância com o não-saber do homem. Tal quietude nos leva a pensar um outro trecho do conto: o silêncio no agir do pai.
Em silêncio, o pai agia: “Só quieto” (ROSA, 1967: 32). Também silenciosamente, o rio permanecia: “o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre” (ROSA, 1967: 32). Seria apenas uma coincidência? Cremos que não. A fecundidade do rio em se doar originariamente pressupunha um destino que o ligava ao pai. Assim, o destino não é algo a ser desvendado. O destino do homem é ser o que é.
Um possível equívoco na leitura deste conto seria ficar no entorno da ambiência metafísica, querendo saber e responder ao mistério das imagens-questões. Estas imagens não se colocam para serem respondidas, pois, se assim ocorrer, teremos um esvaziamento das questões levantadas pelo conto, ficando apenas um palavrório conceitual. Muito mais do que esta superficialidade, as imagens-questões nos levam ao encontro com nossa interioridade, isto é, levam-nos à escuta de nossa essência, ao princípio do que somos enquanto homem-humano. Desta maneira, interpretar é sempre um movimento de retorno ao que sempre fomos, uma pro-cura por nosso próprio.
Nos caminhos da interpretação de “A terceira margem do rio”, somos levados a nos questionar pelo “entre” do insólito também na imagem da canoa. Contudo, na verdade, esta deu início ao movimento de quebra da realidade cotidiana, instaurando a acontecência de uma nova visão sobre o sentido do desdobramento do real em realidades diversas. Por este viés, entendemos na imagem da canoa o insólito como a fagulha que rompe com a banalidade e nos apresenta uma outra forma de experienciação do real: o rio com suas águas repletas de novidades sempre-novas trazem nesta falsa redundância a ênfase no sempre realizável do homem: o mistério como fonte do não-pensável. Haja vista o que nos diz a própria obra: “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia” (ROSA, 1967: 33).
Exatamente: acontecia! Não há motivo aparente ou uma razão lógica que explique tal fato. Deparamo-nos com um acontecimento poético, isto é, com aquilo que irrompe em uma realidade cotidiana, inaugurando uma nova. O acontecer é o próprio da palavra poética, já que esta é a coisa em seu vigor de ação. Mais ainda, o acontecer, nas palavras de Manuel Antônio de Castro, “já traz no seu âmago a noção de estar, ter contato ou relação com” (1982: 36).
A condição em que o pai se encontrava, ou seja, solitário em uma canoa no infinito curso do rio, não era algo de anormal. Ao contrário, era o que se tinha por verdade. Mas de quem? Há algum ponto de vista a fim de se determinar o que seja a verdade? Se sim, qual a verdade mais correta: a que se tinha por perspectiva a canoa singrando de “meio a meio” do rio ou a de quem se punha nas margens a observá-lo?

A “estranheza” da verdade no acontecimento do homem enquanto rio

“A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia” (ROSA, 1967: 33).  Esta fala do conto nos encaminha à discussão de duas palavras: o estranho e a verdade. Ou melhor, do acontecimento destes dois termos não só como palavra, mas como presença no homem.
Como já dissemos acima, acontecer é o dar-se involuntário do ser na dinâmica da phýsis. Por sua vez, phýsis “é tudo que se dá por si mesmo” (HEIDEGGER, 2007: 36). Então, se tudo que se dá, dá-se por si mesmo a partir da phýsis, como podemos articular o estranho e a verdade em diálogo com o conto “A terceira margem do rio”?
Indo direto à questão, o estranho é o insólito. No percurso do acontecer, a estranheza se manifesta do desconhecido, passando ao conhecido sem negar o que não se conhece. Eis o movimento da verdade como alétheia: o desvelar incessante do que antes se recolhia no não-manifesto. O estarrecimento de “todo a gente” é o espanto pelo incomum, pela presença da verdade enquanto acontecimento real do que não se esperava ver. Pois a visão, na ambiência da certeza ocidental, é o que afirma e concretiza uma verdade. Há então várias verdades? Não e sim, isto é, há manifestações da verdade em detrimento da experiência de ser. Entretanto, o que se entende como conceito de verdade é que muda em função da maneira de se abrir para sua manifestação. Por isso, para reforçar o que já dizíamos, em consonância com o pensamento grego, temos que:

Nosso conceito de verdade e o conceito grego da verdade tiram sua respectiva inteligibilidade de áreas e conjunturas de relações intuitivamente diferentes. Alétheia, descobrimento, provém do feito e do fato de encobrir, velar, respectivamente, desvelar, descobrir. “Correção” provém do feito e do fato de reger uma coisa por outra, de medida e medir. “Desvelar” e “medir” são feitos e fatos inteiramente diferentes (HEIDEGGER, 2007: 111).

Com isso, temos conceitualmente a verdade tanto como adequação de um enunciado àquilo que se enuncia quanto como transporte da negação à afirmação, e vice-versa, sem que um neutralize o outro. Desta forma, eis a verdade no sentido de realizar uma não-verdade e a ela retornar, posto que uma não-verdade é simplesmente o que ainda não se manifestou.
É desta maneira que podemos nos aproximar da estranheza do conto. A ida do pai em uma canoa ao rio, sem jamais aportar, mantendo-se num silêncio absoluto, incomodou a calmaria da razão, do habitual do povoado. Julgaram-no doido, doente de alto grau de periculosidade, absorto. Tentou-se de tudo: chamar sua atenção, ir ao seu encontro pelos descaminhos do rio, provocar-lhe a palavra. Mas nada adiantou. O que houve, então, de errado? A incompreensão. Não se abriram ao silêncio do personagem porque, e principalmente, não se abriram ao seu próprio silêncio.
O silêncio não é ausência de fala, não é sinônimo de imobilidade. O silêncio é o velar de todo o ímpeto, o movimento pleno em que a vigência de ser se resguarda no agir do sendo. O silêncio do pai é o silêncio do rio, e o rio é o homem.
Guimarães Rosa, certa vez, disse em uma entrevista:

Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens (LORENZ, 1973: 341).

O que importa é a fala da obra e não a do seu autor. Este deve se subtrair de sua atuação à medida que for atravessado pelo vigor da criação. No entanto, aqui Rosa não aparece como autor do conto, e sim como pensador. Pensa o homem em equiparação aos rios quando percebe a profundeza e o mistério de ambos.
Nunca saberemos o que é o homem. Nunca chegaremos a um ponto final, até porque estamos sempre em vigência de ser. Na medida em que somos, galgamos um passo a mais no abismo da escuridão. Assim como os rios, quando os olhamos pela densidade poética, nunca enxergamos o seu fundo, porém estamos sempre perdidos em sua profundidade.
O estranho é o insólito. O insólito é o ser do homem. O homem sendo é o rio em seu fluir e permanecer. A estranheza de ser, aos olhos metafísicos, não vislumbra o incomensurável de toda medida, haja vista que a desmedida de ser nos toma a todos, porém só alguns se abrem à manifestação do não-ser de todo sendo. Somos não sendo para que sempre possamos ser, e isto não é um jogo de palavras. Ao contrário, é o apelo do indizível do ser do homem.
Pelos dizeres de Rosa, o rio resguarda em suas águas a tensão entre claro e escuro. É um e outro ao mesmo tempo e da mesma maneira que é o homem, é a dobra se desdobrando. A tensão de vida-e-morte que atravessa a existência de todos nós recolhe esta mesma simultaneidade de mostrar e esconder. Ambos acontecem a um só instante, pois quando a phýsis deixa o homem acontecer em sua liminaridade, o lógos o manifesta pela fala da linguagem. Então, o homem fala em correspondência à linguagem, na medida em que escuta. Por isso, dizemos que quem fala é a linguagem e não o homem por sua vontade e atitude. A palavra se dá na reciprocidade entre fala e escuta, uma vez que não ocorre uma ação após a outra. Elas acontecem simultaneamente. 
Quando nos voltamos à quietude do pai, percebemos o estranhamento do povoado em função de sua escolha: “E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma” (ROSA, 1967: 35). Mantendo-se em silêncio, entregou-se a seu destino... Foi sendo na proporção do seu caminho. Vigorou-se homem em travessia. O rio se tornou mais rio na habitação de seu não-lugar, ou seja, deu-se em plenitude de fluência para que suas águas recolhessem a pequena canoa com a grandiosidade do homem-em-humanização. Isso tudo aconteceu surdamente e com serenidade de ambos os lados: de um, o pai que, na abertura de seu acontecer, mandou construir para si uma canoa, nela ficando até tempo racionalmente não estabelecido. De outro, o rio com suas águas mansas à espera do porvir.
“Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado” (ROSA, 1967: 37). Com tais dizeres do “filho”, observamos o quanto a questão do homem é explicitada na tensão entre saber e não-saber, medo e coragem, enfim, uma disputa. Esta é a perene questão que atravessa e faz o homem, pois habitando a liminaridade vida-e-morte, o conflito de sua existência é a permanência da luta por viver e morrer no “entre”.
Ser o que não-é, ficar calado, em silêncio. A dificuldade primordial que antecede o salto mortal no abismo de ser. É necessário cumprirmos o tempo mais justo, o tempo da terra. Somos a brevidade de uma existência que figura no tempo do mundo, no tempo de ser e não-ser.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não-sou, mas sou.
(ANDRADE, 1983: 151)

Pois o tempo mais justo não é aquele que queremos que aconteça, mas o que acontece sem a permissão de nossa vontade e nos encaminha serena e ferozmente ao horizonte de nossa própria habitação.
Ao fazer o pedido de troca de lugar com o pai na canoa, o filho teme seu destinar e tenta dele fugir. Corre e pede perdão por não suportar a iminência de um destino que não era o seu, mas sim, do pai. Foge porque tem medo do desconhecido. Daí, recolhe-se em sua fuga, negando-se como homem. Porém, este negar é também uma aceitação de sua condição mortal. Tanto que na última linha do conto afirma: “e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio” (ROSA, 1967: 37). Notamos dois detalhes interessantes: o isolamento das palavras “eu” e “rio”. Pois uma se liga a outra num movimento de apropriação mútua: o eu é o rio. O rio é o eu que se transborda da subjetividade e se alarga a todo mortal: o homem-em-humanização na fluência de seu entre-existir, sua habitação como lugar do não-ser.
A terceira margem do homem, podemos então pensar, é o que não se pode dizer. É aquilo sobre o qual não há medida que dê conta de sua grandeza, o que está para além de tudo que é sólito, nominável. A terceira margem do homem são os descaminhos do rio no dizer da não-fala enquanto silêncio, o dar-se conta da queda abismal em que nos encontramos na experiência única de viver. Pois nunca sabemos quem amar, só amamos. Nunca sabemos por onde andar, mas andamos. E desta forma, sem saber, apenas somos.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Campo de flores”. In: Antologia poética. 16ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Poética: permanência e atualidade”. In: Revista Tempo Brasileiro. [ISSN 0102-8782]. Nº 171. Out/Dez. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
______. O Acontecer Poético – A História Literária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
FOGEL, Gilvan. “O desaprendizado do símbolo (a poética do ver imediato)”. In: Revista Tempo Brasileiro. [ISSN 0102-8782]. Nº 171. Out/Dez. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.
______. “A linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003.
______. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Permanência e atualidade do poético: lógos, mýthos, épos”. In: Revista Tempo Brasileiro. [ISSN 0102-8782]. Nº 171. Out/Dez. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
LEMOS, Virgílio de. Para fazer um mar. Maputo: Instituto Camões – Centro Cultural Português, 2001.
LORENZ, Günter W. “Diálogo com João Guimarães Rosa”. In: Diálogo com a América Latina. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1973.
PESSANHA, Fábio Santana. “O insólito na dimensão do poético: o movimento de um questionar”. In: GARCÍA, Flavio (org.). Narrativas do insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. [pp. 32-48] (Disponível em www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/narrativasdoinsolito.pdf).
ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Primeiras Estórias. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é Ficção. São Paulo: Brasiliense, 1985.

*Conforme mencionado no post anterior, este é um dos textos previstos para publicação em 2010. Os demais ensaios participantes do mesmo simpósio de que este é integrante podem ser encontrados em www.dialogarts.uerj.br/arquivos/simposios.pdf